Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

Ocidentalização, modernização, nação: ambigüidades de um projeto político-literário

Maria Aparecida Rezende Mota
Forum de Ciência e Cultura - UFRJ

Era uma noite de abril ou maio, igual a tantas outras em Oliveira de Azemeis, luminosa e macia. Mas, em Artur Corvelo, que voltava para a casa das tias, depois do bilhar, havia um turbilhão de planos e de esperanças. Iria escrever um drama em cinco atos. Damião, em Lisboa, providenciaria para que fosse representado no Teatro D. Maria ou no Ginásio. A peça seria o bilhete para a celebridade e a riqueza. Mas, o que escrever? "O seu temperamento atraía-o para o drama histórico", porém, "sabia tão pouco a história de Portugal!"... E, dos poucos fatos e personagens que guardara na memória, nenhum lhe inspirava. Decidiu-se, então, pelo moderno; "e tendo facilmente encontrado um título - Amores de Poeta - deduziu dele uma ação".[1]

Artur Corvelo certamente tinha uma vaga inteligência do que significava, àquela altura, nos anos setenta do século XIX, ser literariamente moderno. No entanto, teria ele, nas lonjuras de Oliveira, ouvido falar das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense? Havia sido em maio de 1871. Um grupo de jovens, egressos de Coimbra em sua maior parte, tinha resolvido "ligar Portugal com o movimento moderno", através de um Ciclo de Conferências, cujos conteúdos pretendiam ilustrar os portugueses acerca dos "elementos vitais de que vive a humanidade civilizada".[2]

Entretanto, na altura da quinta conferência, o ministro do Reino, o Sr. Marquês de Ávila e Bolama, houvera por bem proibir as preleções por ofensivas à religião e às instituições políticas. Interrompia-se, deste modo, a transformação política, econômica e religiosa que os conferencistas julgavam estar preparando com as suas intervenções.

Provavelmente Artur Corvelo desconhecia esses sucessos. De fato, seu desejo era ser um escritor moderno, não exatamente para transformar o país, mas, para ser aceito no restrito círculo dos que faziam a vida mundana e literária de Lisboa. Seu drama, entretanto, conforme nos revela a crítica feroz de Damião, padecia de todos os vícios de "um romantismo-fêmea, mórbido e estéril".[3] Afinal, as "florescências de linguagem", nas quais "Amores de Poeta" se excedia já haviam sido condenadas naquele mesmo Ciclo de Conferências, por um certo Eça de Queirós, quando classificara a retórica "como a arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos". A nova expressão da Arte exigia que o escritor tomasse "a sua matéria na vida contemporânea" e construísse seus personagens com os instrumentos da fisiologia, "a ciência dos temperamentos e caracteres", para conhecermo-nos, realisticamente; "para condenarmos o que houver de mau na sociedade".[4] Talvez fosse essa a referência de Damião quando aconselhou, peremptório: "Faça uma obra moderna - e leia Proudhon".[5]

Vivia-se, então - em Portugal e em toda a Europa - esse tempo que aprendemos a considerar como o que inaugurou o nosso próprio tempo, a modernidade contemporânea, da qual, consta que já saímos em direção a uma outra configuração, tão vertiginosa, tão assustadora, quanto parecera aquela percepcionada pelos que viviam também um fim de século.
"Faça uma obra moderna - e leia Proudhon", advertia Damião. Mas Artur Corvelo certamente tinha lido Proudhon, pois que vivera a "quase fantástica Coimbra", quando, pelos caminhos de ferro

[...] que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França) torrentes de coisas novas, idéias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos Reis; e Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe vasto como o Universo; e Poe, e Heine, e creio já que Darwin, e quantos outros![6]

Essa imagem de um "mundo novo" que desembarcava dos comboios e maravilhava a mocidade estudiosa revela o quadro mental de uma elite letrada que comparava seu próprio país com uma representação da modernidade elaborada com pedaços de uma Europa praticamente reduzida ao triângulo França - Inglaterra - Alemanha, as fontes de onde jorravam as "torrentes de coisas novas". A modernização assumiria, para essas consciências que se sentiam na periferia da Europa moderna, os contornos de um programa político-literário de ajustamento de Portugal ao século e à civilização.

Entretanto, esse "mundo novo que o Norte nos arremessava aos pacotes" não se movia apenas pelo impulso de "idéias, sistemas, estéticas", nem era tão novo. Na passagem do século XVIII para o XIX, todo um conjunto de experiências especificamente modernas havia surgido, transformando rapidamente a fisionomia do Ocidente. A Revolução Francesa incorporara ao vocabulário oitocentista palavras como nação, liberalismo e democracia e a Revolução Industrial desencadeara uma dramática mudança nos processos de produção e de consumo. A mecanização transformara o conhecimento científico em utensilagem técnica; a velocidade crescente das trocas materiais e simbólicas ampliara os mercados e a escala de comunicações; os capitais e a produção experimentavam um crescente processo de concentração e de centralização. Nas cidades, a cada manhã, migrantes pobres em busca de trabalho eram despejados. A emergência política desse proletariado e os movimentos sociais daí resultantes confrontavam com crescente vigor a ordem imposta por Estados nacionais cada vez mais poderosos, em suas trajetórias imperiais... Eis aí a massa de que era feito o tempo moderno no qual queriam mergulhar aqueles que, em Coimbra, viviam o tempo da descoberta.

Nós, hoje, podemos avaliar o que se avistava da ponta ocidental da Europa, para além dos Pireneus, pela narrativa de Z. Zagalo, o biógrafo de Alípio Severo Abranhos. Da refinada ironia que transporta o leitor - através da ótica de um tolo que biografa um patife - às cenas da vida política portuguesa, emergem imagens de movimento e mudança. Na Prússia, Guilherme I organizava, "por desconhecidos processos científicos", a destruição do exército francês e a edificação do Império Alemão. Na Itália, "a sinistra matilha republicana", aliada à monarquia piemontesa, confrontava, "aos clamores fanfarrões de um certo Garibaldi", o trono de São Pedro, onde "um velho sublime", Pio IX, rezava "imperturbavelmente", preparando-se para apoderar-se, com o Syllabus, "do domínio ilimitado da alma universal". A Inglaterra presenciava os primeiros abalos no edifício imperial, enquanto a revolução social preparava "a dissolução do Império balofo!". Na Rússia, Alexandre II libertava os servos e na América do Norte, com uma sangrenta guerra civil, findava-se a escravidão.

E, enfim, olhemos para a França - a Mater-Gália; nunca mais alta a vimos, gloriosa e firme resplandecente sob os Napoleões. Nunca a sua homogeneidade pareceu mais sólida e o seu messianismo mais penetrante. Paris reedificado, arejado, verdejante, retilíneo, resplandece. As suas modas são, por um momento dogmas, como as suas filosofias: o mundo recebe dela com devoção a crinoline e o Positivismo.[7]

Assim era a Europa, enquanto Alípio Abranhos e Virgínia Amado passavam a lua-de-mel na casa de Campolide. Entretanto, continuava Zagalo, voltemos os olhos, agora, para o nosso país:

Em Portugal, nessa época, não vejo que se passe coisa alguma, a não ser que o Ministério Cardoso Tôrres acaba de declarar que o seu programa será: Ordem, Moralidade e Economia.[8]

O contraste atividade-inércia não provocava espantos no biógrafo do Conde de Abranhos; angustiava, entretanto, Antero, José Maria, Joaquim Pedro, Teófilo, Jaime, José Duarte e outros jovens bacharéis. Essa angústia, no entanto, era típica de uma elite intelectual que, vivendo em nações ameaçadas pelo imperialismo, enfrentou, na própria Europa, na Ásia e na América Latina, o problema do atraso econômico e da estagnação cultural. Ao formular uma equivalência entre modernização e ocidentalização, integravam na mesma gramática o moderno - como um processo de aggiornamento das mentalidades - e a identidade nacional - como a auto-imagem coletiva a ser construída ou (re)construída, sob o signo da ciência e do progresso.

Não é outro o significado da conferência que, em 27 de maio de 1871, abriu o Ciclo do Casino Lisbonense, quando aquele que transformara a Revolução em princípio poético nas Odes Modernas, aquele que fora o Príncipe da Mocidade em Coimbra, agora vinha a público para convocar os portugueses a "quebrar resolutamente com o passado", opondo ao catolicismo, à monarquia e à inércia industrial - presenças vivas do "espírito mortal" do século XVI - o "espírito moderno".[9] Era a primeira vez, registrava uma nova Revista mensal (que pretendia ser uma "Crônica da política, das letras e dos costumes"), que "a revolução, sob a sua forma científica" tinha a palavra em Portugal.[10]

Antero de Quental apenas cumpria o que fora anunciado como "uma imensa vantagem", dias antes, no Programa das Conferências:

[...] preocupar a opinião com o estudo das idéias que devem presidir a uma revolução, de modo que para ela a consciência pública se prepare e ilumine, é dar não só uma segura base à constituição futura, mas também, em todas as ocasiões, uma sólida garantia à ordem.[11]

Dir-se-ia que os jovens agitadores tinham em mente uma espécie de futuro beatífico, uma miragem sociopolítica, onde a substituição das estruturas sociais carcomidas seria realizada sem tensões; uma nova ordem substituiria a antiga, organizadamente. Parece-nos que um deles, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, conferiu substância a essa idéia quando apresentou sua fórmula política, anos depois: "A máxima revolução, na máxima conservação".[12] Na verdade, este princípio sugere diversas interpretações. Em primeiro lugar, os conflitos e as contradições de intelectuais, em sua maior parte, oriundos da pequena burguesia ou das classes médias, formados e informados, portanto, no respeito à ordem. Entretanto, tal ponto de vista, "idealmente revolucionário, evolutivamente conservador", segundo as palavras do próprio Oliveira Martins, manifestava menos um paradoxo do que uma difícil conciliação entre perspectivas diversas, mesmo antagônicas, próprias da modernidade em seu momento inaugural. Transformação e conservação; revolução e estabilidade; instauração do novo sem a destruição do antigo - polaridades presentes nos discursos modernizantes àquela altura - sugerem e traduzem os dilemas e as angústias da tomada de consciência de um presente feito simultaneamente de tradição e de novidade.

Jacques Le Goff assinala que o par antigo/moderno e seu jogo dialético estão presentes na cena intelectual do Ocidente desde o século V. Trata-se, de fato, de um dos conflitos típicos da forma através da qual as sociedades vivenciam suas relações contraditórias com o passado. A oposição antigo/moderno agudiza-se sempre que se trata de lutar contra um "presente sentido como passado", ou quando a querela dos antigos e modernos assume as proporções de um ajuste de contas entre gerações.[13] Tais definições adaptam-se perfeitamente à Questão Coimbrã que, desencadeando-se no nível literário, ultrapassou-o, pondo em jogo dimensões ideológicas, políticas e sociais não pressentidas pelos participantes. António Feliciano de Castilho - esse mestre de "uma rotina arcádica, palavrosa, nula de idéias"[14] - acabou por simbolizar esse "presente sentido como passado" para a geração que se iniciava na modernidade, pronunciando-se contra a autoridade e a tradição.
Se a consciência da modernidade nasce do sentimento de ruptura com o passado, o discurso enunciado em meados dos anos sessenta, em Coimbra, não prenunciava exatamente o que seria dado a conhecer nas décadas seguintes. Negação e afirmação alternavam-se e complementavam-se numa elaboração dialética do passado português:

- A grandeza e a originalidade, Portugal só as conheceu nos tempos medievais;
- Não existiu um medievo português porque "nação" define-se como a vontade política de ser coletivamente, e isso só se efetivou a partir do Mestre de Avis;
- Portugal inaugurou a modernidade ocidental com as navegações e as conquistas;
- O mundo português faleceu juntamente com Camões;
- Portugal é uma entidade metafísica, uma alma moçárabe que existe desde que os iberos, os romanos, os visigodos e os árabes criaram-na.

O passado torna-se incontornável quando um tempo mítico é, nele, constituído. A Idade de Ouro desloca-se nessa narrativa novelística, ensaística e historiográfica, ora para o século das travessias marítimas; ora para a legenda heróica do medievo; ora para o tempo das origens do "gênio moçárabe".

Ainda ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e servilidades: e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica!
Ah! foi há muito tempo.
Era naqueles tempos... Na Alemanha, Lutero entrava em Worms, com um canto batalhador, em nome do espírito, da alma...[15]

A nostalgia de um passado mítico talvez esteja na origem de certa concepção de História - nomeadamente em Eça de Queirós e Oliveira Martins - contrária às correntes mais modernas da historiografia oitocentista. A idéia do tempo histórico como uma corrente de eventos cujas conexões se encontram numa série de causas e efeitos; uma seqüência linear, retilínea e evolutiva, postulada por Antoine-Nicolas Condorcet, em seu Esquisse d'un Tableau des Progrès de L'Esprit Humain, em 1794, suplantara aquela que formulava o tempo histórico como uma trajetória circular, conformando-se o conceito de progresso, neste tempo cíclico, à idéia do eterno retorno. Entretanto, Oliveira Martins, ao escrever a História de Portugal, como a de um indivíduo biológico em seu ciclo vital - nascimento, crescimento, maturidade, velhice e morte -, situava-se, do ponto de vista da Filosofia da História, mais próximo da segunda concepção, remontando, portanto, ao século XVII com La Scienza Nuova de Gianbattista Vico, do que de Condorcet e da linearidade de um progresso contínuo.

Eça de Queirós comentando, em abril de 1888, a situação da Europa, comparava-a a uma enfermaria de hospital, "onde arquejam e se agitam nos seus catres, os grandes enfermos da civilização". A Inglaterra, a França, a Alemanha, a Rússia, a Suécia, a Itália, a Espanha, esses "organismos doentes", tiveram suas "lesões" - crise industrial, crise agrícola, crise política, crise social, crise moral - minuciosamente examinadas pelo autor. Contudo, ele assinalava que a situação era "simplesmente normal", este fim do Mundo nada oferecia de pavoroso porque, na verdade, a situação da Europa, em todos os séculos anteriores, desde a sua origem, havia sido sempre "medonha".

A "crise" é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o imperecível - a virtude e o espírito. [...]
É que a sociedade assemelha-se à Natureza. E na Europa, como em qualquer espesso bosque... um momento vem em que tudo decai e fenece [...]. E, a quem então o atravesse, o bosque afigura-se na verdade coisa confusa, arruinada e medonha. E todavia, tudo isso - é simplesmente Dezembro. É a vida; é a ordem. Das ramagens apodrecidas já se estão nutrindo as sementes que hão de ser árvores: e através das decomposições conserva-se a seiva, que tudo fará reflorir e reverdecer, quando Março chegar. [...]
De sorte que os males presentes, as crises, as misérias, não são mais que o natural deperecimento de Dezembro na floresta humana, donde surgirá uma mais viva, mais rica vegetação de liberdades e de noções. [...]
E assim, aos tombos e aos socos, ora destroçado, ora reflorido, o mundo avança irresistivelmente![16]

É possível supor que a adesão à concepção vitalista e cíclica do percurso das sociedades humanas atendesse a um desejo não revelado - que das ramagens apodrecidas neste longo e aterrador Dezembro português, ressurgissem as folhagens novas de um Abril nacional.

Entretanto, o Ultimatum viria ainda, e a esperança do retorno de Portugal ao lugar de honra que ocupara, outrora, no concerto das nações, tornava-se cada vez mais débil. Os tempos modernos eram ingratos para essa geração que sentia a nacionalidade em perigo. A modernidade trouxera o industrialismo, o urbanismo e o cosmopolitismo. Na capital do Norte português admirava-se o palácio de pedra cristal e ferro - emblema da Primeira Exposição Internacional, em 1865 - projetado por um arquiteto inglês, com materiais ingleses, sob a supervisão de um engenheiro inglês; Gustave Eiffel, o mesmo que fará erguer a imagem indelével da modernidade na capital da sensibilidade moderna, unia as duas margens do Douro com um arco de renda metálica. E, em Lisboa, Carlos Eduardo da Maia e João da Ega passeavam no novo boulevard, encontrando nas espantosas botas da nova geração, toda a explicação do Portugal contemporâneo.

[...] Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem caráter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos de
idéias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha...[17]

No mesmo timbre, Carlos Fradique Mendes, este flâneur do mundo e da inteligência - cometa errante através das culturas e das idéias - verificava que a tradição e a originalidade, desde o Egito até o Brasil, abatera-se sob a paródia de uma civilização de empréstimo. A dança, lamentava, uma das grandes artes orientais, perdera "as tradições do estilo puro". As filhas do deserto pervertidas pela influência dos cassinos do Cairo, onde se dança o cancã, "já poluíam a graça das velhas danças árabes, atirando a perna à moda vil de Marselha!".[18] E o Brasil?! Cada dia mais desnacionalizado pelos "doutores" que lhe sufocam a originalidade nativa, teimando em apertá-lo "numa fatiota européia feita de francesismo, com remendos de vago inglesismo e de vago germanismo".[19]

O que significava essa recusa ao cosmopolitismo? Não tinham sido eles mesmos, Carlos Eduardo da Maia, João da Ega, Fradique Mendes, Antero de Quental, José Maria Eça de Queirós, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Teófilo Braga, Jaime Batalha Reis, José Duarte Ramalho Ortigão que haviam adotado e divulgado o círculo de modelos - o estilo francês, as teorias alemãs e a educação inglesa - com os quais se deveria remodelar o Portugal arcaico? A diluição das fronteiras imposta pela aceleração constante das trocas materiais e simbólicas, contudo, assustava aqueles que um dia ha-viam formulado a equação metafísica "suma ciência x suma potência = suma felicidade", e que agora suspiravam pelo paiozinho com ervilhas...
A consciência da modernidade freqüentemente foi descrita como a vivência constante do paradoxo e do conflito. No tempo do grande imperialismo, quando o próprio conceito de civilização incorporava a imagem do dinamismo da cultura européia como parâmetro e necessidade, vivia-se a experiência da modernidade numa sociedade periférica, como se se estivesse numa espécie de limbo: distante da grandeza imperial de uma Inglaterra ou de uma França, contudo, não em completa servidão, como em África. O projeto político-literário apresentado a Portugal em pleno alvorecer dos tempos modernos, assumiria, nessa confluência, uma expressão ambígua. Propondo uma re-fundação da nação nos marcos do Ocidente Moderno, esse projeto oscilava entre a recusa e o desejo da civilização mecânica e industrial. Em Londres, Paris, Berlim, no Mundo, erguia-se o burguês e a sua obra - a transformação dramática da produção, das relações sociais e da cultura; a velocidade e a máquina; o vazio da perda da comunidade original; a aceleração da história e a desorientação.

O discurso e, até certo ponto, as ações concretas daqueles que o elaboraram parecem, portanto, mover-se entre o antigo e o novo, o local/regional e o cosmopolita, entre o racional/positivo e os espectros. O conflito entre duas sensibilidades distintas no eixo espaço-temporal - uma das características da experiência moderna - teria produzido essa narrativa existencial e literária dilemática?
Reiventar Portugal pela escrita a partir da exposição de suas enfermidades morais e políticas e apontar o caminho do Ocidente como o remédio que iria regenerá-lo foi, aparentemente, o móvel daquela que tornou-se conhecida como a Grande Geração. Modernizar Portugal significava, porém, antes de tudo, modernizar-se; era-se, então, positivista, realista, naturalista, democrático, republicano e socialista. Mas, como ser moderno, isto é, "quebrar resolutamente com o passado", se a advertência de Herculano - recordar o passado é uma "magistratura moral" - pesava ainda sobre as consciên-cias? Como ser moderno, isto é, viver a anulação das fronteiras geográficas e nacionais, se o fantasma de Garrett acompanhava Jacinto em sua viagem ao Baixo Douro. E, com o Ultimatum, presenciou-se até um dos mais combativos poetas dessa Geração que já fora Nova, clamar pela metempsicose do Condestável. O Palácio de Cristal, a Ponte sobre o Douro e a Avenida da Liberdade, a paisagem técnica, enfim, seriam apenas expressões concretas de uma sociedade submissa à plutocracia e rendida à moda estrangeira?
A instabilidade desse discurso, seu ir-e-vir moral, já foi interpretada como a manifestação de um desajuste típico de uma elite urbana, burguesa e letrada em relação à própria sociedade, predominantemente rural e analfabeta. Frustrado com a inanidade de seus esforços, o intelectual periférico num Ocidente eurocêntrico teria poucas alternativas: suicidar-se ou tematizar a decadência, a própria, a nacional e a universal. O "excesso de civilização", afinal, conduzira o Ocidente à nevrose. O que estava em causa, no entanto, era a tensa convivência entre uma interrogação que nascera romântica e uma sensibilidade, em progresso, à condição moderna. A interrogação sobre o ser português, sobre uma origem e um destino coletivos, desdobrava-se e ampliava-se, no momento mesmo em que a modernidade já começara a devorar as comunidades, a construir o isolamento psíquico dos indivíduos e a produzir a estética do descentramento e da fragmentação espiritual. Vivia-se, portanto, a experiência moderna de viver em dois mundos.

Entretanto, o que fora feito de Artur Corvelo que queria tanto ser reconhecido como um escritor moderno? Venha para Lisboa, escrevera Damião: "A capital é, no fim de tudo, o único ponto vivo desta fétida lesma morta que se espapa à beira do velho Atlântico, sob o nome de Portugal".[20] E Artur seguiu para Lisboa. E com que deleite respirou, pela primeira vez, o ar da capital, "que depois do pesadume das ruazitas de Oliveira, lhe parecia ter a vitalidade oxigenada onde se dilatam as faculdades!"

[...] e da claridade do gás, da vastidão das ruas, a multidão sussurrante, vinha-lhe como que uma sensação de atividades espalhadas, de paixões, de grandezas vagas que o perturbava: era como se a atmosfera estivesse saturada das emanações de uma vida rica, sábia, idealizadora e ardente! [21]

Um dos dramas da modernidade constitui-se no choque que interrompe o curso da experiência tradicional. A concepção moderna de vida implica, portanto, o desejo de mudança e de autotransformação, "um processo de crescimento contínuo, incansável, aberto, ilimitado".[22] Mas, o drama mais pungente da modernidade é que essa dimensão de ruptura e de encontro é vivida em estado de ansiedade e tensão, em exaltação e depressão.

Contemplando a cidade do alto de S. Pedro de Alcântara, Artur Corvelo admirava-se: "Que grande, Lisboa!" As janelas iluminadas sugeriam uma intensa vida social; ali movimentavam-se jornalistas, oradores, estadistas, mulheres aristocráticas; ali fervilhavam "amores, mistérios, crimes, talvez!". Que grande era Lisboa! Mas, seguiu adiante:

[...] Foi descendo, parando junto às vitrinas, voltando-se para os rostos pálidos das mulheres..., seguindo com os olhos as lanternas das carruagens ricas, que punham claridades sobre os casacos claros dos lacaios. Descendo sempre, chegou junto do rio. Estava escuro, havia um friozinho cortante, e as luzes dos mastros tremeluziam na noite. Veio-lhe sem razão, uma melancolia, um sentimento de solidão... Como conseguiria fazer conhecimentos, relacionar-se, viver, furar, naquela grande cidade rumorosa? Agora tudo lhe parecia mais difícil, e as grandes fachadas sombrias das casas espalhavam em torno dele uma sensação de isolamento, de inacessibilidade...[23]

Marshall Berman define a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna como "de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma".[24] Conhecemos a derrocada dos projetos literários e existenciais de Artur Corvelo, porém, se pudéssemos, hoje, consolá-lo, diríamos apenas que, naquela noite, na capital, ele era positivamente moderno.

 

Notas:

  • 1 José Maria Eça de Queirós, A Capital, in: Obra Completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1970, v. I, p. 888.
  • 2 Antero Tarqüínio de Quental, "Programa das Conferências Democráticas", in: Prosas Sócio-Políticas, publicadas e apresentadas por Joel Serrão, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 253.
  • 3 J. M. E. de Queirós, A Capital, in: Obra Completa, op. cit., v. I, p. 893.
  • 4 Idem, "O Realismo como nova expressão da Arte", in: Obra Completa, op. cit., v. I, p. 27-28.
  • 5 Idem, A Capital, in: Obra Completa, op. cit., v. I, p. 893.
  • 6 Idem, "Um gênio que era um santo", in: Notas Contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil, 2000, p. 254.
  • 7 Idem, O Conde de Abranhos, in: Obra Completa, op. cit., v. II, p. 927.
  • 8 Idem, ibid., p. 928.
  • 9 A. T. de. Quental, "Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos", in: Prosas Sócio-Políticas, op. cit., p. 294.
  • 10 J. M. E. de Queirós e J. D. R. Ortigão, Uma Campanha Alegre, Lisboa, Livros do Brasil, 2000, p. 34.
  • 11 A. T. de Quental, "Programa das Conferências Democráticas", in: Prosas Sócio-Políticas, op. cit., p. 254.
  • 12 Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Porto, Lello & Irmão, 1981, v. I, p. XI.
  • 13 Jacques Le Goff, "Antigo/moderno", in: Ruggiero Romano (dir.), Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, v. I, p. 370-392.
  • 14 Teófilo Braga, "As teocracias literárias", in: Alberto Ferreira e Maria José Marinho, Bom Senso e Bom Gosto: A Questão Coimbrã - 1865/1866, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, v. I, p. 336.
  • 15 J. M. E. de Queirós, "Ao acaso", in: Prosas Bárbaras, Lisboa, Livros do Brasil, 2000, p. 145.
  • 16 Idem, "A Europa", in: Notas Contemporâneas, op. cit., p. 143-152.
  • 17 Idem, Os Maias, in: Obra Completa, op. cit., v. II, p. 472.
  • 18 Idem, A Correspondência de Fradique Mendes, in: Obra Completa, op. cit., v. I, p. 116.
  • 19 Idem, ibidem, p. 228.
  • 20 Idem, A Capital, in: Obra Completa, op. cit., v. I, p. 885.
  • 21 Idem, ibidem, p. 912.
  • 22 Marshall Berman, Tudo que É Sólido Desmancha no Ar: A Aventura da Modernidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 96.
  • 23 J. M. E. de Queirós, A Capital, in: Obra Completa, op. cit., v. I, p. 913-914.
  • 24 Marshall Berman, op. cit., p. 18.