Cultura e Democracia

A Revolução de Abril: a invenção da liberdade

Ângela Beatriz de Carvalho Faria
UFRJ


A Revolução faz-se por dentro.
Melo Antunes

A aventura é ficar.
Alves Redol

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a superfície do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen


Para que não se perca a memória deste dia levantado e principal, em que Portugal acordou livre, selecionei pontos luminosos ou imagens textuais que vão desvendando, numa cartografia andarilha e tortuosa, as amplas margens do país, da história, do real enfim, a ser sondadas.

Entreteci os discursos — o fato e a ficção — , na comemoração dos 25 anos do 25 de Abril, privilegiando alguns textos e fazendo alusão a outros que focalizam a transição do país escuro para o país luminoso, da ditadura para a democracia. Luz e sombra, euforia e disforia tornam-se inseparáveis nas vozes de Abril, silenciadas e marginalizadas durante a “grande noite portuguesa que durou 48 anos soturnos e inamovíveis, ao longo da qual todos foram postos de parte, fora da vontade, da raiz, da moral e da História”, como bem assinalou João de Melo, em Dicionário de Paixões.
Movimento 1: a precipitação de Abril

Durante este período histórico, vozes excluídas da cidadania deflagraram um movimento de resistência nas colônias portuguesas ou “províncias ultramarinas” em África, o que veio a contribuir para a radical transformação da vida política em Portugal e para o restabelecimento dos princípios democráticos. Naquele momento, desejos, emoções e paixões surgem como categorias políticas e preparam a Revolução de Abril.

Mais tarde, após o momento solar da obtenção da liberdade, observa-se que a trama escura e dramática da guerra colonial desenha-se sobre o fundo luminoso de um discurso (logos) e de uma razão (logos também) que atravessam o caos dos fatos, para deles retirarem conclusões valiosas e ensinamentos eternos. Através de diversas “escritas de si”, encontradas, por exemplo, em Autópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo e em A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, não conseguimos imaginar outras versões da guerra, ou uma outra história do imperialismo português.

No primeiro romance citado, por exemplo, publicado na década de 80, os soldados portugueses em África, desterrados do próprio corpo, da história, do nome e da geografia de seu país, tecem a revolução imaginável, ao constatarem o imaginário imperial subitamente dilacerado e morto. E, por isso, “ao desfazerem a guerra por dentro”, esperam uma “Grande Coisa, talvez uma primavera nunca igual ou um fruto bem à medida da sua sede” (AMR, 128); “perdidos, acossados” e escravos de um desejo insatisfeito, verbalizam uma frase prestes a se realizar com a Revolução de Abril: “Temos direito a um país” (AMR, 175).

A incapacidade do regime ditatorial para encontrar uma solução política para a guerra colonial é o fator determinante na mobilização dos jovens oficiais pertencentes ao MFA (Movimento das Forças Armadas) e que passaram a ser denominados “Capitães de Abril”.
Movimento 2: o momento histórico e exato da Revolução — 25 de Abril de 1974

Vejamos os fatos ocorridos no dia D, segundo a publicação da Biblioteca-Museu República e Resistência — 25 de Abril: 20 anos —–, no capítulo intitulado “O MFA e o derrube do regime autoritário”:

A rapidez com que o Movimento dos Capitães transforma um protesto de natureza corporativa numa questão política global constitui a melhor prova de que a crise da sociedade portuguesa e os seus reflexos na instituição militar atingiam uma gravidade sem precedentes na história do Estado Novo.
A incapacidade do regime ditatorial para encontrar uma solução política para a guerra colonial é o factor determinante na mobilização dos jovens oficiais. O golpe militar das Caldas da Rainha, de 16 de Março de 1974, apesar de neutralizado pelas forças governamentais, funcionou como “primeiro ensaio” para a operação de derrube do regime, que o Movimento prepara cuidadosamente. O plano, concebido por Otelo Saraiva de Carvalho, envolve um considerável número de unidades militares de norte a sul do País.
Estabelecido o posto de comando das forças revoltosas no Regimento de Engenharia 1, da Pontinha, e difundidas as canções E Depois do Adeus e Grândola, Vila Morena, que funcionavam como senha para o início da revolução, as unidades “rebeldes” procuram rapidamente apoderar-se dos pontos estratégicos (RTP, Rádio Clube Português, Emissora Nacional, Quartel-General da Região Militar de Lisboa e Aeroporto da Portela) da cidade de Lisboa. Num segundo momento, uma coluna da Escola Prática de Cavalaria, proveniente de Santarém e comandada pelo capitão Salgueiro Maia, isola a Praça do Comércio e corta o acesso ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e aos ministérios. A rápida actuação das unidades afectas ao Movimento apanha as forças do regime completamente desprevenidas. As que tentam opor-se, desmoralizadas e desmotivadas, perante a determinação de Salgueiro Maia, passam para o lado dos revoltosos. Neutralizado o perigo no Terreiro do Paço, as forças de Salgueiro Maia dividem-se em dois grupos. O primeiro, constituído pelos militares aderentes das forças inicialmente fiéis ao regime (Lanceiros 2, Cavalaria 7 e Infantaria 1), vai ocupar posições junto ao Quartel-General da Legião Portuguesa. As forças da Escola Prática de Cavalaria deslocam-se para junto do Quartel da GNR, no Carmo, para obter a rendição de Marcello Caetano que aí se tinha refugiado a conselho de Silva Pais, director da polícia política. Após algumas tentativas de negociações, o general Spínola, mandatado pelo MFA e aceite como interlocutor por Marcello Caetano, entra no Quartel e obtém a rendição do Presidente do Conselho.
Com a revolução ganha, o general Spínola reúne-se com a Comissão Coordenadora do MFA para estudar a proclamação elaborada pelo Movimento, que, com algumas alterações, viria a ser lida por ele, em nome da Junta de Salvação Nacional, na madrugada do dia 26.
Os últimos “bastiões” do regime a depor as armas foram a PIDE/DGS (única instituição governamental a causar 4 mortos e 45 feridos durante a revolução) e as prisões de Caxias e Peniche, de onde foram libertados todos os presos políticos.
O rápido e inequívoco sucesso da revolução do dia 25 de Abril demonstra claramente a crise sem precedentes que o Estado Novo atravessava e a necessidade premente de mudar Portugal.[1]


Movimento 3: A história revisitada pela ficção

Vejamos como a “Grande Coisa” ou o Golpe de Estado engendrado pelo MFA está magistralmente registrado no verbete “Abril, vinte e cinco”, do Dicionário de Paixões, de João de Melo (fevereiro de 1994). Ao revisitar a história através da literatura, o escritor contemporâneo cria um constructo discursivo passível de ser acreditado e atribui um ficcional solilóquio ao capitão Salgueiro Maia, no momento em que se dirigia ao Quartel do Carmo, visando a obter a rendição de Marcello Caetano:

ABRIL, VINTE E CINCO: — Juro-o pela minha honra. E por ela me declaro pronto, consciente da gravidade e do sonho que em parte se combinam para serem também a grandeza e o risco da minha missão. Mas preciso de o repetir baixinho, de lentamente o repetir dentro de mim, baixinho e em presença dos meus sentidos, a fim de que tudo deixe de ser apenas um sonho e se transforme pouco a pouco em realidade. Sei que devo entrar de madrugada na cidade adormecida, contornar suas rotundas desertas, passar além dos cruzamentos que me levam para o centro.
[...] É muito simples a minha ideia: cercar o quartel da guarda nacional, dar-lhe um ultimato para que se renda e me entregue as suas armas e depois ficar ali a encher-me de paciência, fome, desconforto, sono e frio, mas sempre atento ao que der e vier. Quando me meti nos trabalhos desta missão, jurei por minha honra que nela iria até ao fim. Empenhei nisso a palavra e a vida, repito. Sabia-me a mim próprio sujeito, e tanto a perder-me como a salvar-me nela — sendo-me aliás claramente dito que até podia tratar-se de uma viagem longa, louca e sem regresso, feita daquele alvoroço que antecede o definitivo e fatal esquecimento: o qual também dá passagem para onde a morte é escura e irreversível. Por isso me despedi da mulher e das filhas. Disposto a morrer por elas, eis-me contra isto, para melhor ser por isto, como um dia dirá o escritor Miguel Torga. Só faz sentido a gente morrer por aquilo que ama, e eu fui desde sempre, do primeiro dia da minha infância até esta madrugada de vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, preparado para o amor e para a morte.
“Se preciso for — sublinharam os queridos companheiros — alinhas os carros de combate no Largo do Carmo, apontas os canhões aos portados e aos torreões da fortificação, ordenas fogo aos teus e que haja choro e ranger de dentes — e gritos e braços erguidos nos primeiros vivas à liberdade, e vozes saídas da clandestinidade para berrarem bem alto que o povo unido jamais será vencido.”
[...]
Ora eu vim, na condição de oficial e cavalheiro, para dar voz de prisão aos ditadores, não para os julgar ou abater. Oficial e cavaleiro que sou, entrarei firme nos largos portões do Carmo.
[...]
Se me perguntar de onde venho e a quem jurei obediência, qual a minha condição e como me chamo, responderei a sua excelência que venho de Santarém, às ordens do Movimento das Forças Armadas, tenho o posto de capitão e o meu nome é Salgueiro Maia.[2]

Este personagem histórico irá corporificar a inadiável utopia revolucionária político-social ou a heterotopia (Pasárgada 2), proposta por Boaventura de Sousa Santos, em Pela Mão de Alice: o Social e o Político na Pós-modernidade, pois vai operar um deslocamento do centro (ortotopia) para a margem (heterotopia), ao criar uma alternativa para o falido regime fascista.

O diretor do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, ao aludir a um período de transição paradigmática passível de ser delineado, aponta para uma alternativa:

A heterotopia que proponho chama-se Pasárgada 2. Não é um lugar inventado, é o nome inventado de um lugar da nossa sociedade, de qualquer sociedade onde vivamos, a uma distância subjetivamente variável do lugar onde vivemos.[3]

E, ainda, segundo o eminente sociólogo, o que é importante em um processo utópico, “não é o que diz sobre o futuro, mas a arquelogia virtual presente que o torna possível”, a partir de uma nova epistemologia que recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades, permitindo criar alternativas e de uma nova psicologia que, ao recusar a subjetividade do conformismo, torna-se capaz de criar a vontade de lutar por essas alternativas.

No espaço textual, surgem evidenciadas, em Salgueiro Maia, a ausência da subjetividade conformista e a vontade de lutar por uma realização pessoal e coletiva. Disposto a cumprir sua missão, este “oficial cavaleiro e cavalheiro”, “preparado para o amor e para a morte”, como vimos, está prestes a cercar o quartel da Guarda Nacional e a “dar voz de prisão ao rei e a seus vassalos”. Portanto, na “arquelogia virtual presente”,

[...] o que está a acontecer vai apenas a caminho da verdade, entre o imperativo e o sonho de quem ordena e exige que chegou a hora de o tempo e sonho serem exatamente isso, o tempo e sonho de um país que se perdeu de si e de quem acreditou nas luas e nos cravos rubros e derradeiros deste século XX.
(DP, 13)
[...]
Pode ser que eu morra varrido por uma rajada de metralhadora ou pela bala do atirador solitário que fica quase sempre para contar a história. Ainda assim morrerei a meio do maior de todos os gestos da minha vida. Mas pode também acontecer o contrário de tudo isto: vir um mar de povo, erguerem-se as vozes, encherem-se de flores os canos das espingardas e não ser preciso matar nem morrer.
(DP, 16)

Ao imaginar possíveis hipóteses no prelúdio de sua ação heróica, o personagem representado antecipa a plenitude da história, a tão sonhada festa da libertação, o rápido e inequívoco sucesso da Revolução dos Cravos, que demonstrou claramente a crise sem precedentes que o Estado Novo atravessava e a necessidade premente de mudar Portugal.

Em As Naus, de António Lobo Antunes, metaficção historiográfica, de base paródica e carnavalizante, o momento singular da Revolução de Abril é captado pelos colonos portugueses em África, futuros retornados e desenraizados do processo social:

Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. Convocaram-nos para uma reunião no Cine-Theatro das zarzuelas estafadas e das récitas dos bombeiros, onde um coronel de artilharia, com uma tripla fita de condecorações na clavícula, subiu ao palco em cujo fosso a orquestra desafinou entusiasticamente o hino, e lhes ofereceu de mão beijada, numa generosidade inexplicável, a possibilidade gratuita de tornar a Portugal.[4]


Movimento 4: “Rente à fala, 4” (Eugénio de Andrade)


“Rente à fala, 4”, poema escrito por Eugénio de Andrade em 26 de abril de 1974, logo após o fim das coisas interditas, registra o sujeito expectante e o tempo-espaço da cidadania.

A data da escrita coincide com a proclamação elaborada pelo programa do MFA e lida pelo General Spínola, em nome da Junta de Salvação Nacional. A princípio declarou-se que seria mantido o Portugal pluricontinental e, logo depois, outro comunicado, emitido no mesmo dia, emendava o primeiro, afirmando que “pretendiam lançar os fundamentos de uma política ultramarina que conduzisse à paz”. Rente a esta fala, portanto, surge o poema que registra fragmentos do cotidiano vivido ou sentido; o reconhecimento da “terra de sol, inocente, quase nua ou minha”, ou seja, incorporada “agora” ao sujeito da escrita; a articulação do desejo utópico como paradigma de felicidade absoluta, lugar de ensimesmamento, clausura e perfeição — bela, lúcida e pertinente definição de Eduardo Prado Coelho, no artigo “A utopia no mundo imperfeito”. O sujeito, localizado entre o desejável e o possível, pronuncia-se, no espaço textual: “Este corpo há que deixá-lo ser água”[5]. Este verso, imbuído de uma carga semântica e mítica, alude à recriação de um homem novo (símbolo de luz e possuidor de uma palavra ou verbo gerador de sentido) e de um outro mundo, agora, em liberdade. O numeral 4, existente no título, ratifica a temática básica do poema e simboliza o terrestre, a totalidade do criado e do revelado, o sólido, o tangível e o sensível, o fundamento arquetípico da psique humana. O poema encena a terra portuguesa, reforçada pelo dêitico (“esta”) e reconhecida (“é bem ela”). O corpo da terra recuperada e do sujeito manifestam-se na epifania da linguagem. Cito o poema, inserido em Limiar dos Pássaros (Porto, 1978):

Rente à fala, 4
Eugénio de Andrade

Esta terra de sol esta terra ainda
é bem ela esta terra inocente
este corpo há que deixá-lo ser água
não é fácil separá-lo da luz
quase nua esta terra agora minha.
(Limiar dos Pássaros, Porto, 1978)


Movimento 5: “Plural de Abril” (José Jorge Letria)


Este poema, até então inédito, dedicado a Vasco Lourenço, foi escrito em março de 1999, às vésperas, portanto, dos 25 anos do 25 de Abril em uma pequena antologia comemorativa da data, publicada pela Junta de Freguesia da Penha de França:

Plural de Abril
Dedicado a Vasco Lourenço
José Jorge Letria


Morre connosco, em sobressalto de luz
a memória do que fomos nesses dias,
a imagem exausta, recortada
sobre a chapa de uma chaimite
oficiando, no júbilo das praças,
o minucioso, o exaltante trabalho da paz.
Quem prometeu eternidade
à festa dessas horas em que tudo
ganhou, de súbito, dimensão de coisa rara,
textura de assombro, substância de quimera?
Quem foi que nos disse: “Por esta rota se fará
a navegação de todos os sonhos incumpridos,
por esta estrada palmilharão os irmãos desavindos
o caminho que leva até à raiz de som
da generosa e limpa palavra liberdade”?
Eras tu ou eu neste retrato
de claridade minguada, evaporada rente aos olhos?

Este poema, ao apresentar o momento exato da festa e a contraface deceptiva da Revolução de Abril, tematiza a questão da identidade do país e do próprio sujeito revolucionário, a partir do instantâneo de uma fotografia revisitada vinte e cinco anos depois. Memória e esquecimento ou apagamento dos ideais revolucionários entretecem-se e servem de alerta para uma nova geração. A luz do momento solar, dionisíaco e inaugural estará dissipada: “claridade minguada, evaporada rente aos olhos” e não mais “rente à fala” captada por Eugénio de Andrade. O país que nasceu do ventre de uma chaimite, na Revolução dos Capitães, é apenas uma fotografia desbotada revisitada pela memória. Flash ou resíduo do passado que impede o esquecimento e permite tecer comparações com o presente agônico e destituído de sentido. O sujeito empreende uma viagem para o interior de si próprio e constata que a utopia (a anulação da alteridade social) transformou-se em antiutopia e, por isso, procede ao resgate de vozes ressonantes, transcritas entre aspas: Quem foi que nos disse: “por esta rota se fará / a navegação de todos os sonhos incumpridos, / por esta estrada palmilharão os irmãos desavindos / o caminho que leva até à raiz de som / da generosa e limpa palavra liberdade”? O pronome interrogativo refere-se a uma determinada pessoa heroicamente existente no passado dissoluto.

No espaço textual, portanto, contrapõem-se dois momentos historicamente diferenciados: o fato vivenciado em sua plenitude e a revisitação deste mesmo fato 25 anos depois. A euforia cederá espaço à disforia assinalada pelo desencantamneto do mundo e pela desrazão, pela não-confirmação da “textura de assombro, substância de quimera”, pela alusão à permanência das desigualdades políticas e sociais. O sujeito do discurso, ao buscar entender a intencionalidade de seu ato, no passado 25 de Abril de 1974, instaura a presença de dois destinatários intratextuais, separados temporalmente: o companheiro e cúmplice da cena revolucionária (“Eras tu ou eu”) e seu filho (“Acorda, filho”) que possui a mesma idade de Abril e cujo sorriso incorpora a luz liberta da opressão. E regata, como testemunha dos fatos e dos acontecimentos, dois nomes emblemáticos: José Afonso, autor de Grândola, Vila Morena — canção símbolo e senha da Revolução — e Salgueiro Maia — o Capitão de Abril. Desta forma, através da epifania da linguagem, impede o esquecimento dos ideais libertários do passado, denuncia a sua ausência no presente e alerta o filho, representante de uma nova geração.

Eras tu ou eu, éramos tantos neste rio,
Tejo de todos os Tejos, cruzando a cidade
em todos os sentidos, sussurando nomes,
burilando versos, partilhando cânticos
quanto tudo era ainda esperança à boca das manhãs.
O Zeca, o Salgueiro Maia não me deixam mentir.
Acorda, filho, que Abril tem hoje a tua idade
e por mais que eu diga, por mais que eu faça
acharei sempre que foi por ti que o fiz,
multiplicando por vinte e cinco, sempre,
as pétalas de luz do teu sorriso.
Inédito, março de 1999


Movimento 6: Reflexão e questionamento: “Abrir Abril — o chegar da liberdade?” ou O conquistar uma verdadeira Revolução?


“A 25 anos de distância”, por ocasião da comemoração do aniversário da Revolução, Francisco Pinto Balsemão, jornalista e um dos protagonistas na luta pela democracia e pela liberdade, busca reinventar Abril, através da defesa de valores essenciais, na atual conjuntura portuguesa.

Ao fazer um “balanço” dos últimos 25 anos — de seus sobressaltos, conquistas, perplexidades, afirmações e contradições —, ressalta que não basta a liberdade inerente à democracia política, pois torna-se cada vez mais necessário implantar a igualdade social.
“Para além do deve e do haver, para além do balanço positivo”, o autor citado transmite uma bela lição às novas gerações:

A melhor maneira de comemorar os 25 anos do 25 de Abril é afirmar — e praticar — a intenção de lutar por uma democracia que não seja apenas política e formal mas também substancialmente cultural, social e económica. Ou seja: que a revolução da informação não provoque um fosso intransponível entre info-ricos e info-pobres no mundo, dentro de cada continente e dentro de cada país; que a globalização da economia não conduza ao Estado globalitário como substituto do Estado totalitário; que a sofisticação da criminalidade e a sua organização transnacional em máfias e cartéis seja combatida com reforço da segurança individual e colectiva, mas sem diminuição da liberdade; que o direito à diferença seja consagrado como uma das conquistas deste final de século; que se criem e aceitem novas modalidades de participação política, baseadas na circulação e gestão da informação, na auto-regulamentação, na libertação da sociedade civil.

O 25 de Abril, os 25 anos do 25 de Abril, os 25 anos de 25 de Abril, só serão válidos se aqueles que os herdaram — mas que, por serem muito novos ou nem sequer nascidos, neles não tiveram grande participação — os aceitarem, louvarem e se sentirem por eles estimulados.
Os maiores beneficiários do 25 de Abril são — ou podem ser, ou devem ser — as novas gerações, aqueles que agora têm 20, 30, 35, 40 anos, no máximo. E é assim que está certo: só vale a pena fazer uma revolução, lutar por ela e dentro dela, quando os grandes beneficiários são os que chegaram depois e nada tiveram a ver com ela.[6]

 

 

Notas

  • 1 25 de Abril: 20 Anos. Biblioteca-Museu República e Resistência. Elo Publicidade e Artes Gráficas Ltda. p. 19.
  • 2 MELO, João de. Dicionário de Paixões. Lisboa: Dom Quixote, 1994. p. 13-17.
  • 3 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Afrontamento, 1994. p. ???
  • 4 ANTUNES, António Lobo. As Naus. Lisboa: Dom Quixote, 1988. p. 51-2.
  • 5 Ver a mesma imagem capaz de tecer a apologia do tempo da Revolução, em “Sentimento dum Acidental”, de Armando Silva Carvalho (1981):

    Toda a cidade, agora feita de água,
    brilhava e anoitecia nas gargantas.
    Era um poema longo, longo
    o que ela respirava.

    Ou em “Abril — Terceiro Ano da Revolução”; de António Ramos Rosa:

    com uma fúria sedenta
    a palavra que seja
    a água do corpo o corpo
    intacto no silêncio do seu grito
    ressurgindo do abismo da sede
    com a boca de pedra
    com os dentes das letras
    com furor dos punhos
    nas pedras (grifos nossos)

  • 6 Revista Camões. Rev. de Letras e Culturas Lusófonas. Abril-Junho, 1999. Número 5. p. 180