Cultura e Democracia

Espécies de espaço: democracia e exclusão em crônicas de João do Rio

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio / CNPq

A imagem de cidade partida atribuída ao Rio de Janeiro e popularizada pelos meios de comunicação sobretudo depois da publicação, em 1994, do livro-reportagem homônimo de Zuenir Ventura, pode ser tomada como ponto de partida para investigar-se, em outros momentos do século XX, algumas recorrências dessa imagem, enquanto construção discursiva efetivada por narrativas — ficcionais e documentais — que dramatizam e representam essa metrópole.

O próprio livro de Zuenir Ventura, ao estruturar-se em duas partes, revela a cidade dividida em dois momentos: um no passado e outro no presente. Indica que a imagem-título não é propriedade dos anos 90 atravessados pela violência. Assim, a primeira parte — “A idade da inocência” — busca mostrar como o Rio de Janeiro dos anos 50 já acumulava tensões e conflitos que iriam explodir nas décadas seguintes. Uma visão romântica e nostálgica costuma apresentar a cidade desses tempos como reconstrução ideal e não como a cidade real. Mas os anos dourados da Bossa Nova, das mitificadas Copacabana e Ipanema, símbolos de cosmopolitismo moderno e de um mundo menos agressivo e mais feliz, se vistos à distância às vezes escondem o seu contrário.

Na verdade, já existiam então “duas cidades”, ou uma “cidade partida”, mas a convivência amena, a obediência civil, a falta de antagonismos de classe mais acirrados “nem sempre deixaram perceber que havia um ovo de serpente chocando no paraíso” — ressalta Zuenir Ventura (1994: 11).

Se a primeira parte do livro é produto de pesquisa, que revelará como a violência e a corrupção já começavam, nos anos 50, a ser práticas constantes da polícia, a segunda parte — “O tempo dos bárbaros” — resulta de uma convivência que inclui um mergulho na favela, freqüentada regularmente pelo autor durante dez meses, motivado pela chacina de Vigário Geral, favela da Zona Norte, em que 21 pessoas foram assassinadas pela polícia, pretextando vingança contra os traficantes que haviam matado um policial. Convivendo com o outro lado da cidade, onde a vida não vale nada e a violência é a linguagem do cotidiano, o jornalista deu à sua experiência a forma de uma crônica — não uma crônica solar (como as de Rubem Braga, ou Fernando Sabino, ou Paulo Mendes Campos, nos anos 50 e 60), mas uma crônica noire. O relato constitui um conjunto de impressões de viagem a um mundo onde a República não chegou — declara o autor. E continua: “Na verdade, durante este século, desde a reforma de Pereira Passos e passando pelos planos Agache e Doxiadis, a opção foi sempre pela separação, senão pela simples segregação. A cidade civilizou-se e modernizou-se expulsando para os morros e periferia seus cidadãos de segunda classe. O resultado dessa política foi uma cidade partida” (1994:13), que, hoje, vem pôr em xeque o imaginário malandro e sensual que a caracteriza e camufla suas contradições agudizadas pela violência que se instaurou em seu cotidiano.

Aqueles planos urbanísticos redundaram no controle do espaço, através do planejamento, estabelecendo hierarquias excludentes, promovendo o mapeamento policial e totalitário do espaço, através de um projeto disciplinador e utópico, como o realizado pelo Barão de Haussmann, na Paris do II Império, modelo para as reformas do Rio de Janeiro, patrocinada pelos donos da República, na primeira década deste século, sob o comando do prefeito Pereira Passos, engenheiro de formação francesa que recebeu plenos poderes do presidente da República Rodrigues Alves (1903-1906) para executar o projeto de “regeneração” da cidade, conhecido popularmente como o “bota-abaixo”, devido ao grande número de demolições que exigiu. Tal projeto gera espécies de espaço, estreitamente relacionados com uma distribuição nada democrática de tais espaços. Esta política aponta para a lógica das oposições do discurso governamental e dos intelectuais a que se atrela a imagem de “cidade partida”, na verdade, cidades circunscritas pela lógica excludente e hierarquizadora. “Ela preside a própria tessitura do urbano. O caráter excludente da sociedade é também exclusão do espaço e exclusão de agentes sociais de determinados espaços” — como sublinha Margarida de Souza Neves (1994:139-140).

Esta lógica promoverá a intervenção no espaço, demolindo a cidade que denuncia um passado colonial e escravista que se quer esquecer, porque sua cultura está distante dos “figurinos” europeus adotados pela classes dirigentes, cujos pactos se opõem à “cidade submersa” (a imagem é de João do Rio). Esta será literalmente varrida da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute das camadas aburguesadas. A cidade partida é então gerada através de “uma linguagem mediante duas redes diferentes e superpostas: a física e a simbólica, que a ordena e interpreta”, conforme a formulação de Ángel Rama (1985: 32).

Se a atitude da cidade das letras era ordenar os signos para expressar uma política do poder instituído e justificá-la ideologicamente pelo discurso, parte significativa de nossos intelectuais colocou sua escrita a serviço do Projeto Oficial, ao mesmo tempo que expressava a aderência à euforia do “Rio civiliza-se”, ainda que sob o signo da exclusão e da hierarquia. A voz mais dissonante deste coro foi Lima Barreto que percebeu tais traços dessa modernização que segregava boa parte da população.

Enquanto isto, um outro Barreto — Paulo — ou melhor, João do Rio, que junta ao seu nome o nome da cidade, fala ambiguamente sobre ela: eufórico e orgulhoso de ser testemunho das transformações modernizadoras, e nostálgico do velho Rio que desaparecia, perdendo seus traços mais característicos para “ser tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçado de ser Paris” (a crônica “Velho mercado”, 1909: 214).

Deste modo, o Rio de Janeiro é para João do Rio, paradoxalmente, uma utopia e um inferno, como o mundo urbano foi para os modernos. Se a imagem citadina ocupa o centro da cena em seus escritos, não deixa de registrar o que chama de “círculos infernais”, através de um discurso irônico e crítico. Assim, copiando Paris, descreve minuciosamente o Rio, mas não apenas naquilo que ele tinha do figurino parisiense, mas também o submundo, o bas-fond, os aspectos miseráveis, seguindo ele próprio os seus modelos europeus, atrelando-se, neste tipo de texto, a uma convenção literária, o “mistério”, que vinha da tradição dos Mistérios de Paris, de Eugène Sue, convenção esta a indicar a maneira de desvelar o enigma, ou seja, fazer a cidade transparente e compreensível.

Esta atitude, às vezes revestida de certo cinismo irônico, pode ser constatada numa frase de Godofredo de Alencar, um dos pseudônimos de João do Rio. Esta frase parece um aforismo de manifesto que equivale a uma atitude que permeia a vida e obra de seu autor. Diz ela:

Nas sociedades organizadas, há uma classe realmente sem interesse: a média, a que está respeitando o código e trapaceando, gritando pelos seus direitos, protestando contra os impostos, a carestia da vida, os desperdícios de dinheiros públicos e tendo medo aos ladrões. Não haveria forças que me fizessem prestar atenção a um homem que tem ordenado, almoça e janta à hora fixa, fala mal da vizinhança, lê os jornais da oposição e protesta contra tudo.
Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e a ausência de escrúpulos. (Crônicas e frases de Godofredo de Alencar, 1916: 125-126).

Esta espécie de declaração de princípios confirma o que já despontava em contexto diferente, nos relatos da viagem a Lisboa, quando, depois de falar da aristocracia portuguesa observada numa récita de caridade no Teatro D. Maria II, discorre, em contraste, sobre “a abundante e negra miséria” dessa cidade. Escreve: “Eu sempre tive como princípio que só são realmente interessantes os ricos e os miseráveis. Um sujeito de mediana burguesia não é assunto em tempo algum, senão para o aborrecimento de quem analisa e ainda mais de quem lê tais análises”. Daí, a face dupla de seus escritos, em que o foco ora se dirige para a vida mundana da “gente de cima”, ora para as figurações da miséria, a “canalha” com seus imprevistos, para encenar os escombros que as fachadas modernizantes tentavam esconder. Ao lado do “cronista adandinado”, desponta “o radical de ocasião”, para usar as expressões de Antonio Candido (1980: 83-94). E como repórter moderno que, cheio de curiosidade e com o intelecto eletrificado, qual o personagem de “O homem da multidão” de Poe, vai atrás dos “mistérios”, em busca de lê-los. Interessa-se pelo avesso do Rio de Janeiro para decifrá-lo. Não via força na mediania; não lhe interessava o arrastar cinzento do cotidiano. “Seria uma calamidade se não existissem homens de destaque”, sejam eles os de cima ou os de baixo; “a penúria causa medo; a mediocridade causa medo e raiva, porque a mediocridade é sempre feliz” — declara também o frasista Godofredo de Alencar (RIO, J. do, 1916).

Enquanto jornalista, é um “diabo da atualidade”, “artista onipotente”, “folhetinista da vida”, e acredita que “só uma arte existe criando sem desfalecimento: o jornal [...], o único guia, o único condutor dos povos, a voz do oceano multidão” — conforme assegura em “Oração dos faróis”, conferência proferida em Buenos Aires, em 1915, e editada no livro Sésamo (1917). É outra declaração de princípio que pautou a carreira de João do Rio, que desejando ser “farol”, inaugura, entre nós, o jornalismo investigativo e elege a rua como seu campo de trabalho. Sabe que este espaço público representa a celebração da vitalidade urbana com sua diversidade e plenitude: a rua emergiu como símbolo fundamental da vida moderna. Escrevendo um gênero novo na imprensa brasileira, a crônica-reportagem, vai observar e encaminhar análises do meio e do momento em que viveu, tendo consciência do efêmero citadino, e quase sempre abdica da percepção distraída que passa ligeiro, apenas roçando a superfície da realidade. Nas reportagens, o olhar é mais atento e vagaroso e abre mais espaço à reflexão. Aí, ao em vez de “correr para frente”, no ritmo da vida presente, vai justamente apurar e trazer para a cena de sua escrita o que Bilac e outros eufóricos da Belle Époque carioca queriam expulsar: as manifestações da cultura popular tradicional e os aspectos da miséria, dos becos sórdidos, dos livres acampamentos da miséria. João do Rio reapresenta em suas reportagens a obscena escondida pelas máscaras consideradas bem-postas pela boa sociedade. Ao luxo opõe o lixo que a cidade produz e segrega. Percebendo a cidade partida, dá a ver o que denomina “os núcleos persistentes” e desafina, como sublinha Antonio Candido, “no coro de louvações do tipo ‘o Rio civiliza-se’, que saudava a urbanização e o saneamento como feitos suficientes. Estava, na verdade, mostrando a ferida escondida pela ostentação” (1980: 84).

As crônicas-reportagens de As Religiões do Rio (1904) e de A Alma Encantadora das Ruas (1908) encenam o que mancha o projeto da cidade da virtude civilizada, que a ordem racional planejou (a cidade ideal); ganham o palco da escrita aspectos da antitética cidade do vício, símbolo e estigma dos males sociais (SCHORSKE, 1987).

No início de 1904, João do Rio chama a atenção do público, ao realizar para a Gazeta de Notícias, a série de reportagens que constituem As Religiões do Rio, em que documenta as manifestações religiosas minoritárias da Capital. “O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa. Ao ler os grandes jornais, imagina a gente que está num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas [a exemplo de seu próprio pai]. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á. [...] Falai-lhes boamente, sem a tenção de agredi-los, e eles se confessarão — porque só uma coisa é impossível ao homem: enganar o seu semelhante, na fé. Foi o que fiz nas reportagens [...]; foi este o meu esforço: levantar um pouco o mistério das crenças nesta cidade”.

Esse trecho da introdução do livro demonstra o método da apuração de um trabalho de repórter: a indagação curiosa a quem pode servir-lhe de informante ou de guia. As crenças minoritárias faziam parte da cultura da cidade, mas meio camufladas, ou proibidas. Assim, quer o jornalista relatar a diversidade das religiões, para além do que era dado como homogêneo na voz da maioria. Embora forneça informações antropológicas, o que se ressalta é o caráter jornalístico, a que não faltam, por outro lado, tiradas de imaginação literária. Inspiradas segundo alguns estudiosos, no volume Les Petites Réligions de Paris (1898), do francês Jules Bois, o repórter vai em busca do desconhecido, o “mistério”, que aqui, ao lado do sentido religioso, ganha força de coisa proibida, e que a racionalidade não dá conta. Desta forma, sem deixar de transparecer certos preconceitos e certo tom de zombaria notados, aqui e ali, descreve quase sempre com fidelidade cultos afro-brasileiros (“No mundo dos feitiços”, em que, guiado, mediante pagamento, por um informante, o inteligente e vivaz negro Antônio, o repórter percorre os terreiros da Gamboa, Cidade Nova, Santo Cristo e cercanias da Praça Tiradentes), evangélicos, judaicos, satânicos (descreve uma missa negra com traços de literatura decadentista à Huysmans), e ainda os fisiólatras, os maronitas, a Igreja Positivista (onde ele próprio fora “batizado”), as cartomantes... A curiosidade do repórter é semelhante à dos leitores, confirmada pelo sucesso da série, que, editada em livro, vendeu mais de oito mil exemplares em seis anos, o que é bastante expressivo, se se leva em conta o restrito público leitor da época, num país com elevadas taxas de analfabetos.

João do Rio persegue, portanto, a diversidade cultural da cidade, atitude que também comanda as crônicas-reportagens reunidas no volume A Alma Encantadora das Ruas (1908), muitas delas editadas, anteriormente, nas séries “A pobre gente/Entre mendigos” e “A vida na cidade”, ambas na Gazeta de Notícias.

O texto de abertura — “A rua”, que havia sido uma conferência — tematiza o objeto das reportagens: o espaço público partilhado por todos, o espaço da diversidade, da diferença, “a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas”. Para reportar as figurações da rua, elege a metáfora biológica do corpo, que permite ler a cidade como algo familiar e instantaneamente apreensível. A leitura apóia-se em pontos de referência concretamente miméticos, ou culturalmente ligados à tradição, em que o narrador se ancora em seus trajetos pelos meandros do corpo urbano. Sob a inspiração da Musa das Ruas, título do texto que encerra o volume e que havia também sido uma conferência, da época da “epidemia das conferências” — pagas — que foram “o delírio, a nevrose, a ânsia da cidade”, conforme relata o autor na introdução de Psicologia Urbana, que reúne suas conferências proferidas, em 1905, quando pegou, no Rio, essa moda trazida de Paris por Medeiros e Albuquerque (MAGALHÃES JR., 1978).

A rua cujo turbilhão é considerado estéril para Bilac, já despontara como fecunda para os primeiros modernos, a exemplo de Baudelaire. Símbolo da cidade fervilhante, lugar das multidões, essa outra figura criada pela modernidade, a rua é foco de observação de João do Rio, que com ela se identifica pela empatia. Admira-a enquanto “epítome delirante do caleidoscópio da vida”, cuja “alma encantadora” ele procura apreender. Na cidade em mudança que vai perdendo a “aura”, é acometido justamente pela nostalgia da aura. E vai buscar aí a matéria de suas reportagens: o crime, a miséria, o delírio, os mistérios, as artes e tradições populares, que iam desaparecendo por ação de um cosmopolitismo patrocinado pelo Projeto Oficial de modernização mistificadora que queria essas marcas do Rio empurradas para a obscena.

Para captar a alma encantadora da rua e, por tabela, da cidade, é preciso flanar. Para compreender a psicologia das ruas, “é preciso ter o espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com o perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar”. E acrescenta:

Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a distinção de perambular com inteligência [...] O flâneur [...] acaba com a idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio [...]. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete [...]. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. (1987: 5)

O repórter, com a máscara do flâneur, lê o espaço público, metonimicamente representado pela rua, como realidade viva e dinâmica. A rua é como o homem: tem corpo e alma. O flâneur, que deambula e reflete, cheio de curiosidade, lê a cidade como um discurso, vendo-a enquanto inscrição do homem no espaço e no tempo. Lê os signos da cidade: o “corpo”, a base física, cujos significados — “a alma encantadora” — o narrador constrói pelo estabelecimento de nova sintaxe, nova gramática, nova semântica, portanto de outras conexões, diferentes das já normatizadas. Sua leitura é travessia por outras redes de conexão, motivada pela empatia-entusiasmo que identifica o narrador à rua. E produz outro discurso, a cena escrita, para a qual é chamado o leitor investido também do papel de flâneur que, agora, deambula pelo discurso-rua, caminho de letras impressas. O leitor e o narrador unidos pelo “amor das ruas”, criam uma inusitada cartografia, de que nenhum mapa dá conta. A alma encantadora, contudo, não está aí previamente dada; é construção do flâneur, e colado a ele, do leitor. Endossa-se por esta via o interesse de João do Rio pela multidão anônima. Vê a cidade como uma orgia de vitalidade, um mundo instantâneo e fugaz, que o leva a uma espécie de prazer (que João do Rio atrela à nevrose), o banho da multidão, e ensina-lhe a entregar-se ao imprevisto que surge, ao desconhecido que passa. Deste modo, dar uma alma a essa multidão é o verdadeiro papel do flâneur, como assegura Walter Benjamin, em O Livro das Passagens (1989: 224).

O flâneur é um ótico, diz Benjamin; e com a argúcia de fisiognomista, representa a ficção sombria da cidade. Fareja em ruas e becos sórdidos o genius loci, circulando devagar e a pé, a visitar lugares bizarros. Com este papel é que, no texto introdutório, privilegia a rua como imagem e lugar de possibilidades do humano e tece considerações gerais que funcionam como protocolos de leitura. Neste sentido, dá uma panorâmica exemplificadora do Rio através de suas ruas mais conhecidas, buscando-lhes a alma. Vai oferecendo o perfil físico e moral de algumas artérias, personificando-as: a rua do Ouvidor, “a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte”, o espaço mundano, passagem “para todos os desvios de muita gente boa”, a “irresponsável artéria da futilidade”; a rua da Misericórdia, “com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos é perpetuamente lamentável”, cujo nome nas esquinas parece indicar a muda prece que é o grito de Misericórdia! da mendiga velha; a das Laranjeiras, guarda tradicional da fidalguia, qual matrona convervadora; as ruas familiares e sem privacidade de Santa Teresa; a do Sacramento, a dos penhores, em que “refluíam todas as paixões e todas as tristezas, cujo lenitivo dependiam do dinheiro”. E o flâneur continua sua deambulação trabalhando a analogia das ruas com o humano, pois elas “são entes vivos, que pensam, têm idéias, filosofia e religião”; há as ruas falsas, as hipócritas, as que guardam dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes; as ruas possessas, com o diabo no corpo. E generaliza: “nas cidades grandes a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas”, para ir demonstrando o papel sobredeterminante da rua na criação dos tipos populares, nos políticos que vivem no meio dela, no homem-sandwich — o cartaz ambulante, no mundo das mercadorias, “na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões”, na invenção da caricatura, no universo literário... Em suma, traça o perfil físico e moral da rua, considerando-a “um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem insensivelmente e fazê-lo seu escravo delirante e mostrando-a enquanto o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso”.

O olhar inteligente mas sem raízes do flâneur dirige, então, seu foco móvel para fragmentos mais específicos do Rio de Janeiro, a grande personagem de A Alma Encantadora das Ruas. Já dimensionado no repórter atrelado ao mercado de trabalho, embora possuindo o olhar interessado, o flâneur permanece como comentador distanciado, que não se identifica com a realidade das camadas populares que observa e cujos tipos entrevista. É, portanto, com esse olhar, que registra, numa primeira seção, “o que se vê nas ruas” do Rio, recortando da variedade dos aspectos urbanos o pitoresco, o de certa forma exótico, se visto em relação ao universo das avenidas, como as pequenas profissões, os músicos ambulantes e os tatuadores; os fumadores de ópio, vício mais brutal que o éter da aristocracia, que encontara guiado por um amigo, “num pardieiro de Cosmópolis”, ali na cidade velha, nas ruas da Misericórdia e D. Manuel; os vendedores de orações, “essas fantasias do Pavor ignorante”, e os papa-defuntos, os chamados “urubus urbanos”; os pintores populares e os de tabuletas de reclame, “escudos bizarros da cidade”; e o carnaval, na crônica “Os cordões”, em que o narrador desdobrando-se num alter ego emprega o artifício narrativo do diálogo (recurso retórico recorrente em João do Rio), para opor o carnaval europeizado dos salões, dos corsos e das batalhas de confete incentivados pelas autoridades cariocas, ao carnaval popular de influência africana, dos cordões que “são os núcleos irredutíveis da folia carioca, que brotam mais vivos e são antes de tudo bem do povo, bem da terra da alma encantadora e bárbara do Rio”.

Se nessa seção do livro a ênfase cai sobre a constatação do pitoresco, vai, aqui e ali, insinuando a dicção de denúncia que eclodirá na parte seguinte “Três aspectos da miséria”, em que João do Rio se torna um “radical de ocasião”, dirigindo o foco do olhar para o que ele chama de “entulho humano”, “a pobre gente”.

Assim, em “As pequenas profissões”, já constata: “O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Mandchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda a sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver”. O repórter constata o desconhecimento dessa outra paisagem humana do mundo do trabalho que o progresso camufla. Resulta da distribuição de renda injusta um mercado paralelo composto pelos trapeiros, homólogos aos chiffoniers dramatizados por Baudelaire, em quem João do Rio provavelmente se inspirou para registrar nessa mesma crônica: “Todos estes pobres seres tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier — nada se perde na natureza”.

Esse mundo do trabalho subumano, nada exótico, é denunciado em “Trabalhadores da estiva”, “criaturas ferozes”, no dizer do delegado de polícia citado. O repórter que foi ali para ver, começa a parcebê-los de maneira bem diversa. Fortes em seus músculos, “pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de angústia”. Impressionado, elogia-lhes a Organização dos Operários Estivadores e constata: “Hoje, estão todos ligados, exercendo uma mútua polícia para a moralização da classe”, para coibir os roubos, a malandragem, as rusgas. E indaga: “Que querem eles? Apenas ser considerados homens dignificados pelo esforço e a diminuição das horas de trabalho, para descansar e para viver”. Dá a voz a um deles que justifica uma última greve por essa redução da carga de trabalho, questionando: “— O problema social não tem razão de ser aqui? Os senhores não sabem que este país é rico, mas que se morre de fome? É mais fácil estoirar um trabalhador que um larápio? O capital está nas mãos de um grupo restrito e há gente demais absolutamente sem trabalho. Não acredite que nos baste o discurso de alguns senhores que querem ser deputados”.

O mesmo diapasão continua em “A fome negra”, como se chama o trecho da ilha da Conceição, na baía de Guanabara, onde homens embrutecidos trabalham confinados numa espécie de campo de concentração. “É uma espécie de gente essa que serve às descargas do carvão e do minério e povoa as ilhas industriais da baía, seres embrutecidos, apanhados a dedo, incapazes de ter idéias”, ou quebram pedras. São como “máquina incapaz de poder viver de outro modo, aproveitada e esgotada”.

Aspectos do problema operário no Brasil e das condições de trabalho reaparecem em outros textos de João do Rio, a exemplo de dois artigos publicados no jornal O Paiz: “A propósito da greve” (28/07/1917) e “Os motoristas forçados à greve” (05/01/1920), manifestação de apoio aos taxistas cariocas em greve; “As horas de trabalho dos empregados do comércio” (28/09/1909), em que pede urgência para a votação do projeto que regulamentaria o horário comercial de doze horas, tema a que volta, na mesma Gazeta de Notícias, em 16/06/1911. E ainda “Os humildes”, de 23/05/1909, recolhido no volume Cinematographo, sobre os operários da Companhia do Gás do Rio de Janeiro que, por falta de pagamento, entraram em greve, deixando a cidade às escuras. Constata o que ficava por trás da cena urbana iluminada, só percebida quando a luz se apaga, como conseqüência de uma questão trabalhista. Vale a pena uma longa citação:

Esta grève do gás, que pôs em treva a cidade tantos dias, deixa apenas mais radicado um sentimento doloroso. E esse sentimento é tão banal que talvez toda a gente o tivesse, se observasse.
Quando pensou a cidade que havia, com efeito, por trás daquela sinistra fachada do Gás, homens a suar, a sofrer, a morrer para lhe dar a luz que é civilização e conforto? Quando esses homens, desesperados, largaram as pás, enxugaram o suor da fronte e não quiseram mais continuar a morrer, que idéia fazia a cidade — aquela elegante menina, este rapazola de passo inglês, o negociante grave, o conselheiro, o empregado público, os apaniguados da Sorte, daquele bando de homens, negros de lama do carvão e do suor, torcionados pelo Peso e pelo Fogo? Nenhuma. Esses pobres-diabos como nós, com família, com filhos, com ideais talvez, não existiam propriamente [...]. Só ao acender o bico de gás em vão é que surgiu a idéia do operário, do homem preso nas malhas de ferro de um sindicato [grande companhia capitalista] poderoso, com a frase: — Os operários fizeram grève ...
É a noção de uma classe de oprimidos, classe diminuta, classe anônima, com a sua vida inteira amarrada à polé do trabalho hórrido, e que, só ao cruzar os braços, punha em sombra uma cidade inteira [...]
Prestemos atenção aos condutores de homens, e deixemos a morrer os fracos e humildes — mesmo porque eles seriam incapazes de sair da engrenagem, da máquina fabulosa de carne e de aço de que são utensílios. (1909: 193-194).

Registros outros sobre a face obscura da cidade podem ser constatados em “As crianças que matam” (de Cinematographo, 1909: 31-39). “Dado o grau de civilização atual, civilização que tem em germe todas as decadências, o crime tende a aumentar, como aumentam os orçamentos das grandes potências, e com uma percentagem cada vez maior de impunidade” é a observação que fundamenta a análise da assombrosa criminalidade do Rio de Janeiro, mais espantosa ainda porque praticada por crianças. É o que percebe na cidade partida, guiado por um amigo (outro recurso recorrente nas narrativas de João do Rio), na flânerie noturna às ruas da Saúde, “o outro mundo, a outra cidade”, o “bairro rubro, cuja história sombria passa através dos anos encharcada de sangue [...], e que misteriosamente, para além das forças humanas, conseguiu criar a rede tenebrosa, o encadeamento lúgubre da miséria e do crime, insaciáveis”. Ou ainda em “Os livres acampamentos da miséria” (de Vida Vertiginosa, 1911), relato de uma visita noturna ao morro de Santo Antônio, guiado por um soldado, junto a um grupo de malandros, a pretexto de ouvir a seresta que se fazia lá em cima. Ressurge, aqui, a curiosidade pelo exótico desse mundo estranho que contrasta com a cidade iluminada lá embaixo, para o surgimento de uma favela, “aquela curiosa vila da miséria indolente”, “o arraial da sordidez alegre, livre de todas as leis”. Mas se o olhar é de interesse, não há possibilidade de empatia; quando o envolvimento parece intensificar-se, o repórter samba fora, atitude que funciona como tópico narrativo em muitos textos do autor.

As figurações da miséria são retratadas, ainda, em outros textos de A Alma Encantadora das Ruas. Aí, além das reportagens sobre o cárcere, observam-se: a denúncia de uma rede de mendicância que explora crianças; o ofício rendoso da extorsão pelo rogo dos mendigos, “profissionais de doenças falsas, mascarando um formidável cenário de dores e de aniquilamento”. E mais: em “Sono calmo”, o repórter desce aos “círculos infernais” de um albergue noturno, um desses “covis espalhados pela cidade”, guiado por um delegado de polícia (o recurso do “guia” se repete). E constata um submundo miserável de pesadelo, em que a canalha, o gado humano, vive em promiscuidade, numa atmosfera pesada de fedor fulminante, formando aquela chaga incurável, lamentável da cidade (palavras do repórter), enquanto lá fora se descortina o espetáculo feérico da natureza (outro recurso redundante em João do Rio).

Este relato — “Sono calmo” — é curiosamente exemplar na dicção de João do Rio, pois fornece um tópico que é marca de seu projeto escritural. Eis o que vale como declaração de princípio: “Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a miséria, ou se realmente, como Vergílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos círculos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de má fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava. Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças francesas há dez anos aparece o jornalista que conduz a gente chic aos lugares macabros; em Paris os repórteres do Journal andam acompanhados de um apache [homem perigoso, explorador de mulheres] autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma lei. Aceitei” (1987: 119).

Sem invalidar a atitude de denúncia em relação à miséria da “outra cidade”, que pôde observar como repórter-flâneur, é como “gente chic”, à maneira de seus modelos Oscar Wilde e Jean Lorrain, ou como jornalista que representa no teatro da ficção, que João do Rio visita esse outro lado do Rio de Janeiro, com o qual não se identifica. Deste modo, não faz mais que repetir uma lei do universo impostado da arte, realocando nos tristes trópicos um gesto aristocratizante dos decadentistas, embora “sem cacife de grã-fino” — como disse Antonio Arnoni Prado, em “Mutilados da Belle Époque” (1988: 68-74). O figurino e a lei estão sempre lá fora. É também para imitar Paris que ele registra os círculos do pavor que estavam ao pé, em nada impedindo, paradoxalmente, a atração por esse mundo degradado e degradante, que ele, marcado pela hiperestesia, pode também denunciar. Sem adbicar de sua máscara de dandy vestido com figurinos de Paris ou de Londres, que cobriam o corpo gordo que deambulava pelos lugares elegantes da Capital, João do Rio podia dar-se o luxo de visitar o submundo carioca, quando pode mostrar-se como radical de ocasião, que registra em forma de denúncia o avesso do Rio Art Nouveau, os mutilados da Belle Époque. A Cidade-Espelho também pode refletir os seus escombros. O cronista delicado e amaneirado tem também seus dias de radical chic.

Assim, ao construir pela letra espécies de espaço, João do Rio capta a alma das ruas e o mundo dos salões da Frívola City, sem esquecer de registrar as figurações da miséria, de uma cidade dita maravilhosa, gestada ao mesmo tempo como cidade partida, que as políticas públicas e as contradições da sociedade hierarquizadora e excludente só fariam agudizar ao correr do século fechado há pouco para balanço.

 

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Notas

  • 1 Este texto relaciona-se ao projeto “Cidade e nação: o Rio de Janeiro no início e no final do século XX (uma guerra de relatos), que tem o apoio do CNPq e da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio/Instituto Camões.