Cultura e Democracia

O Corpo e a Lei. O índio e a civilização no Brasil contemporâneo (algumas considerações a partir de Concerto Carioca de Antonio Callado)

Ettore Finazzi-Agrò
Universidade de Roma “La Sapienza”

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra. Devemos alcançar um conceito de história que corresponda a este fato. Teremos então diante de nós, como tarefa, a produção do estado de exceção efetivo.
W. Benjamin, Sobre o conceito de história.

O título deste seminário, situado na margem inferior de um século que está acabando e/ou no limiar de um milênio que vai começar daqui a pouco, nos impõe mais uma penosa obrigação, lança-nos mais um desafio — nos coloca, enfim, mais uma pergunta difícil, que se oculta exatamente nas dobras do seu caráter apodíctico. A questão, que talvez não tenha uma (só) resposta mas que é todavia impossível contornar, se esconde, de fato, na justaposição das palavras “cultura” e “democracia”, ou melhor, na fissura que se cria entre elas e que se torna precariamente visível naquela conjunção disjuntiva, naquele “e” que, ligando dois termos, estabelece um nexo e uma sinonímia aparentes no mesmo ato com que, na verdade, cava um vazio, assinala uma diferença insanável entre eles.

Nesse tempo privilegiado e funesto que estamos vivendo ou que nos vive, nesse fim que é um trânsito ou nessa passagem que não passa — nesse lugar sombrio, enfim, em que muitas contingências, muitas convenções, muitos lugares-comuns poderiam ser esclarecidos, deveríamos, com efeito, ter ou encontrar a coragem de desfazer velhos nós, atados ao longo deste século, sabendo, porém, de antemão que a única maneira de os resolver é cortá-los pelo meio, sem nenhuma pretensão de destrinçar fios problemáticos enredados há muito mais tempo, antes mesmo do começo deste milênio que vai rapidamente declinando. De fato, todos nós sabemos (ou deveríamos saber) que “cultura” e “democracia” são noções que um velho hábito nos obriga a pensar em conjunto ou até a sobrepor e a misturar em formas sintagmáticas tais como “cultura democrática” ou “democracia cultural”, mas noções que, na verdade, abrigam no seu interior instâncias heterogêneas ou heteróclitas, apontando para sentidos relativos ou históricos que nada têm a ver com o valor absoluto ou ideal que a gente costuma prestar aos dois termos. Basta, por isso, considerar o uso e o abuso das duas palavras no âmbito dos regimes ditatoriais que têm povoado o nosso século, pelo menos a partir dos anos 20, para nos dar conta do caráter arbitrário de ambas: o significado zdanoviano de “cultura” e o sentido que o fascismo atribuía à palavra “democracia” (em contraste com as, assim chamadas, “plutocracias” ocidentais), são exemplos elementares mas emblemáticos disso.

Quem depara com essa reversibilidade dos conceitos, com esse emprego aberrante de palavras-símbolos, pode justamente reclamar contra qualquer distorção ideológica dos conteúdos, mas fica porém obrigado a refletir mais um pouco sobre o quadro referencial, a dar mais um passo rumo à essência que aquelas palavras (fatalmente, sendo signos) descobrindo encobrem. E aí, no momento em que tentamos desbravar a proliferação semântica dos significados para voltar à clareira do significado originário, nos podemos, talvez, dar conta de que esses termos, na verdade, acabaram por se identificar, acabaram, mais ainda, por existir só dentro e através do seu uso histórico e do seu re-uso arbitrário. Isso, aliás, também porque é o próprio significado primitivo que, em vez de se apresentar como um terreno baldio e vácuo, já é uma selva inextricável e misteriosa de sentidos diversos: e se a cultura tem a ver tanto com a religião (cultus) quanto com o trabalho agrário, com o cultivo — remetendo então, ao mesmo tempo, para uma atividade espiritual e para uma prática material —, a palavra democracia alude por sua vez, desde o início, a um conceito vago e irrepreensível como dêmos, significando seja o território, o lugar demarcado, seja os seus habitantes — mas só aqueles que tinham o direito de residir livremente naquele mesmo território e que nele, então, podiam exercer o seu poder e a sua força decisional e decisiva (krátos).

É quase óbvio que, a partir dessa situação semântica intrincada, o valor dos termos “cultura” e “democracia” pode depender apenas do contexto em que eles são (serão e foram) utilizados. Começando a fornecer exemplos ligados à realidade brasileira, podemos lembrar como a missão civilizatória, isto é, de transplante do culto e da cultura europeus para o solo americano, foi a tarefa simbólica graças à qual se justificou ao longo da história a repressão, a marginalização e o apagamento de outras culturas presentes ou das culturas alternativas surgindo naquele mesmo território.[1] Por outro lado, todos sabem que é ao abrigo do adjetivo democrático que se colocaram e se colocam, no Brasil, movimentos partidários ou instituições estatais que nada tinham ou têm a ver com o sentido absoluto e gratificante que nós costumamos atribuir à palavra “democracia”.

É exatamente por isso, para tentar descobrir os verdadeiros mecanismos que regem a relação entre aquilo que definimos “cultura” e aquilo que entendemos por “regime democrático”, que eu convidaria a olhar para o título deste seminário não na ótica linear e apaziguante duma ligação analógica, mas na perspectiva assimétrica de um contraste entre o Corpo e a Lei. Contraste, entenda-se bem, também este historicamente esfumado, ambíguo, porque os dois termos se apresentam, mais uma vez, atados num nó indissolúvel, num novelo problemático — remetendo, por um lado, para a existência duma “norma corpórea” e dum “corpo legislativo”; harmonizando-se, pelo outro, no paradoxo duma identificação aparentemente sem resíduos que encontra a sua expressão mais clara no instituto jurídico do habeas corpus. Mas, dito isto, fica todavia inconteste o fato de as duas noções apontarem para um conflito fundamental e fundador: o que separa o Poder, na sua função normativa e ideal, do seu oposto, isto é, da escandalosa evidência e, ao mesmo tempo, da elusiva opacidade da instância corpórea. Ou seja, aquele “e” que, interposto entre “cultura” e “democracia”, pode ainda funcionar como trânsito, como conjunção ou como indicação duma relação necessária, aqui, entre o “corpo” e a “lei”, designa, de modo ambíguo, o lugar duvidoso e intransigente em que se enfrentam noções, em princípio, opostas e inconciliáveis — as mesmas noções, aliás, inscritas na antinomia physis/nómos proposta pela filosofia antiga. E para evidenciar o perigo de pensar de modo equívoco a relação possível entre cultura e democracia, nada melhor do que apontar para o impossível duma ligação entre a esfera corpórea, como dimensão cultural multíplice e aberta, e o plano normativo, em que a instância democrática se fecha na sua tautológica irrepreensibilidade.

Não escondo, aliás, que as reflexões acima e a minha decisão de falar na situação emblemática e ainda dramática do índio frente à, assim dita, Civilização no Brasil contemporâneo, foram ditadas justamente pelo absurdo de pensar o país (que é também o meu, se o amor pode ser uma forma estranha de posse) nos termos tanto de uma cultura una e inequívoca, quanto de uma democracia realizada. Retomando o subtítulo dum livro em que colaborei, acho que nesse limiar entre os tempos, deveríamos, pelo contrário, ter a coragem de re-ler a cultura brasileira como apagamento de rastros[2], vendo nela, não a precisão de um dado histórico arquivado, mas a indefinição dum processo que, ainda hoje, assenta numa espécie de “exclusão inclusiva” — ambiguamente “democrática” — dos portadores duma cultura outra. Nessa perspectiva, a decisão de falar no indígena, ou melhor, a partir do indígena, representa para mim a escolha dum ponto de vista radical pelo qual observar e, se possível, interpretar de forma desmistificante a relação entre cultura e democracia, no sentido dum conflito ainda aberto entre o corpo e a lei no contexto brasileiro.

Claro que tudo isso teria sido impossível para mim, que trabalho apenas com literatura e com seus arredores, sem o apoio duma voz forte e fascinante, sem a ajuda dum autor que, ao longo da sua vida, tentou representar de modo incansável e inquietante esse contraste simbólico: falo, obviamente, de Antonio Callado, em cuja obra, a partir de Quarup até A Expedição Montaigne ecoam, justamente, tanto o conflito quanto os modos e as formas problemáticas em que ele é resolvido no Brasil contemporâneo. O romance, porém, em que eu continuo encontrando elementos básicos e figuras deslumbrantes para entender o funcionamento da relação entre physis e nómos no âmbito da Modernidade, é sobretudo Concerto Carioca (1985). Obra que, curiosamente, não recebeu a atenção reservada às outras do mesmo escritor, mas que eu considero crucial para penetrar a lógica — lógica às vezes paradoxal — daqueles encontros democráticos e daqueles desencontros culturais sobre os quais assenta a sociedade brasileira de hoje.

A história proposta é, não por acaso, a de um conflito, que chegará a ser mortal, entre um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio, cujo nome é Xavier, e o jovem indígena Jaci. O primeiro, que na abertura do romance trabalha na biblioteca do Museu do Índio no Rio de Janeiro, se apresenta desde logo como uma pessoa que, dirigindo um Posto do SPI no Araguaia, matara um indígena; o segundo, vive na Casa dos Expostos, no orfanato da Santa Casa, recusado pelos seus pais pelo fato de ser hermafrodita. Aquilo que ressalta logo é a natureza “fora de lugar”, o caráter “excepcional” dos dois protagonistas: um protetor que, na verdade, mata aqueles que deveriam ser os seus protegidos; um índio marginalizado pelos representantes da sua própria raça e vivendo, por assim dizer, idealmente “ex-posto” num contexto urbano.

Seria útil, a esse respeito, refletir um pouco sobre esta exceção marcando as figuras esboçadas por Callado, já que a situação clássica de oposição entre physis e nómos, entre cultura e incultura, entre o índio e a civilização, entre urbano e selvagem, se apresenta desde o início perturbada, justamente pelo estatuto de dois personagens “tomados fora” (o que excetuados etimologicamente significa) da Lei. Tanto Xavier quanto Jaci, nesse sentido, vivem num estado que — na esteira de Jean-Luc Nancy[3]— eu chamaria de “banimento”, de “a-bandono”, isto é, numa condição-limite colocada entre o dentro e o fora da norma. Citando um filósofo italiano, que tem estudado justamente como a exceção seja de fato a estrutura da soberania:

Aquele que é banido não é apenas posto fora da lei e não é indiferente a ela, mas é abandonado por ela, ou seja, é exposto e arriscado no limiar em que vida e direito, exterior e interior se confundem.[4]

E traduzindo estas considerações nos termos narrativos de Concerto Carioca, teremos a ver com dois personagens que, encontrando-se “ao abandono” da Lei, se enfrentam no limite confuso entre vida e direito, entre o caos e a norma: de um lado, Xavier, bandido/banido e ao mesmo tempo representante da Civilização, da Razão e do Poder, que desenha estratégias complicadas para restabelecer a ordem na sua vida desarranjada, para reatar os fios da sua existência, cortados por culpa do crime cometido e dum namoro malogrado; do outro, Jaci, também ele abandonado pela sua tribo, ex-posto, ab-norme, e, ao mesmo tempo, organicamente perfeito, figura arquetípica da inteireza e da plentitude sexual que, não por acaso, se apresenta, com a sua corporalidade dupla e una, como uma espécie de signum contradictionis, isto é, alvo de desejo e de ódio por parte dos outros personagens.

O limiar no qual esses dois símbolos híbridos, esses dois personagens déplacés, essas duas entidades borderline se encontram e se defrontam é um espaço também ele simbólico como o Jardim Botânico: lugar abandonado em que vigoram o bando e os bandidos; entremeio duvidoso que é dentro da cidade sendo fora dela; dimensão intercalada entre o espaço urbano e o selvático, entre physis e nómos, participando das duas naturezas e, ao mesmo tempo, permanecendo estranho a ambas. O Jardim, nesse sentido, pode ser visto pelos dois protagonistas a partir de perspectivas opostas: Xavier o interpreta (ou o “inventa”, como se diz a certa altura[5]) como o lugar em que a natureza é ordenada, disciplinada, posta finalmente sob o império da Razão e da Civilização; para Jaci, ele é o espaço transitório e plural onde é bom viver, em que a sua identidade ambígua pode encontrar uma possível realização no caráter, ao mesmo tempo, inter-posto e ex-posto dessa dimensão banida. E entre a invenção de um e a vivência do outro, entre a ilusão civilizatória e a “isenção” da barbárie, aquilo que se torna evidente nesse espaço disputado é, a meu ver, não só o fato dele ser quase um resumo da história cultural da Nação, mas ainda o fato dele denunciar a impossibilidade dessa história, isto é, o fracasso de qualquer compromisso entre as culturas, a inviabilidade de todo projeto realmente democrático, tentando combinar instâncias (étnicas, sociais, ideológicas…) diversas.

O romance, não por acaso, é uma crônica de desencontros sucessivos (um Heleno que faz a cirurgia para se tornar Helena só para descobrir que o seu amante, do mesmo nome, se tinha submetido a uma idêntica operação para mudar de sexo; cada personagem ama uma pessoa que ama outra pessoa; uma freira se torna dona de um motel etc.), o texto, então, apresenta uma sucessão infinita de deslocamentos ou de deslizes em relação ao papel fixado no início, ao ponto de mostrar o seu distanciamento irônico a respeito do seu título: se de concerto, de fato, se trata, é apenas na forma e no tempo de um total des-concerto que o leitor pode perceber-lhe o ritmo, descobrir a sua melodia descompassada em que se espelha a história improvável e desafinada do país.[6] E quem dirige esta orquestra caótica, em que ninguém toca o seu instrumento, em que ninguém se encontra no lugar próprio, são justamente os dois personagens-mestres de Xavier e de Jaci: um empurrando para o lado da Lei, outro puxando para o lado do Corpo; um impelindo ativamente rumo à ordem, outro compelindo passivamente para o caos; um desejando, outro sendo desejado — ambos, porém, emblemas e marcos duma “exceção” tornando-se regra e envolvendo, aos poucos, todos os outros personagens.

No espaço provisório do Jardim então (dominado, repare-se, pelas estátuas de Narciso e de Eco, uma presente, outra, metaforicamente e materialmente, ausente) o que se encena é um jogo de cabra-cega: o rondó duma Nação que sem fim procura a si mesma, que projeta a sua legitimação, voltando, porém, sempre ao princípio oco da Lei; o paradoxo dum país que se espelha — se espelha “de corpo inteiro”, por assim dizer — sem se reconhecer e que se realiza apenas como reflexo imaterial, já sem corpo, daquilo que ela desejaria ser. E o desenlace da história, com o assassinato de Jaci e o suicídio de Xavier sempre dentro do Jardim, mostra de fato a ilusoriedade e a mistificação inscritas em toda “ficção da origem”: naquela mitologia nacional, sobretudo, apresentando o Brasil como o espaço duma convivência “democrática” entre as culturas, duma confraternização, tanto ideal quanto física, entre raças diferentes. Aquilo que, pelo contrário, resulta é que essa lenda só pode ser lida pelo avesso: como história dum conflito que não se resolve, ou melhor, que encontra a sua solução apenas numa condição de “a-bandono” — dentro de um estado de “banimento” especular: um Direito que se excetua para incorporar (em sentido pleno) o seu oposto; uma Natureza que se ex-põe, se põe fora de si mesma para conquistar a sua legitimidade.

O ponto de encontro entre estado de natureza e estado de direito, entre physis e nómos, é essa margem terceira e ilocável na qual as duas noções mutuamente se neutralizam, se incluem e se anulam uma na outra, se afirmam, enfim, na sua exceção. Giorgio Agamben — o filósofo italiano de quem já citei um trecho — indo à procura dos fundamentos da soberania, tem encontrado no caminho uma figura jurídica estranha, contemplada pelo direito romano mais antigo: a do Homo sacer[7]. Nos testemunhos de que dispomos, o “homem sagrado” é apresentado como aquele que, em conseqüência duma falta cometida, pode ser assassinado mas não pode ser sacrificado e Agamben mostra como o paradoxo sobre o qual assenta esta figura “matável e insacrificável” se reflete, simetricamente, no paradoxo do poder soberano que, também ele, só pode exercer-se ausentando-se de si mesmo — só na forma, então, de uma Lei que se nega, que sai de si própria para reafirmar a sua legitimidade e o seu poder. Acho que Concerto Carioca pode ser interpretado como uma grande alegoria desse paradoxo ligando, num nó de morte ou de banimento, duas figuras opostas: de um lado, Xavier, instância soberana, emblema da Razão, da Lei e da Ordem, que se coloca fora dessa esfera para exercer o seu poder de vida e de morte[8]; do outro, Jaci que é a vida na sua nudez extrema, que é a corporalidade no seu grau máximo, até se tornar uma entidade incorpórea, uma não-pessoa, puro eco do desejo ou da rejeição dos outros — alguém, justamente, que (como todos aqueles da sua raça ou da sua posição social, ao longo de toda a história brasileira) “pode ser assassinado mas não deve ser sacrificado”[9].

A violência marcando desde sempre a história brasileira é aqui representada de modo exemplar na relação entre dois pólos: de um lado, o Poder (o colonizador, o bandeirante, o fazendeiro, o político, o militar…) que para manter a sua Lei se excetua dela, se ausenta do papel e da função que, em princípio, lhe são próprios, “abandona”, enfim, o seu lugar originário; do outro, o “homem sagrado” (o colonizado, o índio, o escravo, o sertanejo, o pobre de todos os tempos…) que se pode matar sem culpa, ficando, porém, banido na sua sacralidade, sendo todavia preservado como ícone vazia de si mesmo. E o gênio do escritor, de fato, aquilo que faz de Concerto Carioca um livro incontornável, não consiste tanto em repropor antigas dicotomias, as muitas diferenças e os contrastes infinitos marcando a história do País, quanto, justamente, no fato de mostrar como existe um elo de sangue e de morte ligando, também no Brasil de hoje, carrascos e vítimas, opressores e oprimidos, o “poder soberano” e a “vida nua”[10].

Se as palavras “cultura” e “democracia” têm ainda um sentido no mundo contemporâneo, teremos então que o procurar apenas naquela zona duvidosa e medonha que se entrevê no romance de Callado: naquele espaço sem lugar em que vigoram uma Lei sem corpo e um Corpo sem lei; naquela zona liminar em que a violência, exercendo-se, se abole, em que o poder, tornando-se ato, se suspende nele. Aí talvez, nesse lugar bandido e abandonado onde a vida sacra é compartilhada, “democraticamente”, por muitos corpos, se pode dar uma forma estranha de “concerto”, isto é, de encontro finalmente paritético entre culturas díspares que, anulando-se mutuamente, mutuamente se combinam numa história que está além e fora da história — uma história, enfim, em estado de exceção.

 

Notas

  • 1 A referência óbvia é, neste caso, o primeiro capítulo do livro de Alfredo Bosi, Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11-63.
  • 2 Hardman, Francisco Foot (org.). Morte e Progresso: Cultura Brasileira como Apagamento de Rastros. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.
  • 3 Veja-se sobretudo, desse autor: L’Impératif Catégorique. Paris: Flammarion, 1983.
  • 4 Agamben, Giorgio. Homo Sacer: Il Potere Sovrano e la Nuda Vita. Torino: Einaudi, 1995, p.34.
  • 5 Cf. Callado, Antonio. Concerto Carioca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.213.
  • 6 Sobre a metáfora musical presente no título do romance, veja-se o meu artigo: “Nos Limiares do Tempo. A Imagem do Brasil em Concerto Carioca”, a sair em breve nos Anais do Simpósio Brasil, país do passado? (org. por Lígia Chiappini Moraes Leite, Berlim, 23 a 25 de junho de 1998).
  • 7 Cf. G. Agamben, op. cit., p. 79-89.
  • 8 Sobre este “excetuar-se” da soberania (entendida como aquilo “que não pode ser incluído na totalidade a que pertence e não pode pertencer ao conjunto em que é já, desde sempre, incluído”, gerando, de fato, a impossibilidade de distinguir entre o dentro e o fora, entre exceção e norma [Homo sacer, p. 30]), Agamben fundamenta, aliás, toda a sua reflexão sobre as experiências coletivas e os eventos históricos mais trágicos deste século XX. Entre eles, como brasilianista que sou, não poderia deixar de incluir os regimes ditatoriais, os Atos Institucionais (repare-se nessa definição que remete para uma instituição se destituindo no “ato”, ou melhor, para um poder soberano atuando através de uma exceção “normalizadora”), a opressão e a violência, que este país tem agüentado ao longo da sua história recente.
  • 9 Para ter um exemplo disso, bastaria apenas considerar o estatuto do índio na visão jesuítica e, sobretudo, na concepção política do Padre Antônio Vieira (que tanto influenciou a legislação da coroa portuguesa durante muito tempo). Vieira, como todos sabem, considerava não sacrificável e, por isso, sagrada a vida dos indígenas, admitindo, porém, a escravidão e a matança deles no interior daquela que ele definia como “guerra justa” (mas qual é a guerra que pode ser considerada justa contra pessoas que são julgadas como sendo antes ou fora da lei, no limiar da norma? Uma questão que não pode senão ficar sem resposta). Nesse sentido, um artifício dialético — como foi definido, com toda razão, pelos intérpretes do pregador barroco — poderia na verdade ser também encarado como a retomada inconsciente de um princípio jurídico antiqüíssimo, pelo qual o homem em estado de exceção pode ser morto sem ser imolado, vigendo nele apenas a “vida nua”, aparentemente destituída de qualquer valor político. O índio, enfim, que nasceu na terra, à terra não pertence, não faz parte da nação e da norma estatal, sendo apenas o seu limiar ilocável e sagrado. Poder-se-ia ainda ler, nessa perspectiva, o meu artigo: “En los umbrales de la dialéctica colonial: el indio como frontera en el siglo XVI”. In: Fronteras, Etnias, Culturas: América Latina, Siglos XVI-XX, org. por Chiara Vangelista. Quito: Ed. Abya-Yala, 1996, p. 93-110.
  • 10 A expressão “vida nua” (bloß Leben) já aparecia, aliás, em Zür Kritik der Gewalt, de Walter Benjamin, para denominar o lugar de encontro, o nexo profundo entre Violência e Direito. No seu livro, Agamben não só coloca essa noção num âmbito histórico muito amplo (que vem da cultura grega e chega até a “lógica” do campo de concentração), mas nela “de-põe” também o projeto foucaultiano duma análise da condição “bio-política” do homem moderno (cf. sobretudo: Michel Foucault, La Volonté de Savoir. Paris: Gallimard, 1976).