O traje e aparência nos autos de Gil Vicente

1. Como se vestiam os portugueses até o início do século xvi: as pistas que os autos revelam

1. COMO SE VESTIAM OS PORTUGUESES ATÉ O INÍCIO DO SÉCULO XVI: AS PISTAS QUE OS AUTOS REVELAM

Nos autos, Gil Vicente não descreve nem faz alusão a um traje completo, seja de homem seja de mulher. Os Fidalgos do Príncipe (Nau de Amores) tiram a capa e ficam em gibões e calções, mas não se fala nas calças, indispensáveis para cobrir as pernas, nem em sapatos. Na descrição da figura grotesca de Frei Paço (Romagem dos Agravados), tem-se, de um lado, hábito e capelo, próprios da vestimenta religiosa e, de outro, gorra de veludo, luvas e espada dourada, próprias de cortesão. Já o travesso e conquistador Doutor Justiça Maior do Reino (Floresta de Enganos) entrega à moça, que o quer desmascarar, loba, luvas, sombreiro, beca de veludo, depois de deixar de fora a vara que, segundo ele, (...) es vara de condón, / que me da gruessa hazienda; / y aunque ella poco me rienda, / dame mucha ocasión[1]. A beca e a loba são vestes talares, valorizadas no texto pelo material de confecção (veludo e contray frisado). As luvas e o sombreiro são complementos de uso de homens do mundo. O Diabo veste a Alma com um brial, calça-a com chapins de Valença e oferece-lhe como enfeites colar de ouro esmaltado, dez anéis (um para cada dedo) e pendentes (brincos). Não se diz o que vestia debaixo do brial (Auto da Alma). As comadres Branca Anes e Marta Dias, que apenas querem ver a feira, perguntam por anéis de latão (material ordinário), sombreiros de palma bons para segar, burel pardo de lã meirinha, sapatos, enfim, artigos, coisas simples, condizentes com sua condição de mulheres do povo. Antes, Marta perguntara a Ana se o marido lhe dera a fraldilha roxa (avental vermelho). Outra é a situação em que se encontram os pastores Brisco e Juan Guijarro (Triunfo do Inverno), este último, desagasalhado, “en faldetas” (em camisa)[2].

Observe-se o diálogo.

BRISCO

No tienes tú otro hato,
Çamarrón o çamarrilla?

JUAN

Ni capote, ni capilla,
ni tengo más de un çapato.
Yo saqué en Santintín
este sayo en hora mala,
solo para la zagala
verme y pagarse de mi.
Y comprelle una sortija,
y una saya verde escurra:

......................................

y agora ándome ansí
sin çamarro, sin çurrón
perdido, manguispanado:
el diablo llevó el cayado,
y su madre el mi çurrón.


COMP. II, 258-9 / GV. IV, 281-2

Juan lastima ter desperdiçado dinheiro com coisas não prioritárias: um saio para impressionar uma pastora e uma sortija (anel) e uma saia para presenteá-la. Com isso, não pôde comprar abrigo para precaver-se contra a chegada do inverno.

Estas rápidas pinceladas, tiradas de trechos dos autos em que se fala de roupas, são bastante reveladoras, não só do que diz respeito à personalidade das personagens, mas também de sua situação social.

Não se encontram nos autos relações de trajes completos, mas peças de um quebra-cabeça que, devidamente encaixadas, vão fornecer elementos para o conhecimento de como se vestiam os contemporâneos de Gil Vicente. A descrição dos termos e a pesquisa sobre sua história e significação serão o fio condutor para reconstituir-se o quadro do vestuário no início do século XVI, em Portugal, bem como suas raízes medievais.

Até o século XIV, a indumentária exterior para homens e mulheres, na Península Ibérica, compunha-se de saia, pelote e manto, superpostos nesta ordem. Estas três peças podem ser facilmente reconhecidas em um selo com a efígie do Rei Sábio, do acervo do Arquivo Histórico Nacional da Espanha. O “pelote” era veste exterior, ajustada, de comprimento variável, muito usada em toda a Idade Média. De meados do século XV até o fim do XVI era muito curto e não passava da metade do quadril.

Observa Guerrero Lovillo[3] sobre o pelote que

Junto a la saya, los textos castellanos citan con mucha insistencia una pieza que, a juzgar por la misma frecuencia de su cita y siempre associada a aquélla, podíamos llamarla su complemento.

Os pelotes não serviam de abrigo e eram dispensados aos peões. Podiam ser enfeitados com peles, ter ou não mangas, mas o mais comum era apresentarem aberturas laterais como grandes cavas que deixavam ver a saia, uma espécie de túnica usada por ambos os sexos, logo depois da camisa, esta a peça que entrava em contacto direto com a pele. Não há referência a pelotes femininos nos autos. As ocorrências dizem respeito a homens do povo, com exceção de um trecho do Auto da Feira, aliás suprimido pela censura na edição de 1586.

Às vezes vendo virotes,
e trago d’Andaluzia
naipes com que os sacerdotes
arreneguem cada dia,
e joguem até os pelotes.

Auto da Feira, COMP. I, 154 / GV. I, 210, 8-12

As saias femininas chegavam até os pés e eram semelhantes a vestidos, inteiriços, ajustados à cintura por cintos ou cordões. Em meados do século XIV, passaram a dividir-se em duas partes emendadas, um corpete ajustado a que era costurada a parte inferior, franzida, podendo ser cada uma de cor diferente. Este novo feitio dispensava cintos e cordões. O comprimento das saias para os homens variava do joelho ao meio da coxa, conforme a moda. Com isso, tornou-se necessário cobrir as pernas com “calças” que eram semelhantes às meias compridas femininas de hoje.

Nos autos não aparecem saias masculinas. O termo “saio” designa outra peça de vestuário, curta até o meio das ancas, muito usada por camponeses. Embora fosse veste para ambos os sexos, em Gil Vicente é masculina, com exceção da forma de diminutivo “sainho”, que é o que veste uma criada nas Cortes de Júpiter.

Ainda no século XIV, aparece o gibão ou jubão, também denominado porponto. De certa forma, pode-se dizer que equivalia à camisa social de nossos dias. Era confeccionado de seda, veludo, brocado e tecidos de fantasia, em cores fortes. Podia ser usado no calor sem outra peça de roupa por cima, o mesmo acontecendo em situações solenes. Neste caso, o gibão era ainda mais requintado, em tecidos finos e com lavores preciosos. A frente e as costas eram inteiriços com enchimento no peito, concentrado no meio, por dentro do forro. Para conseguir-se esse efeito, era preciso que a parte da frente fosse muito mais comprida do que a das costas e maior que a do forro. Os golpeados, muito em voga no passado, na época, restringiam-se às mangas. Com o tempo, as golas foram subindo e conservando-se erguidas, deixando ver a extremidade superior da camisa que passou a ter um babado em volta do pescoço. Babados também foram acrescentados nos punhos. Em meados do século XVI, o gibão deixou de ter mangas. As que apareciam, de cor diferente, e em geral, enfeitadas, eram de uma jaqueta curta, usada por debaixo.

São poucas as ocorrências de “gibão” nos autos. Salvo engano, não passam de três. Em uma delas, tem-se nomeado o conjunto do traje dos fidalgos do Príncipe da Normandia que calafetam a Nau d’Amores:

Foi posta no serão, onde se esta obra representou, ua Nau da grandura de um batel, aparelhada de todo o necessário pera navegar, e os Fidalgos do Príncipe tiraram suas capas e ficaram em calções e gibões de brocado, como carafates: os quais começam a carafetar a Nau com escoparos e maçanetas douradas que para isso levavam ao som desta cantiga:

Nau de Amores, COMP. II, 121 / GV. IV, 70

No Cancioneiro Geral, faz-se alusão ao tecido e às características que deve ter o gibão. O Coudel-Mor Fernão da Silveira dirige-se ao sobrinho Garcia de Melo de Serpa, dando-lhe regras de bem vestir e portar-se na corte:

O gybam de qualquer pano
na barriga bem folgado,
dos peytos tam agastado,
que seu dono trag’oufano[4].

Às vezes, a peça é pretexto para zombarias. Nuno Pereira endereça trovas a uma senhora que se casou quando ainda ele a servia e se vinga com referências desairosas ao marido, no que é ajudado por Francisco da Silveira. Entre outros motivos de mofa, Silveira, para ridicularizar a “vítima”, concentra-se no seu vestuário. Depois de falar de “barrete pardo frisado”, “borzeguys marroquis roxos”, “sapatos pretos”, acrescenta:

Tragua mais gibã d’irlanda,
na moor força do Veraão,
com meas mangas d’olanda,
por lh’a calma ser mais branda[5].

No século XV, quando a influência na moda vem da França, nota-se a tendência de ajustar as roupas, o que podia incomodar e gerar desconforto em determinadas situações, do mesmo modo que o comprimento. D. Duarte, no capítulo XVIII do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela[6], atenta para a ajuda ou dificuldade que a vestimenta pode trazer ao cavaleiro. Com referência ao gibão, recomenda que seja de tal forma que não aperte nem prenda, nem pese, e que não seja tão largo que o corpo ande solto. Importante, ainda, é o comprimento da fralda (parte da camisa ou da saia que vai da cintura para baixo), aliado ao feitio do gibão, que podia ser aberto dos lados ou tão justo que não a deixasse passar. São feitas, também, recomendações sobre as mangas, que não devem ser grandes, e sobre as roupas, leves o suficiente para não atrapalhar. Já em meados do século, a influência italiana na moda peninsular trouxe mais conforto ao vestuário.

O encurtamento das vestes que impôs, como já foi dito, a necessidade do uso das calças (meias), por vezes, trouxe inconvenientes à cobertura de certas partes do corpo. Assim, usaram-se, desde o século XIII, as bragas, facultativas, correspondentes a cuecas atuais, confeccionadas com tecidos comuns, as quais se prendiam às extremidades das camisas, puxando-as para cima ou à cintura, com cordões ou alfinetes. Uma outra peça, também facultativa, necessária para não deixar as bragas à mostra, foi a braguilha que consistia num pano de tecido mais nobre, já que ficava aparente, colocado entre as pernas.

Primeiramente, as calças prendiam-se à cintura, com cordões ou ao gibão por alfinetes e eram confeccionadas em tecidos de lã. As mais ricas, de escarlata, restringiam-se ao rei e à nobreza. No fim da primeira metade do século XIV, com o encurtamento das vestes, causaram certo escândalo e, na pragmática de 1340, ficaram restritas a ricos-homens, cavaleiros, escudeiros e burgueses ricos. Eram vedadas aos peões. Como passaram a ficar à mostra, não tardou que fossem enfeitadas com bordados, pérolas, fios de ouro e outras decorações, a tal ponto que o tecido às vezes ficava completamente escondido. A extravagância também se revelava no tecido e na cor. O vermelho, o azul e o verde foram muito usados e, em menor escala, o amarelo. As calças coloridas não eram permitidas ao clero. No final do século XIV e no seguinte, foi moda ter calças com pernas de cores diferentes combinadas de acordo com o gosto do dono. As calças soladas eram providas de pés e solas. As que não tinham pés vinham até o tornozelo. No Cancioneiro Geral, nas trovas que citamos, o Coudel-Mor faz alusão a “calças de fole” e “calças de marcar”:

As calças tyrem de fole,
roscadas como obrea.
Tragam-s’as de marcar,
Forradas d’yrlanda parda[7].

O mesmo Fernão da Silveira, em outra ocasião, falando de montaria, recomenda:

Nem tragays calças cerradas
pera mays despejo vosso[8].

No início do século XVI, não foram muito acentuadas as modificações no traje masculino. A indumentária comum da classe mais privilegiada consistia em calças justas, calção, gibão e vários tipos de sobreveste. Nem sempre é fácil distinguir-se uma peça de outra, apenas pela denominação. Na cabeça, barrete ou outro tipo de cobertura. Os sapatos já não eram pontudos.

Na Península Ibérica, usavam-se calções bufantes. Os enchimentos eram presos ao forro de tal maneira que a parte exterior ficava bem esticada. O volume não atrapalhava os movimentos. Prendiam-se aos joelhos por fitas. Na parte superior, eram presos à roupa de baixo ou na parte interior do gibão. Estiveram na moda até o século XVII.

A sobreveste mais comum e que nunca saiu de moda desde a Idade Média foi a capa, usada por todas as classes sociais. Era análoga ao manto, este uma peça especial na indumentária medieval, usado em ocasiões solenes, restrito aos nobres e grandes senhores de ambos os sexos. Os mais antigos, sem forro e confeccionados em tecidos finos, permitiam um pregueado miúdo. Foi moda forrá-los com peles de toda espécie. Os tecidos mais usados passaram a ser a seda encorpada e a lã. Vermelho, azul-violeta, verde e pardo eram as cores preferidas, mas usavam-se, também, cores misturadas, dispostas em franjas ou em listas. O tecido às vezes era adornado com círculos, no interior dos quais havia figuras de pássaros, de animais fantásticos e outros enfeites de influência oriental. Quanto ao comprimento, às vezes chegavam a arrastar no chão. Um cordão, tecido de fios de seda e até de ouro em peças mais suntuosas, mantinha o manto sobre os ombros. Era sinal de elegância a maneira de segurar o cordão para evitar deslocamentos da peça.

Além do uso em ocasiões solenes, o manto também servia para abrigar e proteger. Havia mantos e capas aguadeiros. Neste caso, suas características perdiam a pompa, a peça tornava-se mais prática e adequada à sua função. A função de proteger, desvirtuada, passou à de encobrir, esconder, disfarçar. No Diálogo sobre a Ressurreição, um manto faz parte das vestes do Rabi Levi que avisa dar-lh’-ei ua figa debaixo do manto, referindo-se a quem vier falar da ressurreição de Cristo. A expressão “debaixo do manto” equivale a “às escondidas”. Na Comédia do Viúvo, D. Rosvel, disfarçado de trabalhador ignorante para aproximar-se da moça de quem se enamorara, filha de um mercador viúvo, esconde os trajes que denunciariam sua origem nobre por baixo de um chapeirão, sem dúvida, um manto. A partir do século XIV, o manto podia ser substituído por peças similares, com a finalidade mais prática de proteger do tempo: o tabardo, que não tem registro nos autos de Gil Vicente, e o capeirão ou chapeirão. Essas peças, mais singelas, com abertura na frente e às vezes com capuz, eram populares. Talvez seja possível reconhecer como deste tipo o “chapeirão” que Gonçalo esconde e o negro, que o estava espreitando, encontra, caracterizando-o como “capote”:

Ei-lo aqui sá! Deuso graça.
Graça Deuso esse é capote;
nunca dexa aqui palote:

Clérigo da Beira, COMP. II, 535 / GV. VI, 27, 18-2.

No fontispício da edição quinhentista da Farsa de Inês Pereira, aparece a figura de um homem, completamente encoberto por um manto de grandes proporções, com a indicação “Latão”, no caso, um judeu casamenteiro, personagem da farsa em questão. Essa mesma figura, sem indicação, vem repetida no frontispício da Prática dos Compadres, de António Ribeiro Chiado, edição quinhentista do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa. As figuras repetem-se em outras obras da Escola Vicentina[9], em novas composições, às vezes sem estarem atribuídas a personagens, ou mesmo, atribuídas a personagens diferentes, como é o caso da figura de Inês Pereira e do escudeiro que aparece como tal, como compadre e como D. Fernando, no texto anônimo de mesmo nome. A capa do escudeiro é ampla, de corte semicircular, de comprimento pelos joelhos, com bastante pano atrás e um volume à altura da nuca que sugere um capuz. Como a figura apresenta o personagem com inclinação de três quartos do corpo, não se vê a frente, mas são bem visíveis as calças (meias) ajustadas, modelando as pernas, a queda elegante da capa que deixa entrever a espada, os sapatos de ponta moderada e a cobertura de cabeça, talvez um barrete, colocado meio de lado, provavelmente por questão de moda.

Em Gil Vicente, as sobrevestes que poderiam servir de agasalho, além da capa e do manto e mantão, são o capote (termo genérico), o chapeirão e o samarro, próprio de pastores.

No Auto da Lusitânia, quando o alfaiate judeu chega à casa, manda guardar o mantão com que viera da rua e a mulher reclama do estado em que a roupa se encontra:

Quanta choca, quanta lama,
que traz o mantão frisado,
que estava tão alimpado,
que parcia uma dama

diante seu namorado!
Por que não fugis do lodo?

Auto da Lusitânia, COMP. II, 553 / GV. VI, 55, 20-4

A observação da mulher faz supor que a peça era comprida, arrastando pelo chão. É provável que este tipo de manto, por essa indicação, pelas palavras do Rabi Levi e pelo que se observa nas figuras dos frontispícios das edições quinhentistas, fosse, na época, traje característico de judeus.

Roupa, que também pode ser denominação de tecido, designa uma veste que cobria completamente o corpo, uma espécie de opa. Nesta acepção aparece nos autos e ainda como termo geral, equivalente a traje. Em Gil Vicente não há alusão a “mongy”, uma espécie de manto, nem a “balandrau”, vestimenta semelhante à opa. O termo balandrau é usado hoje no sentido de “roupa ou pessoa desajeitada”. Essas duas designações de veste estão registradas no Cancioneiro Geral. Um grupo de fidalgos zomba de Fernão da Silveira porque exibiu-se numa corrida, envergando um “mongy” de veludo preto, forrado de martas e dirigem-lhe trovas com o seguinte refrão:

Ahynda m’agora abalo
de te ver como te vy,
vestido no teu mongy
a cavalo[10].

O vestuário feminino foi sempre muito tradicional e evoluiu muito lenta e discretamente. As formas do corpo eram dissimuladas pela amplidão e comprimento das vestes, formando um conjunto simples e harmonioso. Predominavam o recato e o pudor. As camisas, as roupas mais próximas ao corpo, eram feitas de linho e de seda. Os enfeites e lavores localizavam-se exclusivamente em volta do pescoço ou dos punhos e consistiam em bordados com fios de ouro, prata ou seda. A veste que se sobrepunha à camisa era o brial. Por volta do século XIII era largo até o peito, cintado daí aos quadris, ampliando-se a partir deste ponto, em pregas. As mangas variavam em largura e comprimento, às vezes alargando-se desmesuradamente na altura dos punhos. Para Lovillo[11], as denominações “saia” e “brial” usavam-se com relação ao mesmo referente. Segundo Oliveira Marques, o termo “brial” deixou de ser corrente a partir de meados do século XIII[12]. A “saia”, nova denominação desta veste, não diferia do brial, mas variava com a moda.

A camisa tornou-se muito decotada. Passaram-se a usar, sob esta, paninhos justos para sustentar os seios e até pequenos sacos para moldá-los. Seriam um ancestral do atual sutiã.

Semelhante a um vestido, a saia, já no fim da Idade Média, era confeccionada em veludo, seda ou fazenda mais comum. As mangas eram compridas e justas, alargando-se nas pontas. A cintura era ajustada por meio de cintos, faixas ou cordões, freqüentemente adornados com muito luxo.

Também de uso feminino era o “pelote”, desde o século XIII. Inicialmente era muito comprido e às vezes chegava a ter cauda. Tinha cavas, geralmente pronunciadas, que deixavam à mostra a saia. Foi substituído pela opa que era fechada e encobria a roupa de dentro. No começo do século XV, era fechada até o pescoço, com gola alta ou com um acabamento luxuoso no cabeção. Costumava-se adornar a parte inferior e as aberturas laterais com peles. As mangas tanto podiam ser estreitas quanto largas. Os decotes foram ficando cada vez mais pronunciados, deixando o colo descoberto. As “gargantilhas”, pequenos véus semi-transparentes ou mesmo de lã, serviam para proteger o pescoço e o colo. Houve época em que, dada a profundidade do decote da veste, a camisa, não muito decotada, era adornada finamente na parte superior que ficava à mostra. As damas usavam mantos, semelhantes aos masculinos, ainda que mais elegantes, amplos, presos ou não com cordões e, geralmente, cobrindo a cabeça.

A evolução do vestuário feminino, como já foi dito, foi lenta, o que não impediu que, sobretudo a partir da segunda metade do século XV, houvesse variações nas roupas exteriores, sobretudo no comprimento e na natureza das mangas. Como as vestes eram sobrepostas, às vezes duas, além da camisa, as mangas variavam no comprimento e na largura. Em O livro da Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, a personagem Aônia sai precipitadamente da cama, cobre a cabeça com uma roupa grande e sai para o eirado, onde

Lembrou-se logo que hia toucada d’hum rodilhado sôo como se erguera, e ou por nam parecer que se erguera entam, ou por nam parecer ma, lançou ella hua manga de camisa sobre a cabeça e leixou-se estar assi[13].

As referências a “saia” nos autos de Gil Vicente não permitem decidir se equivaliam ao vestido atual ou se à veste feminina que vai da cintura para baixo. A peça de roupa está ligada a personagens simples e só há alusões especiais à cor, no caso, o verde. Oliveira Marques chama atenção para o favoritismo da combinação entre o verde e o vermelho, no século XV[14]. A designação “opa” não se registra e “pelote”, nas raras vezes em que aparece, é traje masculino. Tratando-se de uma peça exterior à camisa e à saia e, no caso de homens, ao gibão, sua ausência nos autos não é decisiva para descartá-lo da indumentária do século XVI. No já referido frontispício da edição quinhentista da Farsa de Inês Pereira, a figura indicada como Lianor Vaz apresenta uma superposição de vestes. A roupa de cima deixa ver as mangas da de baixo, esta correspondente ao atual vestido, provavelmente uma “saia”, com a parte inferior ampla sem excessos, cobrindo os pés. A peça mais exterior vai, aproximadamente, até os joelhos e tem grandes cavas ovais, o que corresponde à descrição do “pelote” dos séculos anteriores. O movimento da parte inferior desta veste faz crer que fosse ajustada à altura dos ombros e do busto, alargando-se ligeiramente daí até o quadril. Já a figura de Inês Pereira está vestida com uma peça inteiriça, uma espécie de túnica de volume moderado, cingida à cintura por um cordão comprido, decotada, com mangas à altura do cotovelo bastante largas na extremidade e que deixam à mostra as da camisa.

O “brial” dos autos de Gil Vicente não pode ser confundido com a “saia” da mesma época. Era luxuoso, talhado em seda, brocado ou outro tecido custoso e próprio de pessoas de posse. Mofina Mendes, no seu devaneio, já se vê casada e

(...) ataviada
com um brial d’escarlata,

Auto da Mofina Mendes, COMP. I, 115 / GV. I, 150, 5

No Cancioneiro Geral, Duarte de Brito descreve duas damas que aparecem numa visão e sobre o traje de uma delas diz:

A hua delas vestia
hum bryal negro chapado
de muy rica argentaria,

d’ouro com gram pedraria
derredor coartepisado
d’esmeraldas e robys,
çafiras diamantes,
e hu manto

d’us lavores muy sotys,
preçiosos e galantes
de grand’espanto[15]

O Diabo veste a Alma, no auto de mesmo nome, com um brial e o texto não descreve a peça nem a qualifica, o que seria desnecessário, já que o termo designa uma veste de luxo.

Cismena, na Comédia de Rubena, pede à criada que traga seu material de costura que está debaixo do seu brial:

Que está nessa camarinha
Debaixo do meu brial.
(O negrito é de nossa responsabilidade.)

Comédia de Rubena, COMP. I, 388 / GV. I, 52, 8-9.

Depreende-se daí que, apesar de muito rica, Cismena só tem um brial. Não se trata, portanto, de uma roupa comum.

Quanto ao calçado masculino e feminino, pouco há para dizer. Os sapatos pontudos até o exagero dos séculos anteriores acomodaram-se a proporções discretas. Eram tingidos de diversas cores e feitos com variedades de couro, com preferência para o cordovão. Havia, também sapatos de fazenda comum ou de seda. Eram permitidas decorações, inclusive a ouro e prata. A bota foi usada como calçado de cerimônia, a partir do século XV. Os sapatos e botas de couro de gamo eram caros e requintados. Nos autos as referências a “botas” prendem-se a um pastor e a um escudeiro pobretão. O “borzeguim”, em voga no século XVI, não é citado nos autos, mas é freqüente no Cancioneiro Geral. O coudel-mor mostra em trovas a Ruy Moniz sua preferência pelas botas:

Quem mais o gynete segue,
preza-se de borzeguys,
mas eu ey por mais gentys
botas de muy fyno pregue[16].

Um tipo de calçado especial, de alto luxo e uso restrito, é o “chapim”. Resultava da superposição de solas, cosidas umas às outras e pespontadas. As damas os usavam para parecerem mais altas. O Diabo oferece à Alma “chapins de Valença”. Os socos, calçado de rústicos, têm uma ocorrência no Auto da Fama. Na Serra da Estrela, Felipa comenta que a visão de um corteão de pantufos de veludo e viola na mão é capaz de perturbá-la.

Em Portugal, homens e mulheres usavam a cabeça coberta. Inicialmente, as coberturas mais comuns eram as toucas e as coifas, usadas por camponeses e artífices e também por burgueses e nobres até o final do século XIV. Os camponeses colocavam por cima desta primeira cobertura, denominada barrete, chapéus de abas largas e copas baixas (sombreiros) que protegiam do tempo e que também foram muito usados por peregrinos e viajantes. Freqüentemente, o barrete do homem do povo assemelhava-se a um capuz e dispensava outra cobertura. Nobres e cavalheiros colocavam um sombreiro por cima do barrete, a partir do século XV. O material de confecção dos barretes era feltro, seda ou veludo. O tamanho da copa variava. Os mais populares tinham a copa baixa. Uma cobertura muito difundida a partir do século XIV foi o capeirão ou capeirote, também conhecido como chapeirão, por influência francesa (chaperon). Consistia em um capuz emendado a uma capa pequena que não passava dos ombros, com abertura para o rosto. O feitio desta peça sofreu inúmeras variações. Ora era o comprimento da ponta que chegava ao exagero, ora a maneira de colocar a abertura que resultava em deslocamentos para a direita ou a esquerda, ou ainda permitia que a ponta ficasse para trás. Muitas vezes esta, excessivamente comprida, precisava ser enrolada em volta do pescoço ou da cabeça, como um turbante. Os mais moderados usavam a cobertura sem exageros e na posição normal. Geralmente os capeirões eram confeccionados em fazenda lisa. Para ocasiões solenes, faziam-se de seda e podiam apresentar cores misturadas e ainda enfeites de jóias e bordados. Desapareceu o capeirão como cobertura de cabeça, nos fins do século XV. O chapeirão que aparece em Gil Vicente não é toucado, como já foi visto quando tratamos de mantos e capas. Nas ocorrências dos autos, não há dúvida de que seja uma capa grande, um manto. Aliás esta é a interpretação de Moraes e de Viterbo. Já Leite de Vasconcellos[17], com apoio em Carolina Michaëlis de Vasconcellos[18], considera que seja um capuz. De fato, os textos que servem de base a D. Carolina são do Cancioneiro da Vaticana: “caparom”, na cantiga nº 926 e “capeyrote”, na 1069. De acordo com o que foi visto acima, os verbetes dizem respeito a referentes distintos. Oliveira Marques, nossa principal fonte de apoio na descrição da peça, esclarece que Embora de há muito sofresse a concorrência de outros tipos de chapéus, só no último quartel do século XV, o chapeirão parece ter desaparecido inteiramente da indumentária masculina[19].Nos autos, o chapeirão está ligado a rústicos, com a função de proteger, seja escondendo (Comédia do Viúvo), seja abrigando do tempo. É possível imaginar-se um capuz prolongado em capa, já não terminada à altura dos ombros, mas suficientemente comprida para proteger o corpo inteiro.

Nos autos de Gil Vicente, aparecem como coberturas de cabeça masculinas “barrete”, “capelo”, “capuz”, “carapuça”, “gorra” e “sombreiro”. Não há referências a peças exóticas nem exageradas, como foi próprio dos séculos anteriores. O capelo, pelo que se pode depreender do texto, deveria ser um sucedâneo do capeirote. Diz respeito a rústicos que dele se servem para transportar pequenos objetos e até lebres, frutas e alimentos. É, também, peça característica do traje religioso de frades. O termo “carapuça” aplica-se a qualquer tipo de barrete ou sombreiro. A gorra, comum a homens e mulheres, foi muito usada até o reino de D. João III. Tinha forma arredondada.

As mulheres dedicavam especial atenção ao toucado. Os cabelos soltos eram permitidos às donzelas, mas foi sempre moda trazê-los arrumados, geralmente em tranças que se colocavam no alto, em volta da cabeça, ou cobrindo as orelhas. Veja-se o procedimento de Aônia na Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, no passo transcrito, quando tratamos de “mangas”.

Como cobertura eram comuns os véus e lenços e, também, coifas e toucas. A “mantilha” cobria a cabeça e se estendia até a cintura. A “enxaravia”, espécie de lenço de cabeça, refere-se a uma pastora no Auto Pastoril Português. Uma enxaravia vermelha, de acordo com o livro V das Ordenações, era um sinal afrontoso que as alcoviteiras deviam trazer fora de casa, quando não houvesse pena de morte ou degredo[20]. A “beatilha” era uma espécie de touca usada por mulheres idosas, freiras, beatas e por pastoras. A “coifa”, peça mais delicada, uma rede de seda, de gaze ou de malha, bem agarrada à cabeça, envolvia os cabelos e se fechava no alto da cabeça. Podia ser ricamente ornamentada. Nos séculos XIV e XV usavam-se chapéus sobre a coifa, às vezes excessivamente altos e exóticos. O nome genérico desta peça, que não chegou ao tempo de Gil Vicente, era “crespina”. Uma coifa ajustada à cabeça, às vezes coberta por um véu ou por um chapéu pequeno, enfeitado com cordões de ouro e penas, preso aos cabelos por grampos, foi moda no século XVI. Mais uma vez, recorrendo ao frontispício de edições quinhentistas, podemos observar, no do Auto de Inês Pereira, que a figura que representa Inês tem os cabelos acomodados numa coifa e Lianor Vaz usa um chapéu pequeno, com uma copa suficiente para conter os cabelos e aba discreta na frente; no da Prática dos compadres de António Ribeiro Chiado, as mulheres têm coberturas bem ajustadas à cabeça, possivelmente coifas; no da edição de Évora, de 1561, da Comédia Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos, a mulher usa uma coifa enfeitada com uma pena[21].

Acessórios utilitários não dispensavam adornos requintados. Os cintos eram decorados com metais preciosos e pedras e os cordões e faixas, tecidos com fios de seda e até de ouro. Usavam-se bolsas presas aos cintos, já que as vestes não tinham bolsos. Os lenços (suadeiros), que só se difundiram na Europa a partir do século XVI, podiam ser bordados com pérolas e pedrarias. As luvas eram usadas por pessoas das classes elevadas e, embora servissem para proteger do sol e do frio, podiam ser lavradas com fios de ouro e aljôfar. Moldavam a mão e, provavelmente, não tinham separação para os dedos, daí existirem as de um só polegar.

No Cancioneiro Geral nas já mencionadas trovas do Coudel-mor ao seu sobrinho, tem-se:

Luuas d’huu sôo poleguar,
feytas de pele de lontra,

galante que as encontra
nam lhe deuem d’escapar[22].

Como enfeites, homens e mulheres usavam correntes, colares, anéis em todos os dedos (o diabo oferece à Alma dez anéis no auto de mesmo nome). Os broches (firmais), inicialmente com a função de prender, transformaram-se em jóias valiosas. Braceletes e pulseiras, brincos, coroas e diademas não faltavam para o adorno das mulheres. As pedras mais apreciadas eram a esmeralda, o rubi, a safira e o diamante. Usavam-se, também colares com contas de âmbar e de corais.

O material e os próprios recursos de confecção davam prestígio e requinte ao traje. Os tecidos mais valiosos eram a seda, o brocado, o veludo e o cetim. As sedas decoradas com ouro existiam no Oriente e, mais tarde, na Espanha e na Sicília, onde eram manufaturadas pelos árabes. No final do século XV, a arte de tecer com ouro foi abandonada.

Um dos processos de valorização da fazenda era o frisado, que consistia em pentear e retorcer o pelo do pano (frisa). Até meados do século XV, os mantos e outras peças costumavam ser enfeitadas com farpas, um acabamento requintado. Estas eram cortadas no próprio tecido ou postiças. A partir desta época, saíram de moda e só as vestes de escudeiros e criados eram farpadas. Pelas Ordenações Afonsinas, as farpas eram símbolo dos tabeliães. No Clérigo da Beira, Gonçalo, filho de um lavrador, diz:

Ora fiai de rascão,
que farpa todo o pelote,
e não se farta de pão.

Clérigo da Beira, COMP. II, 542 / GV. VI, 37, 6.

A moda em Portugal acompanhou de perto as transformações econômicas e o advento da burguesia. A concentração da população nas cidades contribuiu para o desenvolvimento do comércio e refletiu-se no vestuário. Todos queriam parecer bem e competir com os concidadãos, e ascender socialmente. Na nobreza a competição se dava entre os pares. Os abusos no setor do vestuário foram de tal ordem que provocaram regulamentações e proibições tanto em Portugal como na Espanha. A indústria têxtil desenvolveu-se. Os materiais passaram a valer também pela procedência. Importavam-se tecidos, peles, materiais diversos e até peças já confeccionadas. No século XIII eram importadas capas da França. A preocupação de estar na moda e de bem trajar era bem viva no século XVI. Nota-se isso nas trovas de zombaria do Cancioneiro Geral em que são apontados exageros, mau gosto e situações ridículas. As personagens vicentinas preocupam-se com a aparência, com os adornos e com as vestes vistosas. Todos querem sobressair e causar boa impressão pelo traje.

 

Notas:

  • 1 COMP. I, 491 / GV. III, 194, 3-6.
     
  • 2 A expressão “en faldetas” equivale a “em camisa”, isto é, sem ter o que vestir.
  • 3 Lovillo, José Guerrero. Las Cantigas. Madrid: Instituto Diego Velásquez, 1949, p. 55.
  • 4 Resende, Garcia de. Cancioneiro Geral. Texto estabelecido, prefaciado e anotado por Álvaro da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1973, p. 71.
  • 5 Idem, ibidem, p. 118.
  • 6 D. Duarte. Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela. Edição crítica de Joseph M. Piel. Lisboa: Casa da Moeda, 1986, capítulo XVIII, pp. 34-37.
  • 7 Resende, op. cit., p. 71.
  • 8 Ibidem, p.75.
  • 9 A reprodução destes e outros frontispícios estão em Vasconcellos, Carolina Michaëlis de. Autos portugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina. Madrid: Centro de Estudios Historicos.
  • 10 Op. cit., pp. 229-230.
  • 11 Op. cit.
  • 12 Op. cit., p. 49.
  • 13 Ribeiro, Bernardim. História da Menina e Moça. Variantes, introdução, notas e glossário de D. E. Gokenberger. Prefácio do Prof. Hernani Cidade. Lisboa: Studium, 1947.
  • 14 Op. cit., p. 52.
  • 15 Cancioneiro Geral, edição citada, pp. 135-136.
  • 16 Idem, p. 75.
  • 17 Vasconcellos, J. Leite de. Estudos de Filologia Portuguesa. Seleção e organização de Serafim da Silva Neto. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1961.
  • 18 In: Zeitsch. F. Rom. Philol. XXVIII (e não XVIII, como, por lapso, registrou Leite de Vasconcellos), 396, nota 1.
  • 19 Op. cit., p. 45.
  • 20 Cf. Viana, A. R. Gonçalves. Apostilas aos dicionários portugueses. Lisboa: Livraria Clássica, 1906, Vol. I, p. 395.
  • 21 As ilustrações estão em Picchio, Luciana Stegano. História do Teatro Português. Lisboa: Portugalia,1964.
  • 22 Op. cit., p. 71.