Camões e Eça de Queirós

O rústico no teatro vicentino

Cleonice Berardinelli
PUC-Rio / UFRJ


Tem-se dito e repetido que o papel do povo é fundamental na obra de Fernão Lopes. Assim também na vida de Gil Vicente, com uma particularidade: o seu povo se constitui, quase só, de rústicos - pastores, lavradores e vilãos, pastores, sobretudo. Simples, às vezes ingênuos mas não tolos, dota-os o dramaturgo de uma risonha malícia e de uma forte dose de crítica que se exerce principalmente contra o clero, a classe poderosa que, por seu procedimento infrator das próprias regras, mais se expunha ao ataque e à chacota.

Um rápido percurso cronológico pela obra de Gil Vicente nos possibilitará traçar uma espécie de roteiro dos personagens rústicos, caracterizando sua atuação e possível evolução.

Comecemos pelo começo, pelo Vaqueiro do Monólogo da visitação. Primeiro personagem criado por mestre Gil, e por ele assumido, o Vaqueiro é apenas aquele que simula ter sido impedido de entrar, reagindo, valente; aquele que pasma diante da beleza da sala; que dá conta da sua missão ali; que vibra de alegria simples e transparente e termina por ir buscar os companheiros para que tragam os presentes para o príncipe recém-nascido.

É um personagem curioso: na sua reação normal de espanto perante a novidade e a riqueza do que vê, há paralelamente o à vontade com que se dirige à Rainha, a alegria espontânea que o faz saltar, a fanfarronice divertida com que inicia o auto e até o conhecimento histórico que revela ao profetizar.

O Monólogo representou-se em junho de 1502. Depois deste virá, em 1509 (segundo a cronologia proposta por Révah), o Auto Pastoril Castelhano. Só pastores nele contracenam à exceção de um Anjo que pronuncia umas breves palavras de anúncio do nascimento de Cristo. Dos seis pastores um se distingue pelo ser caráter especial, definido pela didascália como "inclinado à vida contemplativa" e que "anda sempre solitário". Chama-se Gil, Gil Terrón (e pergunto-me por que lhe deu o autor seu próprio nome). Se anda solitário, nem por isso é triste: alegra-se de apascentar seu gado e observar o céu, desinteressado das zagalas. É grande, total mesmo, sua confiança em Deus. Não se pense, porém, que, por contemplativo e profundamente crente, seja alheado do mundo. É o mais versado na genealogia da gente da terra e gosta de jogar com os companheiros. Na hora de dormir, é o que lembra que devem persignar-se (sempre o anacronismo vicentino!) para se livrarem do demônio. É o que ouve o apelo do Anjo e convoca os pastores para que vão visitar o Menino, e é ele que saúda a Virgem, numa linguagem bastante simples mas já tocada de inesperado preciosismo; e é ele que explica aos outros quem é a virgem, revelando conhecimento insuspeitado dos textos bíblicos, citando em latim versos de Salomão. Ao espanto de Silvano responde que acaba de aprender aquilo ("Ahora lo deprendi.") e termina a sua longa fala - é Gil, sem dúvida, o personagem principal do auto - definindo poeticamente o mistério da Santíssima Trindade. Brás também se admira de ouvi-lo: "Gil Terrón lletrudo está", ao que ele responde: "Diós hace estas maravillas!".

Neste primeiro auto pastoril, a par da fé inabalável de Gil, já surge uma palavra de descrença na boca do pastor Lucas que, tendo perdido umas cabritas e estando a procurá-las, ouve de Gil: "Encomiendalas a Diós", respondendo-lhe: "Que podrá eso prestar?" e ainda: "Si los lobos las comieron, hamelas Diós de traer?" Esta atitude dubitativa de Lucas, personagem ainda esquemático, será retomada e ampliada bem mais tarde por João da Morteira ou Martinheira. A ele chegaremos.

Do ano de 1510 é o Auto da Fé. Brás e Benito, pastores, estão pasmados diante do esplendor da capela onde se prepara a celebração do Natal. Observam tudo e tudo comentam, dando às coisas nomes errados que lhes aplicam a partir das semelhanças que nelas vêem: o altar é mesa ou cama, as velas, não sabem se são candeias ou fogueiras, a caldeira de água benta parece-lhes o cesto ou cesta, ou amassadeira de pão. Espanta-os também a quantidade de homens que lá estão, muitos deles tonsurados. Diz Benito: "Cuantos que estes zotes son / ó cregos ó son personas". E Braz acrescenta: "Mas que montón de coronas! / bendígalos Santo Antón".

É a primeira vez que um personagem vicentino aponta para um aspecto muito satirizado na época: o do grande número de clérigos. Mais tarde, um frade dirá na Frágua d'amor: "somos mais frades qu'a terra / sem conto na Cristandade / sem servirmos nunca em guerra", mais ou menos como Silvano, um terceiro pastor do Auto da Fé, que aparece ao fim, a dizer: "Más há cregos, que no hombres". A presença da Fé, suas palavras inspiradoras dão o tom de religiosidade, que atinge a altura não superada na obra, mas é perfeitamente nítida a sátira, como no auto anterior.

Há um progresso e um largo enriquecimento no papel atribuído aos rústicos no segundo Auto das Barcas. Pela didascália somos informados de que nele "trata-se per lavradores", o que o distingue sobremaneira dos outros dois autos de embarcação - do Inferno e da Glória. Não exatamente lavradores, mas rústicos são quase todos os personagens aí julgados e destinados, não a uma situação já definitiva - céu ou inferno -, senão a uma situação de expiação provisória, pois seus pecados ou são menos graves ou mais justificáveis, por suas próprias condições de vida.

A Regateira é viva e pronta na resposta desaforada ao Diabo que a acusa de pôr água no leite e outras façanhas: defende-se dizendo que "o respeito/do mundo é em ganhar" e em "a torto , ou a direito / apanhar". Não aceita a condenação e, como é devota da Virgem, apela para esta, lembrando-lhe que se está numa data especial. Sua fé absoluta no poder da oração a salva do inferno.

Também despachado e zombeteiro é o pastor que se recusa a ir com o Diabo, usando do mesmo argumento irrespondível da Regateira - é noite de Natal.

Ao convite do Anjo acede de boa vontade, mas às perguntas deste responde à sua maneira: não sabe senão parte do Padre Nosso e da Ave Maria, pois

Assaz avonda ao pastor
crer em Deus e não furtar,
e fazer bem seu lavor,
e dar graças ao Senhor,
e fugir de não pecar.

O diabo insiste na acusação, lembrando-lhe que ele tentara agarrar a namorada, ao que ele responde, simplório, mas com certo cinismo:

quisera eu, e ela não,
porque a tredora fugiu;
e se isto assi foi, ladrão,
que pecado se seguiu
pois não houve concrusão?

Há ainda no auto uma Pastora menina. Assustada, aflige-se, chama pela mãe, mas recobra as forças para invectivar o Diabo que a quer em sua barca. Enche-se de consolação à vista do Anjo que a chama e lhe pergunta: "Conhecias tu a Deos?" E ela, com a certeza de uma fé tão segura que não admite dúvida, porque é a constatação de uma verdade visível: "Muito bem, era redondo." Com a mesma certeza, mas gerada por outro conhecimento, diz o Anjo: "Esse era o mesmo dos Céos".

O Diabo acusa-a de mexeriqueira, gulosa, refalsada e mentirosa. Alguma razão teria o demo, pois que também ela fica na praia purgatória

O personagem mais forte, porém, é o lavrador. São citados com freqüência e utilizados como epígrafe os seus dois versos mais revolucionários: "Nós somos vida das gentes / E morte de nossas vidas".

Grande distância o separa dos outros: nestes havia apenas o aspecto ético-religioso da questão - o pecado cometido e a fé professada, que pesavam nos dois pratos da balança para obter o equilíbrio provisório da purgação -; naquele, o problema é ético-social, principalmente. É o ponto climático da crítica de uma sociedade de opressores e oprimidos, feita por um destes, que viveu a vida como se morto fora ("sempre é morto quem do arado / há de viver"). É o extravasamento da revolta contra os "tiranos" (o Anjo da Barca do Inferno já chamara tirano ao Fidalgo: "Não se embarca tirania / neste batel divinal"), que nunca foram tão generalizados: sejam quem forem os que oprimem, um só é sempre o oprimido - o lavrador, metonímia de toda uma classe trabalhadora que o poeta muito amava.

Num mesmo ano, 1523, são representados dois autos (além do Amadis de Gaula, que aqui não interessa): o Auto Pastoril Português e a Farsa de Inês Pereira. No primeiro, todos os personagens são rústicos, com exceção de quatro clérigos que só são introduzidos para cantar o hino final, à Virgem Maria.

Na Farsa de Inês Pereira há um rústico, que o é plenamente, no que de positivo ou negativo o termo pode ter: Pero Marques, pretendente à mão de Inês. Não sabe para que serve uma cadeira, o que leva Inês a chamá-lo, em aparte, "Jam das Bestas". Muito honrado, enamorou-se da jovem e vem propor-lhe casamento. Preocupado com sua reputação, não quer ficar sozinho com ela quando a mãe, astuciosamente, se afasta. Repelido, será aceito mais tarde quando, viúva do escudeiro, que foi péssimo marido, Inês decide:

Agora quero tomar,
pera boa vida gozar,
um muito manso marido:
não no quero já sabido,
pois tão caro há de custar.

E inflige ao pobre marido a pior humilhação: cavalga-o para que ele a leve a um encontro amoroso. Para maior achincalhe ela canta os versos variáveis de uma cantiga em que lhe chama"gamo" e "cervo" e ele repete o refrão: "Pois assi se fazem as cousas."

Em 1525 ou 26, Gil Vicente escreve uma nova farsa, a do Juiz da Beira, e nela reintroduz um personagem, coisa que não acontece outra vez em sua obra bastante extensa. Este juiz é Pero Marques e, embora continue a patentear sua rusticidade - ainda não quer cadeira, preferindo um banco -, e ele mesmo declare que lhe deram "um julgado / por cajo de Inês Pereira" que sabe ler e quanto se faz mister para ele continuar a carreira, já não é tão fácil catalogá-lo como um pobre diabo ridículo e tolo. As suas decisões como juiz são pelo menos ambíguas. Até que ponto as toma por incompetência? Não haverá nelas um senso comum que, próprio dos simples, as marca positivamente? Exemplifiquemos.

Ana Dias, alcoviteira, queixa-se de um moço que lhe desonrou a filha. Ouçamos parte do diálogo:

Ana - Querelo-me, senhor juiz,
do filho de Pero Amado,
que o achei emburilhado
com a minha Beatriz.
Pero - E onde?
Ana - No seu cerrado.
Pero - E que ia ela lá catar?
Ana - Foram ambos a mondar,
e o trigo era creçudo
e foi-se a ela.
Pero - Coma sesudo,
pois que tinha bô lugar.

Irrita-se Ana com a observação e acrescenta que "a cachopa é prenhada". Pero, sem hesitar: "Assi se faz." Para satisfazer a mãe, diz que precisa de sete ou oito testemunhas. "Como?", objeta Ana, se o trigo estava mais alto que a vara que ali está. E Pero, inflexível, e aplicando o seu latim macarrônico:

S'ela mesma não folgara,
chamara ela que delrei;
mas credo quo natura dat
nemo negare pote.

Para evitar mais delongas, remata o juiz, cheio de bom senso e intuição detetivesca:

E perém, tudo assim visto,
eu mando per meu mandado
que até esse pão ser segado,
que se não fale mais nisso.
E àquele mesmo pão
eu e estes homens bons
iremos lá e veremos nós
se a houve por força ou não:
que se ela não queria
estará o pão derramado,
e há mister bem olhado
ela se se defendia.

Ana Dias passa de queixosa a acusada no segundo pleito: um judeu se queixa de que ela lhe desencaminhou a filha. Resposta de Pero Marques:

Se lhe ela fora rogar
pera mondar um linhar,
a moça embargara o caminho,
mas bom é d'encaminhar
o gato pera o toucinho.

e dá castigo a Ana Dias (que sabe tão bem o seu ofício), que

se o deixar esquecer,
seja por isso açoutada.

Ao Escudeiro, que começa por queixar-se de Ana Dias (ainda!) porque lhe extorquiu dinheiro, manda que se vá, dizendo:

I-vos embora, Escudeiro
e nunca peçais dinheiro
que gastastes per amores.

Mas o Escudeiro tem outra queixa: esta, do seu moço que quer deixá-lo. Este alega a miséria em que vivem e as exigências do patrão, reclamando a paga do serviço que lhe fez. O Escudeiro não tem dinheiro e o juiz decide, obrigando-o a servir o criado. Os últimos queixosos são três irmãos, que se disputam a posse de um asno, única herança deixada pelo pai. Depois de longos arrazoados, pronuncia-se Pero Marques:

Julgo por minha sentença
que o asno seja citado
pera a primeira audiença.

Como se vê, não é nada tolo este novo Pero Marques que foi feito juiz: malicioso, diverte-se com as partes como o gato com os ratos, acabando por aplicar-lhes sentenças inesperadas, mas nunca destituídas de alguma razão, que pode até ser uma sem-razão semelhante à dos queixosos.

Não sei se terei eu alguma razão em supor que, um pouco arrependido do ridículo que jogara sobre este seu rústico, na mais bem estruturada de suas farsas, Gil Vicente o teria, pelo menos em parte, reabilitado na farsa que lhe serve de continuação. Mas é o que me parece.

De 1526 é o Auto da Feira, em que há dezessete personagens rústicos. Os quatro primeiros - dois casais desajustados - estão apenas preocupados com seus problemas pessoais e consideram a feira como espaço conveniente para vender ou trocar seus maridos ou suas mulheres. Uma das mulheres caracterizada como a mansa, não quer nada, pois

é tão mole e desatada,
que nunca dá peneirada
que não derrame a farinha.

Dos outros treze, nove são moças que trazem coisas a vender na feira; três são os rapazes compradores, mais o pastor Gilberto. Na verdade, não se vende nem se compra nada, mas a mercadoria oferecida serve de pretexto para um diálogo vivacíssimo entre eles e elas, cheio de maliciosos subentendidos. Nessa conversa graciosa e brejeira não entra Gilberto, que apenas dialoga com o Serafim, perguntando-lhe se é Anjo de Deos e tomando ao pé da letra as respostas que este lhe dá. Um comprador interrompe as perguntas ingênuas e cheias de uma fé que faz lembrar a Pastora menina do Auto do Purgatório.

O ano de 1527 é o mais produtivo de toda a carreira vicentina; nele se representaram de seis a oito autos. Um deles é a chamada tragicomédia pastoril da Serra da Estrela, onde todos os personagens, excetuado um ermitão, são rústicos, pois a própria Serra, que dele participa, vem

em figura de pastora,
feita serrana da Beira,
como quem na Beira mora.

Como o auto é representado ao parto de D.Caterina e nascimento da Infanta D. Maria, em Coimbra, o tema central seria a homenagem da Serra, com seus pastores e seus muitos especiais produtos por ele trazidos. Assim, a Serra os convoca para que venham todos a Coimbra, mas... neste mas está a explicação do seria, em vez do é, e toda a graça especial do auto que repete a intriga amorosa do Auto Pastoril Português, muito mais amadurecida. Retomo, pois, a adversativa: mas isso vai ser retardado, como diz Gonçalo, um dos pastores enamorados, à Serra; é preciso primeiro "avir / ua manada d'amores". Mais uma vez estamos diante de situações particulares, em que cada personagem recebe sua marca própria, reagindo de maneira distinta, sobretudo as mulheres, mais voluntariosas que os homens. Felipa tem fumos - não quer casar com gente da terra, pois o pai é juiz e o Rei já lhe dirigiu a palavra num dia em que foi à Corte. Caterina faz considerações sobre o amor, ameaçando matar-se, como Dido. Madalena, furiosa, diz que não casará em toda a Serra da Estrela.

Também desse ano de 1527 é a Farsa dos Almocreves, cujo título vem de dois personagens, ambos condutores de bestas de carga, um dos quais é a figura mais expressiva do auto, e das mais ricas da galeria vicentina em geral. Contratado por um fidalgo, Pero Vaz (é o nome do almocreve) chega trazendo uma carga que "toma o mu de cabo a rabo", como ele mesmo diz a seu companheiro de profissão, Vasco Afonso. Como todos os que dependem do tal nobre, não receberá senão promessas e será despachado de mãos vazias. O diálogo que mantêm caracteriza muito mais o fidalgo que o almocreve que encontramos bem definido - surpreendendo-nos, mesmo - na fala com seu companheiro de profissão.

O primeiro dado da caracterização de Pero Vaz é sua boa fé, sua confiança nos outros (aqui, no Fidalgo).
Aí está a primeira faceta de Pero Vaz; a segunda vem logo a seguir, provocada ainda por Vasco: "Como vai a tua mulher / e todo teu gasalhado?" A mulher fugiu e ele parece não importar-se nem com ela, nem com o que dirão os outros. Mas a sua fala, de repente, muda de rumo e ouvimo-lo dizer:

Do que me fica grão nó,
que teve razão de s'ir,
e em parte não é culpada:
porque ela dormia só,
e eu sempre ia dormir
c'os meus mus à Meijoada.
Queria-a ir poupando
pera lá para a velhice,
como colcha de Medina;
e ela - mosca, Fernando! -
quando viu minha pequice
foi descobrir outra mina.
Vasco - E agora, que farás?
Pero - Irei dormir à Cornaga
e amanhã à Cucanha.

A meia-volta de Pero Vaz revela o que ele tentara ocultar - a sua dor de ver-se abandonado. Fez-se de forte, como se não o afetasse a fuga da mulher ou o julgamento dos outros, mas não conseguiu manter a máscara até o fim. E o pior é que o sofrimento que lhe causa um nó - na garganta - é menos do abandono do que da consciência da culpa que lhe cabe: deixou-a só, poupando-a, como colcha preciosa comprada na feira de Medina, para a velhice. Merece a pena de ir dormir, não mais à meijoada, com os animais, mas à Cornaga e à Cucanha, topônimos inventados e derivados de corno e cuco, num dramático achincalhe de si mesmo.

Pela voz deste rústico personagem, Gil Vicente critica a onda de ambição pretensiosa que faz com que ninguém queira viver dignamente em seu estado, mas prefira afetar o que não é e o que não tem: lavradores e fidalgos estão cheios de presunção, são fumosos, como se dizia na língua do tempo.
Já quase ao fim da sua produção teatral - e da vida, pois parece ter escrito até o fim - Gil Vicente faz representar, em 1533, a Romagem d'Agravados.

A primeira figura em cena é a de Frei Paço - frade e palácio juntos no nome, nas vestes que são "hábito e capelo" e mais "gorra de veludo, e luvas e espada dourada", e nos gestos, "meneios de muito doce cortesão" - ; antes mesmo que fale, já se apresenta como a sátira ao clero. Não vou comentar a sua excelente fala inicial, pois é de rústicos que estou tratando e Frei Paço entrou aqui, não como Pilatos no Credo, mas como elemento de prova da força satírica do auto e introdutor deste,começando pelo personagem mais forte, o vilão João da Morteira ou João Martinheira (ambas as formas aparecem no auto). O mais forte do auto e, poder-se-ia acrescentar, um dos mais fortes da obra de Gil Vicente, e semelhante, na sua revolta, ao Lavrador do Auto do Purgatório, com a agravante de que, enquanto este se queixa dos homens poderosos, João da Morteira queixa-se do Todo Poderoso. É mesmo bem dissonante a sua fala no contexto vicentino, no qual a sátira ao clero nunca atinge a Igreja (com maiúscula), nem, com mais forte razão, a Deus, à Virgem ou aos Santos. Uma breve nota de descrença surgira, porém, na segunda peça vicentina, o Auto Pastoril Castellano, quando o pastor Lucas pergunta: "Si los lobos las comieron [às cabritas] / hamelas Dios de traer?" Agora, quase ao fim de sua obra - escreverá, no máximo, outros três autos -, Gil Vicente retoma a dúvida, não em tom brincalhão, mas profundamente sério. João Martinheira ou da Morteira é um personagem dramático e tenso, cuja fala ainda mais se realça por vir em seguida à de Frei Paço - frívola e cínica.
Entra com o filho, Bastião, e vai logo dizendo:

Oh descreio não de São...
renego da sementeira!
Esta é forte canseira
que me tira a devoção
de rezar, inda que queira.
Ca não vou para rezar,
pesar de minha madrasta,
que rezar, arrenegar,
maldizer e contemplar
não podem ser duma casta!
Porque a pessoa agravada
não lhe rege a devoção.

O frade lhe pergunta:

De que te queixas, vilão?

e ele responde:

De Deus, que é cousa provada
que me tem grande tenção.

Quer saber o frade que tenção, que má vontade tem Deus com ele.

Vilão - Faz-me com que desespero,
Frei Paço - Quê?
Vilão - Que chove quando não quero
e faz um sol das estrelas
quando chuva alguma espero!
Ora alaga o semeado
ora seca quanto i há;
ora venta sem recado
ora neva e mata o gado,
e ele tanto se lhe dá.
Eu que o queira demandar
por corisco e trovoada,
por pedrisco e por geada,
buscai quem o vá citar
que lhe acerte coa pousada!
Nem tem prema de ninguém
e fará quanto quiser.
Podia-me Deus fazer bem
sem nisso dar perda a alguém,
mas do Demo, que ele quer!
E com estas cousas tais
que eu vejo desta maneira,
digo que me tem cenreira:
e não cureis vós de mais,
que claro se vê na eira!

O frade tenta responder-lhe com argumentos contrários e perguntas sobre seu procedimento cristão. - Paga ele o seu dízimo? - Pagá-lo-ia, se tivesse com quê. - E tem rezado?

Muito faz ele ora conta
das minhas ave-marias!

E, no meio da gravidade da sua fala, uma expressão ingênua que lhe denuncia a simplicidade:

Rezo-lhe mais do que monta.
Não sei a quem ele sai,
mas é feito a seu prazer.

Como se vê, Deus é tratado como um ser humano, que pode ter saído a alguém para ter tais defeitos.
Antônio José Saraiva, no excelente estudo sobre Gil Vicente incluído na História da Cultura em Portugal, escreve:

Não há dúvida que João Murtinheira [sic] está afirmando tremendas blasfémias, que só podem admitir-se como disparates irresponsáveis de um rústico ignorante [...] Mas note-se que a lógica do camponês é irrepreensível e deixa Frei Paço sem argumentos; e note-se também que a sua vida trabalhosa e martirizada, a sua luta com as secas, a geada, o frio e a chuva que intempestivamente lhe caem do céu são uma realidade lancinante. Todos sabiam que ele era pobre como um cão, que trabalhava até cair, que a sua revolta tinha razão de ser. O menos que Gil Vicente pretendeu nestes aparentes paradoxos foi exprimir de maneira gritante a dura condição do camponês.

Há duas asserções a distinguir neste texto de Saraiva: a primeira, de que "João Murtinheira está afirmando tremendas blasfêmias, que só podem admitir-se como disparates irresponsáveis de um rústico ignorante"; a segunda, de que "o menos que Gil Vicente pretendeu [...] foi exprimir de maneira gritante e dura a condição do camponês". Estou de acordo quanto à segunda, mas acho que a primeira é discutível. João Martinheira não é apresentado como um dizedor de disparates, pois, como escreve o mesmo ensaísta, sua lógica é irrepreensível; além disso, há desespero e dignidade na sua fala que inspira compaixão e respeito. O leitor ou assistente sensível nunca julgará suas palavras meros disparates, mas o desabafo e a revolta que afligem o homem de fé nos momentos em que se sente abandonado por Deus.
Assim soou a voz de Jó, quando amaldiçoou a própria vida: "Pereça o dia em nasci e o dia em que se disse: 'Foi concebido um homem'" e se queixou de Deus: "Por que as setas do Senhor combatem contra mim?". Assim se fez ouvir a lamentação do grande profeta Jeremias: "Por que saí eu do seio materno, para ver trabalho e dor, e consumirem-se meus dias na confusão?". O salmista interpelou a Deus: "Acaso estarás apartado, Senhor, até ao fim? Escandecer-se-á como fogo a tua ira?" e o próprio Cristo, no momento derradeiro, exalou sua queixa: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?".
Como à maioria dos homens, falta a João da Morteira a resignação para suportar os males que o afligem - e são tantos! Falta-lhe a aceitação que se exprime no Padre Nosso; "Seja feita a tua vontade" e, por exemplo, na resposta dada pela alma de um justo que se dirige ao paraíso no Diálogo de Mercúrio y Carón, de Alfonso de Valdés, quando Caronte a interpela: "- Como te havias em las enfermedades y adversidades que te venían? - Todo lo recebia de buena voluntad, conociendo venirme de la mano de Dios, y que no me lo enbiava Él sino para mayor bien mío".

Esta seria a fé perfeita que Valdés encarece em seu personagem, como Gil Vicente no seu Jó (do Breve Sumário da História de Deus), a quem faz dizer:

Oh! bento e louvado seja o meu Senhor!
O que ele me mandar,
a vida é sua, pode-a tirar,
a morte é nossa de juro e herdade;
e pois que ele é o juiz da verdade
faça-se logo sem mais dilatar
a sua vontade.

Uma fé e uma resignação que me atingem como socos quando, durante um duro período de seca sempre esperada ou de uma inesperada inundação, vejo na televisão as caras dolorosas, ainda jovens ou cortadas de rugas, dos nossos Joões nordestinos, e ouço-lhes as respostas sofridas, mas não revoltadas, à pergunta do repórter: "É a vontade de Deus".

João Martinheira é um homem normal que, cansado de sofrer, revolta-se contra Deus no qual projeta os erros que são, sobretudo, de uma sociedade injusta que Gil Vicente verbera em seus autos. Sua palavra não atinge tanto quanto a do Lavrador da Barca do Purgatório, que estende seu problema pessoal ao da classe a que pertence, dizendo nós. João fala de si longamente e por fim diz que trouxe o filho ao frade por querer fazê-lo "d'Igreja",

Não com devoção sobeja,
mas porque possa viver
como mais folgado seja.

o que alarga o alcance de sua denúncia: se o filho for lavrador, como ele, viverá na mesma miséria.
Nesta Romagem dos Agravados, os que se queixam de reais agravos são os camponeses, como se viu. E suas vozes, que ficam ressoando longamente em nossos ouvidos, são as últimas da numerosa família dos rústicos de Gil Vicente.