Cultura e Democracia

Cardoso Pires, o profeta da Revolução

Maria do Socorro C. Lima de Almeida
UFRJ

Aceitando o amável convite da professora Cleonice Berardinelli, como ex-aluna e colega da UFRJ, queria, antes de desenvolver o meu tema, fazer duas observações:

Ninguém melhor do que Cardoso Pires, cuja falta sentimos agora, para ser lembrado nos 25 anos do 25 de abril. Todos sabemos — e nos comovemos com isso — o quanto ele, como escritor e intelectual, se empenhou na mudança dos anos de chumbo portugueses para o florir dos cravos. Cardoso Pires, com quem trabalhei na minha dissertação de mestrado em 76 e na tese de doutorado em 85, tornou-se-me, mais do que um autor que se estuda, um autor que se ama.

Portanto, é com prazer e tristeza que falo nele agora. Tristeza? Por sua morte, pelos cravos que murcharam, pelo que podia ter sido e que não foi. Contudo, leio declaração de Otelo Saraiva de Carvalho, no Seminário 25 anos do 25 de abril, promovido pela UERJ, em outubro de 1999:

Portugal era subdesenvolvido, decrépito, estava isolado do resto do mundo. A Revolução de 25 de abril de 1974 restituiu ao país seu espaço geopolítico natural na Europa[1].

Então valeu a pena.

A segunda observação é sobre o título que dei a minha fala e quero agora explicar e estender. Este título — o profeta da revolução — refere-se especificamente a O Delfim, e queria alargá-lo um pouco e dizer: Cardoso Pires, o profeta da revolução e o revolucionário da escrita. Isso porque O Delfim, ao mesmo tempo que profetiza a revolução, sendo, por isso, literatura na revolução, também renova o romance português, é como um divisor de águas, mesmo sem ruptura total com o Neo-Realismo, sendo, por isso, revolução na literatura. Ampliando meu título, pretendo dar conta do, digamos, duplo sentido de O Delfim. Penso agora no título que dei a minha dissertação de mestrado: O Delfim: entre a escritura de uma aventura e a aventura de uma escritura.[2]

Como eixo central das apreciações que aqui serão feitas, escolho a temporalidade em O Delfim, abordando acessoriamente outros aspectos.

A obsessão do século XX com o tempo é notória, pela rapidez maior das mudanças e pelo encurtamento dos prazos históricos. A esta obsessão juntou-se a preocupação com a causalidade, estreitamente vinculada ao tempo. A ciência moderna revolucionou os conceitos de tempo e de causalidade, desde os paradoxos da relatividade até a segunda revolução, da física quântica, e a teoria do caos.

Esse tipo de preocupação atinge todas as artes, principalmente as artes temporais e mais especificamente a arte do romance. Segundo Mendilow[3], em sua obra clássica sobre o tempo, no romance moderno, a importância do tempo é mostrada em declaração direta ou em experiências técnicas com a temporalidade e com as convenções temporais. Uma coisa e outra são marcantes em O Delfim: longas considerações sobre o tempo e jogos com os eixos temporais. Proponho-me a dividir o tempo na obra em tempo na narrativa e tempo da narrativa. No tempo na narrativa, temos as considerações sobre o tempo em declarações diretas e no tempo da narrativa temos as experimentações com as técnicas e convenções. No tratamento desses dois tempos reside talvez a maior originalidade do romance de Cardoso Pires. O tempo na narrativa é puramente ideológico, linear, recuperável na História, tempo português de Salazar que se transforma em tempo revolucionário na história do romance. No que se refere ao tempo da narrativa, tem-se a desarticulação da cronologia, a negação do referencial, a ruptura do determinismo causa e efeito, levando a uma revolução no discurso. Antes de trabalharmos com os dois “tempos” de O Delfim, vejamos a história: trata-se de um caçador-narrador-autor que vem à Gafeira (=Portugal) para a temporada de caça, exatamente um ano depois da primeira visita. Na primeira visita, ele conhece o personagem principal, Tomás Manuel, dono da lagoa e, portanto, dono da aldeia, já que os habitantes vivem do que a lagoa produz. Entre uma visita e outra, acontecem duas mortes (a da mulher de Tomás Manuel e a do criado) e um desaparecimento (o do Engenheiro-Anfitrião, como o narrador às vezes o chama). Com esses fatos, a posse da lagoa passa ao povo, ou aos noventa e oito que o representam e, através do mito escatológico-cosmogônico desfasado[4] no romance, destrói-se o mundo antigo, caduco (a Gafeira é construída sobre ruínas romanas) e cria-se um mundo novo de justiça e liberdade que será festejado no arraial dos 98.

O largo — que é a Gafeira — e a Gafeira — que é Portugal — estão parados no tempo, vivendo das antigas glórias. Tomás Manuel, também chamado de Engenheiro, Infante e Delfim, vive na Idade Média, como o undécimo de uma série de fidalgos que se repetem no tempo. Essa Idade Média se perpetua através de senhores e servos (E esses servos, “Gaibéus lhes chamam”? Ou “tudo isto pode ser contado doutra maneira”?).

A primeira dissertação sobre o tempo é a da “mula vendada”:

Um ruído triste — uma nora a girar — escorre pela tarde. Relógio cego. Relógio de maquinismos perros, tocado por uma dessas mulas vendadas que nunca foram à tropa (...). A nora vai rodando de minuto a minuto, sente-se mas não se vê. E a mula-relógio arrasta-se num círculo de terra e de alcatruzes que se traduz num outro círculo, mas de sons e maior — uma área onde cabe a tarde e o largo (...)[5].

A segunda é a emblemática da lagartixa, o tempo português da História:

Espalmada na inscrição imperial havia uma lagartixa. Parda, imóvel, parecia um estilhaço de pedra sobre outra pedra maior e mais antiga, mas, como todas as lagartixas, um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente. Pensei: o tempo, o nosso tempo amesquinhado. (...). Lagartixa, meu brasão do tempo. (OD, p. 80-1)

Mas no momento em que, simbolicamente, os despossuídos assumem o poder ou em que há uma transferência de poder de uma classe para outra, também no sentido econômico de posse de bens materiais, inaugura-se dialeticamente um tempo novo. Vejamos a seqüência da lagartixa:

Que é o tempo para estas mulheres? O tamanho dum luto, duma ausência? E para o Engenheiro? (...). E, no que toca aos camponeses, que vem a ser o tempo para os camponeses-operários que trabalham na Vila? (...) E para mim, que sou senhor escritor?
Pergunto, e tenho a resposta comigo, num pedaço de papel que trouxe há pouco da loja do Regedor, uma licença de caça passada por ordem dos habitantes da aldeia, e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra. (OD, p. 82)

O sentido do tempo, que parecia ser diferente para cada um (passam viúvas-de-vivos) acaba sendo um para todos (o verdadeiro sentido do tempo) e pode ser captado pelo narrador (tenho no bolso a licença de caça...). O tempo é tão palpável que é captado por um papel que cabe no bolso.
O tempo se renova e é recuperável na História, mas quando se trata da narrativa, já não é a mesma a posição do narrador.

Quando ele volta à Gafeira e quer continuar a preencher o caderno como dantes “com prazer e meditação” eis que tudo mudou. O que no nível ideológico configura o bom sentido do tempo, a mudança, na narrativa é razão para perplexidade, deixa-o “de braços caídos, atordoado”. Tenta reconstituir o tempo passado, pela memória, mas a memória o trai:

Por isso, se pretender juntar aos meus apontamentos a menor ideia, a menor palavra, serei como o abade da Monografia, narrador de tempos mortos. Falarei obrigatoriamente de ruínas, misturarei ditos e provérbios, pondo-os na boca do filho quando pertenciam ao pai ou ao tetravô, numa baralhada de espectros em rebelião. (OD, p. 95)

Para o narrador, que procura recuperá-lo, o tempo já não é um para todos, é um tempo psicológico, com uma duração que já não se mede em relógios ou calendários. Algumas horas da segunda visita são “um ano vivido numa tarde” e os fatos são medidos por esse tempo particular: “em 24 hs a Gafeira sofreu uma desgraça transformadora”. O tempo, recuperável na História, perde-se na narrativa e acaba levando o narrador a finalmente desistir de narrar, como veremos.

Para trabalhar com o que chamamos o tempo da narrativa, vamos dividi-lo em dois eixos: o tempo da narração e o tempo da ficção que, por sua vez divide-se em tempo da ficção presente e tempo da ficção passada.

O tempo da narração é o espaço que decorre da chegada à Gafeira (mais precisamente à pensão de caçadores) e a madrugada de primeiro de novembro, quando desiste de narrar:

Desta maneira o Autor em visita despede-se de um companheiro de serões e de uma Ofélia local, de um dente excomungador e de mastins e ideias negras que lhe guardaram a cabeceira na véspera do dia de Todos os Santos e de todos os caçadores, o primeiro do mês de novembro de mil novecentos e sessenta e seis. (OD, 363)

O tempo da ficção presente e o da narração correm paralelos. O da ficção passada é representado pelos apontamentos no caderno, pela memória e pela Monografia do suposto abade Agostinho Saraiva. Só que o tempo da ficção passada é atualizado pela leitura da Monografia (que é, em relação à ficção presente e à passada, um mais que passado da Gafeira, como cidade romana).

Ao tempo da ficção presente, que corre paralelo ao da narração, como já se disse, vem juntar-se o da ficção passada, o que causa um verdadeiro estranhamento temporal:

Volto-me antes para o largo e, sem querer, torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo depois da missa. Sigo-o de perto, atravessando a multidão (com licença, Velho) por entre filhas de Maria, viúvas de vivos e rapazes de blusões comprados em Winnipeg, Canadá. Só que me demorei demasiado com coisas à margem, fantasmas, questões de café — e, com tudo isto, o nosso homem já está ao volante do carro. A seu lado, Maria das Mercês, jovem esposa; atrás, o criado mestiço entre dois mastins. “A Barca do Inferno” — resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera. (OD, p. 34-5)

A janela é da ficção presente e o “triste fim que os aguarda” é da ficção passada. Esse cruzamento dos eixos temporais vai-se acentuando até chegar a um verdadeiro interseccionismo pessoano que, aliás, é notado e anotado pelo narrador:

E quem escreveu isto: “Que pandeiretas o silêncio deste quarto... As paredes estão na Andaluzia... etc” Quem foi? (OD, p. 165)

Ora, trata-se dos dois primeiros versos da parte IV de Chuva Oblíqua, poema interseccionista de Fernando Pessoa. Para a intersecção dos tempos em O Delfim como uma técnica consciente e seguramente manipulada, caberiam mais dois versos, também de Chuva Oblíqua:

E os dois grupos encontram-se, penetram-se
Até formarem só um que é os dois[6]

Assim como a janela reunia os dois tempos, é um cantil que os reúne nos capítulos 26a e 26b. O cantil real é da segunda visita e ele o está bebendo no quarto da pensão de caçadores, mas vai aparecer no passeio de barco com o Engenheiro um ano antes:

‘Bebe’, vou eu a oferecer-lhe, quando reparo que, fora da caça, nunca ando com o cantil. De resto, se o tivesse trazido também não adiantaria muito. Pelo que tenho bebido esta noite, custa-me a crer que a aguardente ainda chegasse para uma golada a cada um. (OD, p. 296)

Como o narrador é também potencialmente caçador e por declaração própria Autor em visita, estamos diante de um caçador que não caça (no passado apenas passeia na lagoa e conversa com o Engenheiro e no presente não tem coragem de enfrentar a caçada devido à noite de insônia); um narrador que desiste de narrar por não conseguir descobrir a verdade e um Autor que se despede dos personagens e — por que não? — dos leitores: “Desta maneira o Autor em visita despede-se de um companheiro de serões e de uma Ofélia local, de um dente excomungador e de mastins e ideias negras que lhe guardaram a cabeceira (...).” (OD, 363)

Que escritor-narrador é esse que acredita e não acredita no tempo? É o profeta da Revolução e o revolucionário da escrita, que passa, como diria Nathalie Sarraute, da era das certezas a “l’ére du soupçon”.

Leio em Kenneth Maxwell, A Construção da Democracia em Portugal, de 1995, publicado em português só no ano de 1999, pela Editorial Presença, sobre o código para a Revolução dado através da estação católica Rádio Renascença. Todo mundo conhece, mas leio assim mesmo, é bonito, Kenneth Maxwell é respeitável e presto minha homenagem à Revolução e a Cardoso Pires:

Vinte e cinco minutos depois da meia-noite de 25 de Abril, José Vasconcelos leu em voz alta a letra da música que tinha no gira-disco. A canção era Grândola, Vila Morena, uma canção popular de José (Zeca) Afonso:

Grândola, vila morena
Terra da Fraternidade
O Povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade.
Em cada esquina utm amigo,
em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da Fraternidade.

Este foi o sinal poético para a revolta.[7]

E, para terminar, em O Delfim, o caçador que não caça, o narrador que desiste de narrar diz:

Depois, para me consolar, este ano é uma data especial e tudo mudou na Gafeira. O que conta é o festim das enguias e logo, a meio da tarde, o arraial dos Noventa e Oito, com tachos de cebolada a crepitar ao ar livre, vinho e concertinas. Isso, sim, é que é a caçada de hoje. Conta mais que o melhor cinturão de galeirões de crista, admitindo que ainda há bichos de tal espécie à face da terra e que não ficaram todos sepultados nos manuais.
Está dito, ao arraial não falto, custe o que custar. (OD, p. 362)

É a prefiguração poética da Revolução.

 

Notas

  • 1 Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, de 21 de outubro de 1999.
  • 2 Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da UFRJ, 1976.
  • 3 MENDILOW, A A O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, l972.
  • 4 FRYE, Northrop. Anatomie de la Critique. Paris: Gallimard, 1969, p. 168. Desfasagem, para Frye, são as modificações que sofre o mito para “entrar” numa narrativa dita realista, por exemplo, a enchente, em O Guarani como mito do dilúvio.
  • 5 PIRES, José Cardoso. O Delfim. 6. ed. Lisboa: Moraes, 1975, p. 55. Daqui em diante, usaremos as iniciais OD, seguidas do número da página, para as citações do romance.
  • 6 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar: 1969, p. 115.
  • 7 MAXWELL, Kenneth. A Construção da Democracia em Portugal. Lisboa: Presença, 1999, p. 76.