Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

"Que desgraça nascer em Portugal!"

Cleonice Berardinelli
PUC-Rio/UFRJ

Todos os que aqui estão sabem que o VIII Seminário da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio tem um título de núcleo bimembre - "Cenas da vida moderna e mundialização da cultura" -, seguido, à guisa de um aposto explicativo, de uma enumeração de cidades européias: - "Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!" - que se foram buscar, assim agrupadas, num dos "originais e exatos" alexandrinos de Cesário Verde. Se a escolha do verso aponta para Cesário, a do primeiro sintagma apontava para o título - "Cenas da vida portuguesa" - que, formando um todo e sendo "a pintura da vida contemporânea em Portugal", Eça de Queirós propusera para o conjunto de seus romances.

Se, ultrapassado o nosso título, atentaram para o texto em que apresentamos o Seminário, terão visto que nele procuramos homenagear Eça de Queirós, "no ano centenário de sua morte, querendo com isso ressaltar a sua modernidade e atualidade". E acrescentamos: "A ele uniu-se outro nome decisivo, este da 'moderna' poesia portuguesa - Cesário Verde." Estaremos assim celebrando autores que, na anterior virada de século, já antecipavam algo da atual.

Será difícil discordar da escolha dos dois autores mencionados. O que talvez se possa discutir será a limitação a eles, mas o tempo de um encontro, que não se pretende exaustivo (e aponto para a bissemia do adjetivo), seria insuficiente para abrir mais largamente o leque de homenageados. Não foi senão no momento em que comecei a pensar o texto que aqui lhes trago que me assaltou a sensação de estarmos cometendo uma injustiça, ao esquecermos que havia um outro centenário a lembrar: no mesmo ano de 1900, quatro meses antes de Eça de Queirós, com trinta e três anos incompletos, morria um dos poetas mais sensíveis e mais inovadores do século XIX em Portugal: António Nobre. Nesta espécie de amende honorable, que fiz de mim para mim naquele instante, e que agora torno pública, teve origem a menor abrangência da conferência que lhes lerei, e em que, para não ultrapassar o tempo a mim destinado, restringir-me-ei aos dois que desapareceram há cem anos: Eça, nascido em 1845, António Nobre, em 1867, este, em plena juventude, aos trinta e três anos, aquele, em sua plena maturidade, aos cinqüenta e cinco.

Até aqui, só tentei justificar ou explicitar o título do Seminário. Talvez valha a pena falar do título deste texto que lhes apresento: uma agressão à pátria, um desabafo de um eu decepcionado, desalentado. Um eu que será reconhecido ou adivinhado por muitos dos que me ouvem, mas não por todos. Entre os jovens estudantes aqui presentes, alguns haverá que não terão idéia de quem terá exprimido sua decepção com a própria terra num decassílabo ao mesmo tempo tão forte e tão ritmicamente harmonioso: "Que desgraça nascer em Portugal!" Não lhes farei a injustiça de imaginar que não perceberam tratar-se de um verso, o que restringe muito a probabilidade de atribuí-lo a Eça (que, afinal, fez versos bastante razoáveis em nome de Fradique Mendes). Como conhecem bastante bem Cesário Verde, estão quase seguros de que o verso não é seu.

Mas, afinal, quem é este poeta? Já está decifrada a adivinha que lhes propus. Se o título do nosso encontro acenava para Cesário Verde, se disse que deste não falaria, mas de Eça e de António Nobre, se, para intitular o meu texto utilizei um verso, o mais provável era que neste fosse buscá-lo. O que talvez não esperassem era que António Nobre escrevesse versos tão duramente críticos, pois a idéia que dele vulgarmente se tem (quando se tem alguma) é a do poeta romântico attardé, narcísico, e até piegas por vezes, esquecendo o cru realismo de algumas de suas descrições e, mais que isso, a extrema novidade formal de sua poesia.

Começarei por Eça de Queirós, de cuja obra buscarei captar, tanto quanto possível, o olhar que lança sobre a tradição e sobre o fim de século em que vive; da poesia de António Nobre procurarei ressaltar a sua "modernidade e atualidade".

Parto de uma pergunta que me faço: será possível apreender em Eça um mesmo único olhar voltado para a tradição, nos trinta e quatro anos da sua bastante longa carreira de ficcionista, na qual, no julgamento do passado, ele hesita entre a desmitificação e a manutenção do mito?

Fiz, já lá vai muito tempo, uma análise conjunta dos cinco romances - O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, Os Maias, A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras - que considerei fundamentais para a percepção do que o autor chamou também "Galeria de Portugal no século XIX", nos quais

a amplitude da zona apresentada é crescente e em que o autor passa da pura agressão à sociedade à busca de uma solução, ou, pelo menos, de uma interpretação em que a sátira permaneça, contrabalançada por uma certa compreensão - aceitação, seria melhor - que se acentuará com os anos. (Berardinelli, 1985: 110)

Até a A Ilustre Casa de Ramires, verifiquei que, após ter-se longamente estendido na sátira impiedosa à sociedade portuguesa contemporânea, desde a pequena burguesia de O Crime do Padre Amaro, ate à fidalguia d'A Ilustre Casa, passando pela média e alta burguesia de O Primo Basílio e pela aristocracia de Os Maias, o narrador aduz um ou mais elementos positivos tirados do passado, que, ao mesmo tempo que funcionam como repoussoir, vão insinuando uma possibilidade, embora vaga, de luz ao fim do túnel. É, realmente, nas últimas páginas desses livros que vou ressaltar tais momentos em que, depois de algumas palavras de retomada/resumo dos muitos e muito fortemente e extensamente realçados aspectos negativos da cidade ou do país, o narrador menciona algo positivo, sem vincar oposições, deixando ao leitor as considerações e possíveis conclusões.

Na releitura que faço dos livros em questão, começo por O Primo Basílio, cuja primeira edição é de 1878, seguido de O Crime do Padre Amaro, do qual utilizo a terceira versão, de 1880 (posterior, portanto, à publicação daquele). Nos dois romances, a ação termina em Lisboa. Em OPB, além de uma ou outra descrição de ruas e pessoas de aspecto miserável ou idiota, há nas últimas páginas o julgamento do Visconde Reinaldo: "Abjeto país!" e o seu desejo ardente de que Deus mandasse outro terremoto. Portugal é "pocilga", "chiqueiro". É bem verdade que o Visconde não é moralmente credenciado para julgar o seu país, mas nenhum aspecto positivo é sequer aflorado pelo narrador, em sua própria voz.

No CPA, encontramos em tintas carregadas o retrato de Lisboa, ao fim da tarde: "senhoras [...] com os movimentos derreados, a palidez clorótica de uma degeneração de raça"; "faces enfezadas de operários", "indústrias moribundas", "mundo decrépito", "casas de penhores", "quatro entradas de taberna" e, "com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime". Diante disso, um estadista e dois sacerdotes gozam a "certeza gloriosa da grandeza do seu país", ao pé da estátua de Camões:

erecto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria - pátria para sempre passada, memória quase perdida!

Eis que surge, neste segundo momento das "Cenas portuguesas", em contraponto à vadiagem, ao vício, à sordidez e decrepitude do presente, um daqueles elementos positivos de que eu lhes falava: os poetas e os cronistas da antiga pátria.

Passemos a OM: Carlos Eduardo volta a Portugal e vê desfilar diante de si "uma gente feiíssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada": as reformas feitas na cidade parecem-lhe enfeá-la; só a sua beleza natural conserva o antigo encanto. Admirado com as botas dos cavalheiros, compridas, de "pontas aguçadas e reviradas, como proas de barcos varinos", ouve do Ega que isso também era imitado, e mal imitado, como tudo em Portugal: "É dum reles, dum postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país..." Carlos, porém, mostra-lhe os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario... aquilo era genuíno; mas o Ega replica: "é talvez mais genuíno. Mas tão estúpido, tão sebento! Não sabe a gente para onde se há-de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos ainda pior!"

É um pobre contraponto, convenhamos, mas considero que n'Os Maias há algo genuinamente português, e não estúpido nem sebento: Afonso da Maia. Em nenhum outro personagem pôs Eça de Queirós tantas virtudes: filho, esposo, pai e avô dedicado, compreensivo, paciente, devotado; amigo afetuoso e solícito; patrão justo e generoso; cidadão exemplar, quando jovem é idealista e revolucionário; quando homem maduro, é ponderado e firme; a velhice o torna um companheiro disputado de todas as idades. Os anos passam, as dores o atingem e ele reage, sem azedume, sem revolta. O velho avô é a presença do passado, de um passado mais recente, mas tão honroso como o que, no CPA é representado pelos poetas e cronistas do Largo de Camões. A grande figura de Afonso da Maia permanece a figura mais positiva da galeria eciana e simboliza o velho Portugal.

Na ICR temos, como personagem central, Gonçalo Mendes Ramires, fidalgo que se empenha, ao longo da narrativa, por escrever, A Torre de D. Ramires, com a qual, utilizando as glórias passadas da família, busca qualificar-se perante os eleitores e conseguir uma cadeira de deputado em São Bento, único meio que encontra para salvar-se, e à ilustre Casa de que é o último rebento, da miséria que os espreita - o que não é, convenhamos, um motivo nobre e dignificante.

"O mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal" é-nos apresentado na primeira página do romance como o autor, ainda só potencial, da novela A Torre de D. Ramires. Ao longo de centenas de páginas, convivemos com este personagem instável, capaz de atitudes nobres e mesquinhas, de rasgos de generosidade e afeto, vergonhosamente covarde e brutalmente vingador, e sentimo-nos, alternativamente, atraídos por ele e enojados dele. Ao fim do livro, seu amigo Gouveia faz dele um retrato em claro-escuro, a sublinhar a sua dualidade de caráter, o seu temperamento de contrastes, onde se mistura o negativo e o positivo, este sempre mais acentuado pelo amigo, mas, mesmo assim, citando-lhe "os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo", "a constante trapalhada nos negócios", "a imaginação que o leva a exagerar até à mentira" e ainda "A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre d'Ourique, que sanará todas as dificuldades..." - e compara-o, propondo uma espécie de adivinha: "Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra? [...] Portugal."

Bem menos complacente é a auto-análise que Gonçalo faz ao entrar na torre, agora iluminada, depois de tantos anos de escuridão completa. Também nele se faz a luz e reconhece que muito errou, aviltou-se, tudo para "surripiar um punhado de votos" que seriam seus ao seu primeiro aceno.
Resumindo: nesta rápida análise dos quatro romances queirosianos, observei o olhar voltado pelo autor para a tradição, não o encontrando em OPB, procurando ressaltar a positividade predominante naquele CPA em que o passado é lembrado explicitamente, com respeito e saudade, numa estátua na qual se celebram poetas e cronistas da antiga pátria, naquele outro OM em que vejo a metáfora do Portugal antigo e genuíno no velho Afonso da Maia, e, finalmente, na ICR, na ambígua comparação feita por um personagem, entre Gonçalo e Portugal.

Nos quatro primeiros livros, Eça centrara a sua crítica nos personagens que centralizam as suas tramas e que se tornam, em cada novo romance, mais conscientes e, pois, mais responsabilizáveis pelas suas ações. A crítica que, através deles, atinge a sociedade, agrava-se, mas é contrabalançada por uma progressiva atenuação - uma espécie de fuga para o passado que vejo mais plena em A Cidade e as Serras, onde, além disso, a sátira não se faz à vida em Lisboa, mas em Paris, descrita como o espaço corrompido pelo excesso de civilização, pela "lama do vício", pela "poeira da vaidade", como diz o Zé Fernandes, que dela se despedirá para sempre. Espaço de que o 202 da Avenida dos Campos Elíseos é a metonímia, cujas salas e corredores são percorridos pelos bocejos de um Jacinto que, aos trinta anos, já começa a corcovar, pálido, ocioso, (o ócio é sempre apontado por Eça na raiz do erro e do falhanço), entediado, olhando os metros de livros que enfileirou nas prateleiras, sem ao menos folheá-los, tropeçando nos fios que o põem em comunicação com o teatrofone, o conferençofone etc. etc. Nada o interessa, mas não tem coragem para se afastar de lá. Forçado a ir para Tormes, vai a contragosto. O contato com a terra, a proximidade da gente simples e necessitada, os trabalhos a que tem de se dedicar fazem o milagre. Não corcova, não boceja, espalha-se em sua pele "um rubor trigueiro". O tédio desaparece: não há tempo para tê-lo. Faz obras nas casas dos empregados, sobe e desce a serra, come com apetite e dorme o sono do justo. E, para que tudo termine com um happy end casa com a prima de Zé Fernandes e tem dois filhos. Como diz o narrador: em sua alma "se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura".

Ao terminá-lo, damo-nos conta de que, se Paris fora a solução para o vicioso Basílio e o falhado Carlos Eduardo, se a África atraíra um Gonçalo consciente e ambicioso, só a serra portuguesa pudera restituir a Grã-Ventura a Jacinto exausto de civilização. Na ICR, Gonçalo acaba por voltar à pátria, e o narrador insinua a felicidade que o espera, mas na CS é da volta a Portugal que resulta a transformação da vida de Jacinto. A Portugal, não ao das cidades ou da capital, mas ao autêntico Portugal do campo, ainda não corrompido, guardador das virtudes do passado. E aqui lembramos os elementos positivos com que Eça foi demarcando o caminho de uma possível reabilitação da Pátria. Neles se insinua uma solução menos pessimista. Ao lado do Portugal perdido, que necessitava de um terremoto ou da invasão espanhola, que era "piolheira", "choldra ignóbil", há um outro Portugal, que foi, mas ainda é, em parte, e - quem sabe? - será. Depreende-se, pois, da narrativa, a par da imagem nítida, impiedosa e mesmo deformada da sociedade portuguesa, uma outra que, a princípio fora de foco, vai-se tornando mais densa, não chegando, todavia, à plena nitidez. Ambas se tinham personificado nos dois Gonçalos que coexistiam, antagônicos e suplementares. A própria duplicidade de Gonçalo-Portugal dá margem à esperança numa solução não muito realista, antes romântica e muito portuguesa, uma solução saudosista, de escapar para o passado, porque, como perguntava João da Ega, tão encarniçadamente realista, a Carlos Eduardo:

"que somos nós? Que temos sido nós desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão..."

Do poeta falarei agora.
Quando, em 1892, publicou o Só, António Nobre não teve a recepção que esperava e merecia. A maioria dos críticos o ignorou; outros o criticaram acerbamente, não aceitando a modernidade que ele trazia para o verso português, ao qual, mais que qualquer outro poeta seu contemporâneo, dava uma grande maleabilidade e uma rica diversidade. Ainda não era o verso totalmente livre, que virá depois, mas a mistura de metros, dos breves trissílabos aos alexandrinos, passando pelo verso de arte-maior, que vinha sendo recuperado por Junqueiro e outros, mas que em Nobre não constitui um metro único ou preponderante no poema, mas um dos que, em sua variedade, se agrupam, dando ao conjunto um ritmo múltiplo, extremamente musical e expressivo. Também não eram sensíveis à sua poesia tão acentuadamente egocêntrica, a qual, ao mesmo tempo que, com delicadeza extrema, apresentava seres idealizados, alongava-se em descrever insistentemente aspectos os mais miseráveis e mesmo repugnantes da paisagem humana.

O livro se abre por dois poemas intitulados "Memória": o primeiro, um soneto em alexandrinos, dedicado aos pais, e no qual se define como "Só, o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra!"; o segundo, também "Memória", composto de dísticos de arte-maior, insistindo em contar, agora mais longamente, a sua história e retratar-se: "Mais tarde, debaixo dum signo mofino, / Pela lua-nova, nasceu um menino.", que será autor de carmes que compôs no exílio, agora reunidos em livro, com o qual, adverte ele os seus "bons Portugueses", é preciso ter "cautela, não vos faça mal... / Que é o livro mais triste que há em Portugal!". "Memória" 1 e 2 são seguidos por um longo poema em que se reafirma o egocentrismo de Nobre e a propensão deste poeta invulgar para o drama. Quando digo drama, estou pensando em representação, em teatralidade, que nele é uma marca distintiva. António Nobre exerce este dom de representar com mestria, dele fazendo o veículo de sua expressão subjetiva, ator ele mesmo, protagonista de um drama que se inicia antes do seu nascimento, quando os pais se encontram pela primeira vez, amam-se e se casam. Morta a mãe, morto o pai, António fica só. "António", o poema que escreverá em 1891 - um ano após o Ultimatum inglês -, é a mais completa encenação da sua história. A própria disposição gráfica na página (que também se encontra em poemas anteriores e posteriores) se faz para distinguir os discursos do emissor, que, mais à esquerda, é narrador do passado - o tipo de letra é maior, os espaços interlineares, mais largos, os versos agrupam-se em quartetos de arte-maior e seu quebrado - e, mais à direita, em tipo bem menor e entrelinhas mais estreitas, em dísticos e tercetos alternados, começa por voltar ao passado remoto, para em seguida fixar-se no presente em que se situa, gravando impressões repassadas de emoção. Há, pois, duas vozes paralelas: mais forte, mais audível, a que narra; mais suave, a que exclama, a que lamenta, a que questiona, a que pede; aquela onde está presente a natureza - "E o Vento mia! E o Vento mia! / Que irá no Mar!" -, onde estão as coisas em geral, mas sobretudo a gente, a gente pobrezinha à qual se dirige, num diálogo sem resposta: "Ó bom Moleiro, cautelinha! / Não desperdices a farinha / Que tanto custa a germinar...", onde está a Morte, ama do poeta, que o acalanta. Os receptores da sua mensagem são, pois, muitos, diversos e diversamente situados; alarga-se o espaço e o tempo onde vai buscá-los: são os companheiros de Coimbra - "Meus camaradas! Estudantes! / Deixai o Poeta trabalhar." -, é Job, seu semelhante - "Conservo as mesmas tuas penas, / Mais tuas chagas e gangrenas, / Que não me farto de coçar!"; é o próprio Bairro Latino, onde escreve, é Georges, seu criado francês, a quem pede silêncio, é Camões, a quem pede ajuda, apelando para a coincidência de seu nome com o do hipotético escravo javanês do "Poeta do Mar-bravo" - "Tenho o nome do teu escravo: / Em nome dele e do Mar-bravo / Vem-me ajudar!" -; é o seu Cão (com maiúscula, como um nome próprio) que chora com ele, é um destinatário múltiplo não nomeado e, pois, não limitado, a quem dirige uma súplica: "Quando eu morrer, hirto de mágoa, / Deitem-me ao Mar! // Irei indo de frágua em frágua, / Até que, enfim, desfeito em água, / Hei-de fazer parte do Mar!"; por fim, é a si mesmo que interpela no dístico e no terceto finais: "Moço Lusíada! Criança! / Porque estás triste, a meditar? // Vês teu país sem esperança, / Que todo alui, à semelhança // Dos castelos que ergueste no Ar?" O belíssimo poema admite duas possibilidades de leitura: uma, mais esperada, seguindo a ordem dos grupos de versos, incluindo, portanto, as duas colunas, as duas vozes, estabelecendo, portanto, o diálogo do poeta consigo mesmo, alternando os tempos; a segunda, separando as colunas - as vozes - e lendo-as verticalmente, cada uma uma voz, já que é perfeito o encadeamento do sentido, numa feliz atualização do estilo engenhoso.

Entre 1891 e 1892 o poeta elabora em Paris, no Quartier Latin, um dos seus mais plenamente realizados e celebrados poemas: "Lusitânia no Bairro-Latino", todo ressumando a saudade que sente da Lusitânia natal o lusíada exilado. Este novo e bastante extenso texto poético é dividido em três partes. Em todas, o sujeito lírico se põe como um eu que interpela: na primeira, vagamente, a muitos; nas outras duas, diretamente, a Georges. Inicia-se por um verso constante de apenas um monossílabo que surge em negrito e em tipo maior, ao fim de uma linha pontilhada:

. . . . . . . . . . . .
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó,
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês d'Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse pra soldado,
Antes fosse prò Brasil...

O monossílabo em destaque, assim posto como se continuasse um solilóquio, é o título do volume e a marca do sujeito lírico que começa por parecer dar a palavra a uma possível terceira pessoa (disfarce do iniludível eu), que lhe chama "o Lusíada", lamenta-o e exprime desejos irrealizáveis, já que expressos a posteriori.

Lusíada, António está em França e acentua a sua solidão, relembrando o passado perdido, as gentes e as coisas que se foram e a quem pergunta, do presente em que está: "Que é feito de vocês? Onde estais? onde estais?". Nesta breve oitava (consideramos a primeira linha como um verso), temos versos de cinco medidas: o monossílabo inicial, os versos 2 e 4 - octossílabos, ambos, e rimados entre si. Entre os dois versos definidores do seu perfil de ser diferente, mal amando e mal-amado, por isso mesmo digno de dó, coitado, a circunstância espacial da longa caminhada, retratada no alongamento do verso de arte-maior, bipartido: "que vem de tão longe, coberto de pó". A este se segue, também bipartido, o eneassílabo onde se exprime metaforicamente a duplicidade que habita e aflige o sujeito lírico: ser a primavera e conter em si o outono. Ainda três versos, em dicção popular, até pelas contrações da preposição com o artigo: "pra", "prò", e pela utilização do mais popular dos metros em língua portuguesa - a redondilha maior -, como a ressoar uma voz que é corrente, que poderá ser a de toda a gente humilde que desfila pelas centenas de versos do poema e pela "terra encantada, cheia de Sol", do poeta.

António Nobre acentua tendências que já havíamos surpreendido no poema de seu nome, onde lhes apontei alguns traços de modernidade. Amplia-se o domínio dos metros, que se alternam e misturam ao longo de uma estrofe, soando quase como versos livres que só chegarão mais tarde a Portugal; são mais longas e amiudadas as descrições realistas da miséria, da fome, da doença, do aleijão, em quadros que não encontramos tão crus no naturalista Eça de Queirós; é nova a introdução da fala popular, com peculiaridades fonéticas, algumas do norte de Portugal, como a troca do v pelo b - "Senhor dos ramos/ Istrela do mar!/ Cá bamos!"-, a metátese que serve à rima - "Senhora d'ajuda!/ Ora pro nobis!/ Caluda!/ Semos probes!". Esta é a voz dos marinheiros, que partem para a pescaria nas lanchas que acabam de lançar à água; estamos vendo-as, como as mostra o poeta a Georges, convidado a atender ao primeiro apelo de António:

Georges, anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!

É bastante nova na poesia portuguesa a utilização da fala coloquial, discretamente iniciada por Garrett. Nobre a utiliza com mestria, aproveitando todos os recursos do seu discurso ao mesmo tempo cuidado e espontâneo. Entremeia os seus versos de exclamações, em que extravasa a sua emoção e que procura adequar à sua inclinação para o diálogo, a representação. Chamado Georges a ver uma das faces características do seu país, a das "esquadras" e "frotas", chama-o novamente, a ver outra. Outro vai ser também o tom, cheio de graça e malícia, não mais alcançado pelo poeta em outro poema; vou ler-lhes a primeira estrofe - 16 versos, de medidas diversas, de 4 a 12 sílabas, bem adequadas ao que neles exprime o poeta:

Georges! Anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha essas moças, olha estas Marias!
Caramba! Dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Maneis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faze-te Manel! Viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito,
Que hão-de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão.

Difícil, impossível mesmo seria tentar captar os múltiplos aspectos de sua poesia numa fala bastante breve. Fixei-me em alguns que me parecem caracterizá-lo melhor, com o intento de torná-lo mais conhecido, de fazer apetecida, sobretudo pelos jovens, a poesia deste que nunca deixou de sê-lo, desaparecendo aos trinta e três anos, e, mais, reafirmando sempre a criança que ficou dentro de si.

Respiguei, à pressa, certos pontos da sensibilidade e da virtuosidade que o distinguem. Não falei ainda da presença da morte, que surge na primeira página do Só e, quase sempre presente, nele está até à última. É a mãe que morre na primeira: "'Vou, ali adiante, à Cova, / António, e volto já... E ainda não voltou!'"; é a mãe que o aguarda no Hotel da Cova: "'Aqui, espero-te, há que tempo enorme! / Tens o lugar quentinho...'" Não só a mãe, mas outros dez personagens dialogam com Anto (o poema intitula-se "Males de Anto") que lá está, friorento, cansado da vida que decorreu entre as páginas extremas, querendo agasalhar-se e dormir. Um dia, já convidara o seu coração a repousar: "Meu Coração, não batas, pára! / Meu Coração, a Velha chama: / Basta, por Deus! Vamos dormir..." No último verso do último poema, ele suplica: "Ah deixa-me dormir, dormir!" e ouve-se a voz de Deus: "Dorme, dorme."

A morte, todavia, não o assusta; ele não a busca em sua transcendência, convive com ela, chama-lhe "a Velha", "minha Ama". Para apresentar-se diante dela num dia próximo, que ele ignora, mas pressente, estará preparado, pois já tomou as providências, não as de purificar a alma, mas as de, como bom representante do seu tempo, preocupado com a aparência em todas as ocasiões, encomendar, com todo o requinte, o seu caixão. E é com o poema "Balada do caixão", que concluo, retomando a imagem de um António Nobre que ouvimos a convocar Georges a ser Manel, aliando, ao tom elegíaco da maioria de seus poemas, a graça de quem sabe rir-se dos outros e de si mesmo, exprimindo-a em deliciosos versos.

Balada do caixão

O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte,
Ponteia e cose, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de veludo
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vai a aborrecer,
Fui-me lá, ontem: (era Entrudo,
Havia imenso que fazer...)
- Olá, bom homem! Quero um fato,
- Tem que me sirva? - Vamos ver...
Olhou, mexeu na casa toda.
- Eis aqui um e bem barato.
- Está na moda? - Está na moda.
(Gostei e nem quis apreçá-lo:
Muito justinho, pouca roda...)
- Quando posso mandar buscá-lo?
- Ao pôr-do-sol. Vou dá-lo a ferro:
(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)
Ó meus Amigos! Salvo erro,
Juro-o pela alma, pelo Céu:
Nenhum de vós, ao meu enterro,
Irá mais dandy, olhai! Do que eu!

 

Notas:

  • 1 António Nobre, Soneto 2, verso 14, Só, 9 ed., Porto, Tavares Martins, 1950, p. 146.