Cultura e Democracia

Escrever é cortar ou contar palavras?

Vera Follain de Figueiredo
PUC-Rio

Um olhar superficial sobre a literatura ocidental contemporânea destacará, num quadro hetereogêneo onde convivem tendências diversas, a predominância de obras cujo núcleo temático gira em torno do crime — tramas policiais variadas —, do sexo e dos bastidores da história. A literatura brasileira do final do século XX nos oferece este mesmo panorama. Um olhar mais cuidadoso, entretanto, vai nos permitir perceber que, pelo menos na ficção de alguns autores, a trama policial não está a serviço apenas da curiosidade gerada pelo processo de desvendamento de um mistério; o enredo perpassado por situações eróticas não pretende somente prender a atenção do leitor ávido por este tipo de assunto e tampouco os bastidores da história serviriam só para despertar o interesse a partir do desnudamento da vida íntima dos grandes homens.

Estamos falando de uma vertente da literatura atual marcada pela ambigüidade nos propósitos e por um estilo que se propõe trabalhar sobre uma multiplicidade de códigos. De um lado, utiliza esquemas de composição populares e, conseqüentemente, abandona a pretensão de escapar a qualquer pertinência genérica já codificada. De outro, elabora o desenredo e esconde outros códigos — filosófico, cultural, semiótico. Procurando afrouxar a tensão, que sempre marcou a arte ocidental, entre institucionalização e marginalidade, recuperando o desfrutável, oferece-se a uma dupla leitura. Uma que permite ao leitor comum o divertimento de superfície e outra que exige do leitor especializado a astúcia de ir além das facilidades aparentes. Um pé na negatividade, outro no mercado. Estética ambígua em tempos de descrença e, em decorrência, pouco afeita a heroísmos. Ambigüidade louvável se a considerarmos um esforço para manter viva a literatura. Restaria, entretanto, perguntar como o princípio de autonomização da esfera da arte, que fundou a modernidade estética, pela negação da face mercadológica e consumista da modernidade burguesa, pode sobreviver em meio ao total relativismo axiológico que caracteriza esses nossos tempos.

O retorno atual, por uma literatura que não se assume como direcionada unicamente para os interesses comerciais, a subgêneros de aceitação popular do século XIX — tanto ao romance histórico como ao romance policial — faz parte do movimento mais amplo de progressivo abandono das atitudes reativas, de protesto, surgidas no século passado, mas acirradas com o modernismo, contra a reificação mercantil da obra de arte operada pelo capitalismo. Trata-se, evidentemente, da reapropriação e do deslocamento histórico de antigas estruturas a serviço de uma situação qualitativamente diversa.

Como retomar, hoje, os subgêneros que ocuparam lugar privilegiado na hierarquia, segundo os princípios do sucesso comercial no século XIX, resgatar as origens populares do romance, depois de todo movimento crítico contra a submissão da arte ao mercado, desencadeado por escritores como Baudelaire e Flaubert? Bourdieu nos lembra que Flaubert tinha horror à literatura de gênero como vaudeville, romance histórico à maneira de Alexandre Dumas, ópera cômica etc., identificando-a com a subordinação às exigências do mercado. A reflexão que, no passado, deu origem à busca de autonomia da arte não pode ser elipsada na atualidade, pelo menos quando se trata de escritores menos ingênuos, com consciência da própria história interna do gênero. Daí que esta reflexão será trazida para o interior das obras contemporâneas, onde a questão da autonomia da arte fará o papel de fantasma do passado que sempre volta para incomodar e que precisaria ser exorcizado. O esgotamento da atitude de militante da recusa assumida pelos fundadores da estética modernista faz cair em desuso o heroísmo de Baudelaire, mas também se sabe que não é mais possível ser Balzac, pelo menos enquanto, para ele, não se colocou a angústia gerada pela separação entre sucesso de público e reconhecimento de qualidade estética. Se Flaubert afirmou que “uma obra de arte digna desse nome e feita com consciência é inapreciável, não tem valor comercial, não pode ser paga” (Bourdieu: 101) e , para Zola, “o dinheiro emancipou o escritor, o dinheiro criou as letras modernas”, sendo preciso aceitá-lo sem remorso nem infantilidade, reconhecendo a “dignidade, o poder e a justiça do dinheiro” (Bourdieu: 112), é um personagem de Rubem Fonseca que diz:

O escritor é vítima de muitas maldições, mas a pior de todas é ter de ser lido. Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo de consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado Shakespeare é bom porque escrevia de olho no shilling que cobrava de cada espectador. (V. Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a coragem de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake (Fonseca, Bufo: 177).

A questão da autonomia da arte, discutida no espaço ficcional, tem, dentre outras, a função de conquistar a cumplicidade do leitor cultivado, fazendo com que este perceba os mecanismos de concessão ao gosto do público maior como um jogo astucioso do autor, com o qual se identifica. A alusão à história interna do campo literário, através das referências de um romance a outro, conferindo à narrativa um grau de reflexividade, funciona, como observa Bourdieu, como uma piscadela do autor para o leitor capaz de apropriar-se das obras e não apenas da história contada.

A solução híbrida adotada implica tentar conciliar, no interior de uma mesma obra, os dois pólos entre os quais ela se debate — as exigências do mercado e a rejeição a uma completa subordinação às suas leis. Busca-se, então, o romance policial mas tenta-se evitar que toda a sua fruição seja submetida à revelação final da verdade sobre o crime. Busca-se o romance histórico mas, de preferência, incluindo alusões intertextuais para que o leitor mais esperto possa se satisfazer com a visão semiotizada da história.

A tematização da problemática da autonomia da arte torna-se mais necessária à medida que, na ausência do componente utópico, o atingir as massas não se justifica pelo sentido de missão, não se explica pelo propósito de conscientização das camadas populares ou de democratização da cultura. Como vimos, no trecho acima, de Rubem Fonseca, fala-se em salvar a literatura, impedir que ela agonize fechada em si mesma, mas não se deixa de mencionar o “shilling”, que atraía Shakespeare, ou seja, o lado comercial que limita a independência do escritor, induzindo-o, em muitos casos, a fazer concessões que também poderiam levar a literatura, por outro caminho, a agonizar. Entre a postura de Flaubert e a de Zola, o escritor, nesses novos tempos, ao aceitar o princípio de repetição implícito na idéia de gênero, ao buscar o romance histórico e a trama policial, faz do propósito mesmo de conciliar o inconciliável o princípio estruturador da obra, através do qual procura legitimar artisticamente o padrão híbrido.

Um livro como Bufo & Spallanzani, por exemplo, além do suspense, que desperta o interesse do leitor em busca de uma intriga envolvente, se constitui numa ampla reflexão sobre o romance, sobre a própria história do gênero e de suas relações com o mercado, com a expansão dos bens culturais e com a demanda burguesa, problematizando-se a sobrevivência desse tipo de narrativa no contexto do capitalismo de consumo contemporâneo. A crise de criação que atormenta Gustavo Flávio, personagem-narrador do livro, espelha a crise que o paradigma do romance moderno atravessa em nossos dias. Sua impotência para escrever uma nova obra traz para o espaço ficcional os impasses vividos pelo escritor, pressionado pelas exigências do mercado editorial e que, ao mesmo tempo, já não acredita na arte pela arte como refúgio diante do desencantamento do mundo, nem tampouco na arte engajada como instrumento para mudar esse mundo. A ruptura com as diversas esferas do poder, que definiu os cânones da nova legitimidade estabelecida pela arte moderna, já não se justifica nesses tempos pós-heróicos. Além disso, estar fora do mercado significa estar fora da mídia e esta se transformou na grande mediadora social, a tal ponto que temos a impressão de que aquilo que não é midiatizado não existe: a própria mística do artista maldito tem servido aos propósitos comerciais.

Se Gustavo Flávio sucumbe diante da culpa que lhe faz ter pesadelos com Tolstoi, pesadelos em que se contrapõem o espírito de abnegação deste último e o hedonismo, a incapacidade para o sacrifício heróico, para a disciplina e para a renúncia aos prazeres, por parte do escritor contemporâneo, e deixa de ser ficcionista, como vemos em E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto, Rubem Fonseca, vence o impasse, fazendo o romance da crise do romance. Bufo & Spallanzani é o romance do medo da impotência criativa, em decorrência das grandes transformações econômicas, sociais, tecnológicas pelas quais temos passado: começa com a narrativa de um pesadelo e se desenvolve sob o signo da ameaça de castração do escritor. Tematiza as facilidades de construção de um romance, hoje, com o auxílio do computador, que mistura citações, permitindo a mixagem do que já foi escrito, menciona o mecanismo de divulgação da obra através dos agentes literários, as vantagens financeiras do empreendimento, enfim, coloca em cena todos os inúmeros recursos acionados para a produção e divulgação da mercadoria livro, mas também nos mostra todas as pressões sofridas pelo escritor, quando as regras do campo literário estão submetidas à lógica do lucro, aos interesses de ordem material:

Aliás escrever estava se tornando um tripalium (V. Dic. Latim), um sofrimento (de repente, imaginei-me sofrendo da síndrome de Virgínia Woolf e tremi de medo); o diabo é que para um escritor como eu, que precisava de dinheiro para sustentar o seu vício barregão, cada maldita palavra, um oh entre cem mil vocábulos, valia algum dinheiro. Escrever é cortar palavras, disse um escritor, que não devia ter amantes. Escrever é contar palavras, quanto mais melhor, disse outro que, como eu, precisava escrever um Bufo & Spallanzani a cada dois anos. (Fonseca, Bufo: 188)

Ao tentar escrever um romance cujo tema girava em torno da questão do predomínio do prazer sobre a dor, a partir do dramático caso de amor que vivera com Delfina Delamare, Gustavo Flávio descobre paulatinamente seu afastamento dos parâmetros romanescos ditados por Flaubert, considerado pai da literatura moderna. Escolhera seu pseudônimo em homenagem ao escritor francês, mas não consegue seguir-lhe as orientações. Se ambos rejeitam a padronização da vida burguesa, há entre eles, entretanto todo um afastamento. A reação radical de Flaubert à sedução da cultura de massa, aos sonhos alienantes que ela fomenta, o leva a uma atitude de autocontrole, de disciplina, marcada pelo racionalismo e pela frieza do olhar, influenciado pela perspectiva científica — atitude de que Gustavo Flávio não é capaz. O escritor francês, com seu fervor pela arte pura, sem contaminações, é sobretudo um homem moderno. Gustavo Flávio é um hedonista, uma figura híbrida: mulato e voraz. Enquanto Flaubert sugere que o escritor abstenha-se do sexo para concentrar energias no trabalho de escrever, idéia expressa na metáfora foucre ton encrier, que serve de título à primeira parte de Bufo & Spallanzani, Gustavo Flávio se entrega a uma intensa vida amorosa e, ao contrário do escritor francês, para quem a arte não tem preço, aceita a relação entre arte e dinheiro, declarando: a necessidade de dinheiro, aliás, é uma grande incentivadora das artes (Fonseca, Bufo: 8).

Da mesma forma, ainda que considere que não há “coisa mais exasperante e burra que mulher romântica” e tenha toda uma sensação de superioridade em relação a Delfina Delamare, cujo nome é o mesmo da mulher que inspirou a criação de Madame Bovary, e que encarna a burguesa “que acredita no amor”, não consegue deixar de se enredar na trama romântica que a envolve: compartilha, em alguma dimensão, o bovarismo de sua personagem e não consegue vencê-lo, afastando-se da lição de Flaubert, cujo narrador, com sua impassibilidade, vence a sedução exercida por Madame Bovary. Dividido entre os paradigmas da alta literatura, tais como definidos pelo modernismo, e os apelos do sentimentalismo romântico, tão ao gosto da cultura de massa, Gustavo Flávio se esteriliza como ficcionista. Não consegue ficcionalizar/comercializar a história de Delfina, embora visse nela todos os ingredientes de um romance policial do agrado do público, e, assim, não consegue atender aos interesses pragmáticos de seu editor:

Voltei para o quarto e tentei escrever Bufo & Spallanzani. Meu editor queria que eu escrevesse outro policial como Trápola. “Não inventa, por favor. Você tem leitores fiéis, dê a eles o que eles querem”, dizia o meu editor. A coisa mais difícil para o escritor é dar o que o leitor quer, pela razão muito simples de que o leitor não sabe o que quer, sabe o que não quer como todo mundo; e o que ele não quer, de fato, são coisas muito novas, diferentes do que está acostumado a consumir. Poder-se-ia dizer que, se o leitor sabe que não quer o novo, sabe, contrario sensu, que quer, sim, o velho, o conhecido, que lhe permite fruir, menos ansiosamente, o texto (Fonseca, Bufo 170).

Não consegue também “reescrever” Madame Bovary, porque, este livro, como intuiu Minolta, a namorada de olhar pragmático, precisaria de um tratamento heróico, ou seja, exigiria uma atitude de afastamento daquele tipo de mulher/leitora, que, como Delfina Delamare, confundia o real com a ilusão romanesca, a ponto de determinar para si uma morte de romance, colhida das páginas do livro Trápola, de Gustavo Flávio: uma morte em consonância com a vida romântica que pretendeu viver, primeiro como a Cinderela que se casa com o homem rico, depois como a heroína capaz de abandonar toda a riqueza em nome de um grande amor. Gustavo Flávio, entretanto, em função do estado de indeterminação que o define, não mata apenas Delfina Delamare, como fizera Flaubert, para criar o novo romance, mata também o romance. Sua incapacidade para escolher uma única mulher, amando simultaneamente mulheres de temperamentos diversos, é a mesma incapacidade para escolher entre diferentes formas de arte: sente-se fascinado tanto por Minolta, com seu senso de realidade, equilíbrio e capacidade crítica, quanto pela sonhadora Delfina, com sua necessidade de evasão. Nutre uma certa nostalgia em relação às leitoras que, como Delfina, levando a ilusão romanesca às ultimas conseqüências, não deixam de apontar para a rejeição da realidade cotidiana burguesa, com seu pragmatismo medíocre: questão que está presente, hoje, em outras obras, como, por exemplo, em O Beijo da Mulher Aranha, de Manuel Puig, ou, como, no cinema, em A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, onde também se alude a um possível potencial transformador do idealismo romântico, mesmo que veiculado pela cultura de massa, quando assumido tão radicalmente pelo indivíduo, que seja capaz de romper com o conformismo que, por vezes, acompanha a chamada atitude realista.

Para matar o romance, por força da necessidade de matar a ilusão que daria vida ao universo ficcional, o personagem utiliza, como arma, aquele mesmo computador que facilitava o seu trabalho e que permite “deletar” a obra, numa fração de segundos, apertando uma tecla como quem aperta o gatilho:

Não existia mais Bufo & Spallanzani sobre a face da terra, tudo jogado na grande lata do lixo do oblívio. O comando Kill era tão peremptório que o computador obedecia sem discutir a ordem recebida.
KILL. Matar, destruir. Para matar Delamare também bastava apertar uma tecla do gatilho da pistola ao meu lado. Minha imaginação vagava. ( Fonseca, Bufo: 322)

Gustavo Flávio, que declara ter horror à cultura de massa, quando se refere às novelas de TV, se obriga a condenar Delfina Delamare, em nome da racionalidade masculina, que denuncia o auto-engano romântico, desde sempre identificado com a mulher, vista como a consumidora, por excelência, da subliteratura. Ao destruir a “feminina” ilusão romanesca, entretanto, não tem mais por que salvar o romance. Adota, então, a autobiografia, buscando, por esse caminho, conferir um sentido a sua trajetória, recuperar, em alguma dimensão, a unidade do eu fracionado e múltiplo, cuja própria identidade social é cindida pela mudança de nome: de Ivan Canabrava para Gustavo Flávio. Sabe, entretanto, que o pacto de veracidade, que as memórias pressupõem, não elimina a ficção.

Rubem Fonseca, como Flaubert, problematiza o romantismo de suas personagens e a impossibilidade de continuar sendo romântico nos dias de hoje. Faz o que Gustavo Flávio não conseguiu fazer, se alimenta do impasse de seu personagem, encenando a tensão que caracteriza o romance moderno, cujo eterno subtexto é o idealismo romântico que precisa negar para não se confundir com a cultura de massa. Para evitar que sua obra perca a força simbólica da arte, em meio aos apelos comerciais desse nosso mundo prostituto, que transformou o sonho em mercadoria, Rubem Fonseca fica com a contemplação da fumaça dos charutos, deixando os amores, as tumultuadas paixões, para Gustavo Flávio. Brinca, assim, com suas máscaras. Gustavo Flávio é uma delas.

 

Referências bibliográficas:

Bourdieu, Pierre. As Regras da Arte: a Gênese e Estrutura do Campo Literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Fonseca, Rubem. Bufo & Spallanzani. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.
———. E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.