Cultura e Democracia

A questão da ideologia na ficção literária

Leandro Konder
PUC-Rio

O título que dei ao meu tema não é muito adequado e isto vai ficar claro durante a minha exposição, pois na verdade o que eu pretendo é fazer uma ponte para falar de algo que não está no título, mantendo um suspensezinho.

Eu queria partir da idéia de ideologia, da ideologia como conceito de Marx, que depois foi retomado. O conceito de ideologia foi reelaborado por vários autores, que muito legitimamente o desenvolveram, numa direção que não é a de Marx, como Gramsci ou como Lenin, que trabalham com um conceito de ideologia que não é o de Marx, inclusive porque comporta formas positivas e em Marx a ideologia é sempre uma desqualificação – a ideologia é uma distorção do conhecimento.

Em Lenin, como em Gramsci, por caminhos diferentes, existem ideologias positivas e ideologias prejudiciais. Eu vou retornar a Marx e, a partir de Marx, a partir da idéia de Marx, retomar outros autores – os integrantes da chamada escola de Frankfurt – que também trabalham com o conceito de ideologia com uma acepção negativa, sempre negativa.

Quer dizer, ideologia não é mentira, não é o cinismo deslavado. Ideologia é um conhecimento que, ao ser construído, sofre uma pressão deformadora. Ideologia pressupõe conhecimento, não há ideologia sem conhecimento, mas ideologia também sempre pressupõe algo que atrapalha o conhecimento. Ora, na literatura de ficção, mas também em toda criação literária, existe uma reação contra essa distorção do conhecimento: a distorção do conhecimento não é eliminada, mas aproveitada. De que forma? Eu acho que os frankfurtianos, a partir de um autor até não muito conhecido que é Löwenthal, e depois retomado pelo Adorno e pelo Horkheimer, fica caracterizada a ideologia como sendo uma camuflagem das contradições.

A realidade se tornou problemática, o mundo real nos escapa em sua dinâmica, em sua riqueza, em suas complicações. Ele é sempre mais rico do que conseguimos compreender, e nós só temos possibilidade de conhecer alguma coisa efetiva do mundo real se percebermos alguma coisa das suas contradições. Quando estamos diante de uma construção harmônica, numa visão de harmonia no plano do conhecimento, significa que nos estamos mistificando ou estamos sendo mistificados, o que dá mais ou menos no mesmo.

Então, o dar conta das contradições é um desafio fundamental e de certa forma toda criação literária, quando bem sucedida, dá conta das contradições, as contradições aparecem. Eu acho que, de certa forma, sem forçar muito a interpretação, tivemos uma demonstração disso hoje aqui. Os dois colegas que me antecederam, a professora Eneida, quando falou numa contradição abordada por ela muito lucidamente, que é a da busca da universalidade através da comunicação – a comunicação pressupõe algo que se comunica, quer dizer, algo em comum. Então, a expressão literária busca a universalidade, e no caso exatamente descrito por ela, analisado por ela, nós tínhamos uma imagem de harmonia em torno da história celebrada da sociedade brasileira, a harmonia étnica e o oprimido, o negro, que em nome da universalidade era o desafiado e enfrentava o desafio no sentido de assumir a sua singularidade, a sua identidade. O caminho da universalidade, da universalização real passava pela coragem de assumir plenamente a sua singularidade, inclusive na expressão literária, imprimindo-se a sua expressão.

Por outro lado, o professor Ettore também falou no Concerto Carioca, do Antônio Callado, e fez uma análise das contradições daquele universo, análogo, sintomaticamente análogo, onde a nossa sociedade é a nossa própria sociedade recriada, transfigurada pelo talento, pela inovação, pela inventividade do autor. Eu, o que vou fazer aqui, é agregar mais um caso e agora cheguei ao meu verdadeiro tema, que não é a ideologia, que é a presença da distorção ideológica negada por uma criação literária.

A ideologia nega o real na sua riqueza contraditória e a criação literária nega a negação. Dessas duas negações surge a expressão literária mais criativa. Eu vou ter a audácia de falar de Fernando Pessoa (do Pessoa) na presença da professora Cleonice, na presença do professor Ettore, na presença de escritores portugueses. É quase uma desfaçatez alguém, com a minha formação, falar do Fernando Pessoa. Mas vou falar de um poema do Fernando Pessoa, especificamente em torno dessa questão que eu coloquei preliminarmente, que é o “Poema em linha reta”,[2] um poema dos mais conhecidos de Fernando Pessoa e que se abre, que começa com um verso bastante insólito, “Eu nunca conheci quem tivesse levado porrada”. Em seguida o poeta desenvolve o tema e se expressa: ele se sente único, ele se sente singular, ao comparar-se com todos os outros, com aqueles que conhece, que têm sido campeões em tudo e irrita-se com o fato de se ver cercado, como ele diz – “por príncipes” e “semideuses”.[3] E parece-lhe – ele diz isso no poema – que mesmo quando falam, quando se confessam, em momentos de abertura, quando comentam seus erros, explicitam seus equívocos, eles se protegem, na verdade, de qualquer desmoralização. Podem, eventualmente, confessar pecadilhos, mas silenciam sempre a respeito de quaisquer infâmias que tenham cometido. Relatam atos de violência, mas se calam sobre suas reações de covardia.

Por isso, Fernando Pessoa reclama no poema – “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho.”[4]

E aí a gente começa a notar que há um certo tom ambíguo no poema que é ou um tom de sarcasmo, de ironia, de provocação, ou um tom de tristeza, de desespero, de sinceridade lamentosa.

E ele indaga: “Como posso eu falar com meus superiores sem titubear?”. E se sente posto numa posição que contrasta com a posição desses seres ideais. Ele se colocando no plano da experiência real, vivida, e os outros se colocando no plano de uma experiência idealizada. Define-se:

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado [...][5]

E depois se pergunta, ainda mais uma vez, dramática e ironicamente: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Esse poema está nas Ficções do interlúdio e sua autoria é atribuída ao heterônimo Álvaro de Campos. Mas essa desconfiança bastante radical, Fernando Pessoa é que a manifesta em relação aos outros, em relação ao que, em outro poema, em outro contexto ele chama “A sociedade organizada e vestida”, e em relação também a si mesmo, à sua vida e à sua percepção da realidade, essa desconfiança aparece em numerosas passagens no conjunto da obra. É um tema recorrente na obra de Fernando Pessoa.

O mesmo Álvaro de Campos, na “Tabacaria”, diz:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.[6]

e, um pouco adiante, faz uma confissão terrível: “Falhei em tudo”.[7] E mesmo Ricardo Reis adverte: “Nada fica de nada. Nada somos”,[8] já envolvendo os outros também: começa por si, autocriticamente, mas se estende a um âmbito mais crítico, geral, mais abrangente.

Na obra ortônima, assinada pelo próprio Pessoa, também se pode ler igualmente:

Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sobre a morte e o céu.[9]

e no “Cancioneiro” a existência do poeta é caracterizada por ele mesmo como uma “Inútil vida, posta a um canto e ida / Sem que alguém nela fosse, nau sem mar”[10],. para concluir em tom patético: “Somos todos palhaços estrangeiros”[11]. Não somos apenas palhaços (eu gosto desse “estrangeiros”, que é fundamental, nem sequer temos o consolo da mesma linguagem para nos comunicarmos em nossas palhaçadas.

A reflexão autocrítica está presente, portanto, ao longo de toda a obra, do conjunto dos escritos de Fernando Pessoa. E eu acho que o que há de novo e o que há de mais original, mais forte no “Poema em linha recta” é o desdobramento da autocrítica, não mais numa crítica ao outro, mas uma crítica à falta de autocrítica dos outros. Quer dizer, acho que se pode enxergar nesse poema a revolta de alguém que se mostra efetivamente capaz de se interpelar a respeito do seu lado noturno, digamos. Discorre sobre o que ela tem de mais problemático, mais doloroso e mais fracassado, sobre sua própria vileza, e vê essa sua franqueza, essa sua coragem resvalar na muralha hipócrita de um sistema que está alicerçado em uma enfática autovalorização artificial, por parte das pessoas em geral.

Acho que essa seria uma característica importante do que Marx chamaria de “a ideologia dominante” e que para ele é sempre a ideologia das classes dominantes, em torno daquilo que nos cerca, que nos envolve.

É uma ideologia triunfalista e é uma ideologia que nos obriga a calar sobre os nossos problemas mais dolorosos, ou, quando nos permite falar, nos desqualifica na forma do deboche e do desprezo.

É uma ideologia que está ligada ao fato de a nossa sociedade ter sido organizada de tal maneira, que ela gira de modo cada vez mais exclusivo em torno do mercado, isto é, em torno de uma lógica calculista, competitiva, que é a lógica que tem resultado no crescimento da economia e também no aumento de todas as desigualdades sociais, de todas as exclusões mais perversas. Que incita os indivíduos a serem competitivos e que, a partir de um certo nível, os incita também a serem hipercompetitivos, isto é, solitários, infelizes e cruéis, desprovidos da possibilidade de viver mais intensamente a experiência da solidariedade humana.

E incita os indivíduos competitivos ou hipercompetitivos também a se promoverem publicitariamente. Esse sistema carrega então o florescimento de um gênero literário muito curioso que lembra hoje, de maneira bastante caricatural, de maneira bastante espúria, a velha epopéia, a epopéia dos crimes, a epopéia da literatura medieval, que era autêntica, que era bela e hoje está reduzida a êsse gênero literário sucedâneo que é o Curriculum Vitae, que nós todos conhecemos no nosso universo, que é a Universidade, mas que não é privilégio, não é prerrogativa nossa.

É uma coisa que todo o mundo que procura emprego, todo o mundo que se candidata a um emprego – vivemos no Brasil, no momento, embora disfarçadamente, uma crise do desemprego, com muita gente se candidatando a emprego e enfrentando esse desafio de redigir essa peça ignominiosa que é o Curriculum Vitae, peça que o candidato não pode deixar de redigir, texto que se insere sempre constrangedoramente num certo modelo, um modelo triunfalista.

Somos todos forçados a mentir, ou, na melhor das hipóteses, a sonegar algumas informações, incorrendo na unilateralidade. Assim, o Curriculum Vitae deve ser capaz de induzir aqueles que o lêem a uma superestimação das nossas qualidades. Eu leio o meu e fico horrorizado comigo mesmo. Na sociedade contemporânea, porém, isso é uma coisa importante, pois quem quer um emprego não pode deixar que o empregador tome consciência das limitações do candidato ao ler o Curriculum Vitae, que é, conseqüentemente, uma peça típica dessa ideologia dominante, utilitarista, imediatista, pragmática, essa ideologia que nos ensina a ver um anúncio de cigarro a dizer que “se deve levar vantagem em tudo”, e a julgar que isso é fundamental e predomina na sociedade contemporânea.

O que eu acho é que “O poema em linha reta” é uma extraordinária vitória contra a distorção ideológica, exatamente na medida em que ele se insurge contra o triunfalismo dessa ideologia. Fernando Pessoa, com o gênio poético que tem, consegue essa formidável honestidade intelectual de assumir um compromisso ético e estético com a compreensão e a expressão das experiências humanas mais desastrosas que a vida lhe possa ter imposto e que não poderiam nunca constar do seu Curriculum Vitae, mas constam da consciência que ele tem de que numa vida humana, mesmo nas vidas humanas consideradas mais bem sucedidas, o coeficiente de derrota é sempre muito alto.

A gente sabe que as perdas e os fracassos, ainda que nos matem – vão-nos matando um pouco, sem dúvida, dolorosamente –, ainda que nos matem por dentro, os fracassos e as perdas têm um papel essencial naquilo que fazemos de nós mesmos. Afinal, de um certo modo, podemos dizer que vida e morte são dialeticamente interligadas e, por isso, Fernando Pessoa fez do poema um momento densamente significativo de algo que seria uma espécie de avesso do Curriculum Vitae, mas que foi transformado por ele numa fonte de inspiração rica, que é o Curriculum Mortis. O Curriculum Mortis, quer dizer, aquele conjunto de verdades desagradáveis, constrangedoras, dolorosas e que constituem o avesso existente, embora muitas vezes mentido, sonegado, do Currirulum Vitae.
Eu acho que esse poema, de certa forma, inaugura o gênero Curriculum Mortis, e funciona como um estímulo e um exemplo para nós.

É só isso que eu tinha a dizer.

 

Notas

  • 1 Este texto aqui apresentado foi pronunciado pelo conferencista, valendo-se de apontamentos. Recuperado a partir de uma gravação, foi, sob a orientação do autor, levemente alterado no sentido de tirar-lhe a oralidade.
  • 2 PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização, Introdução e Notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Aguilar, 1972, p.418.
  • 3 Idem, ibidem, p. 419.
  • 4 Idem, ibidem.
  • 5 Idem, ibidem.
  • 6 Idem, ibidem, p. 362.
  • 7 Idem, ibidem, p. 363.
  • 8 Idem, ibidem, p. 257.
  • 9 Idem, ibidem, p. 566.
  • 10 Idem, ibidem, p. 192.
  • 11 Idem, ibidem, p. 193.