Cidades em Diálogo

A ventura pós-moderna

Evandro Luis Von Sydow Domingues

I. Nos jardins do museu

É vasto o jardim, vasto e iluminado por branda luz coada pelas altas copas das árvores. O bulício das movimentadas ruas que o cingem nos chega já esmaecido, não sendo, portanto, incômodo. De toda esta bela profusão de verde distingo duas árvores, que se miram ou se ignoram, em posições opostas. A uma e a outra vêm pessoas aproveitar-lhes a sombra ou comer-lhes os frutos. Percebo que o grupo de pessoas que se chega a uma árvore não se aproxima da outra, e vice-versa. Têm, portanto, as duas matronas do jardim, um público distinto e exclusivo, que procura mesmo desprezar ou ignorar o outro. Não sabem, nem um nem outro público exclusivo, que por baixo da terra as duas árvores se encontram e, mais que isso, têm uma mesma e única raiz.

John Barth termina seu excelente artigo “The literature of replenishment” (1980) de tal modo empolgado pelas escrituras pós-modernas de Italo Calvino e Gabriel García Márquez, que afirma que já quase havia sido esquecido que a ficção podia ser não apenas significativa, mas também (ainda) magnífica. Se me lembro dessas palavras aqui no jardim, é porque penso que elas também se aplicam muito bem a exposições de museus. Se elas pretendem ser significativas, isto não haverá de acarretar que elas não possam também ser magníficas, provocando e emocionando os seus leitores / visitantes. Uma exposição que provoque e empolgue encontramos na forma de A Ventura Republicana, exposição permanente instalada no terceiro andar do Museu da República, o antigo Palácio do Catete, que tem a curadoria de Gisela Magalhães e Joel Rufino. Se ela pode ser classificada como pós-moderna é o que iremos examinar neste trabalho. Mas esta “classificação” não é o mais importante. O mais importante é que, se ela não é apenas significativa, como qualquer exposição razoável o é, mas também magnífica, é porque ela trabalha com a raiz que as duas robustas árvores, o Saber e o Sabor, têm em comum.

II. Sua excelência, o museu

Se é lamentável que a raiz comum de sabor e saber tenha permanecido longo tempo oculta tanto nas artes quanto na academia, não é menos triste que se tenha estabelecido, por outro lado, uma relação entre museu e mausoléu de toda inexistente. Ou seja, além de se ignorar uma relação verdadeira — entre saber e sabor — inventou-se outra que nem sequer existia etimologicamente, entre museu e mausoléu. Museu vem do grego Mouseîon, “templo das musas”, ao passo que mausoléu se originou da palavra grega mausóleion, em alusão ao túmulo de Mausolo, rei da Cária, antiga cidade da Ásia menor. No entanto, por quantas vezes, ao entrar em um museu, sentimos estar mais em presença de mortos do que do bafejo inspirador das musas?

A concepção de museu como mausoléu, depósito de obras mortas, por valiosas que sejam, transparece indiretamente no último capítulo do livro de George Steiner, No castelo do Barba Azul — algumas notas para a redefinição da cultura. Tratando da herança da civilização ocidental, ele pergunta se “preferiremos que o grosso de nossa literatura, de nossa história interior, seja relegado ao museu”(grifo meu). O verbo que grifamos, de claras conotações pejorativas, não deixa dúvidas quanto ao status do museu. Mais adiante, referindo-se ao fato de os Estados Unidos portarem-se como “ativos vigias” do passado, pergunta: “Será possível que os Estados Unidos estivessem destinados a tornar-se a ‘cultura de museu’”? Mais uma vez, ironia e preconceito acompanham o conceito de “museu”.

Andreas Huyssen (1992: 15), passeando com seu filho de cinco anos pelo museu onde tem lugar a sétima Documenta, em Kassel, Alemanha, logo descobre que este não é o melhor programa para seu filho. A todo momento, o menino tem que ouvir: “Nicht berühren! Das ist Kunst!” (“Não toque! Isso é arte!”), e seu pai conclui que o museu é como um templo. Douglas Crimp (s.d.: 45) chega mesmo a lembrar que faltou a Foucault, que estudou as modernas instituições de confinamento como o asilo, a clínica e a prisão, incluir o museu em sua lista. Segundo Crimp, caracterizam o museu uma ânsia pela totalidade e uma tentativa de reduzir sua heterogeneidade a um sistema homogêneo de séries. Tentativas, como veremos, nada pós-modernas. Com sua ênfase na totalidade e homogeneidade, o museu parece que não teria lugar em tempos plurais e fragmentários, como o que vivemos. Anacrônico, restava-lhe fechar-se em si mesmo e lentamente agonizar, algo, aliás, que muitos estão fazendo.

Linda Hutcheon (1994), no artigo em que analisa a malfadada exposição “Into the Heart of Africa” no Royal Ontario Museum, afirma que tanto o museu quanto a academia compartilham, tradicionalmente, de uma crença institucionalizada no método e na razão e que ambas instituições trabalham rumo a aquisição de conhecimento por meio da coleção, ordenação, preservação e exibição de objetos da civilização em todas as suas variedades. Mas ela nos fala também de uma “nova museologia”, que toma para si os desafios da pós-modernidade, termo que Hutcheon não usa, em uma autoridade cultural tradicional como o museu.

Segundo a concepção da “nova museologia”, o museu deve ir além de sua função de conservação para incluir uma função educacional não só para especialistas como para o público em geral. Até aí, não se terá mudado muito, já que a maioria dos museus traz em si uma função educativa. Mas a ânsia totalizadora do modernismo passa a dar lugar a uma política da diferença, que deseja, nas palavras de West (apud Hutcheon: 182):

trash the monolithic and homogeneous in the name of diversity, multiplicity and heterogeneity; to reject the abstract, general and universal in light of the concrete, specific and particular; and to historicize, contextualize and pluralize by highlighting the contingent, provisional, variable, tentative, shifting and changing. (grifos meus)

Já não se crê, dentro desta nova concepção, que os objetos expostos falem por si mesmos; ao contrário, eles estão abertos a diferentes construções de significado, a diferentes leituras, que serão realizadas a partir da interação entre os organizadores da mostra, os objetos expostos e os visitantes. A realidade, portanto, é negociada, dialógica, substituindo o modelo impessoal, objetivo, distanciado.

As discussões acerca de uma nova museologia têm o seu passado. Estiveram em cena em 1972 no Chile, em 1984 no Canadá e em 1992 na Venezuela e na Argentina (Heizer: 1994, 69). Ao final do encontro na Argentina elaborou-se uma proposta baseada em um quadro do museólogo iugoslavo Tomislaw Sola. O quadro é o que se segue:

Museu tradicional Museu novo
Puramente racional Leva em conta as emoções
Especializado Expõe a complexidade
Orientado para o produto Orientado para o processo
Centrado nos objetos Tenta visualizar os conceitos
Orientado para o passado Interessa-se também pelo presente
Expõe apenas originais Aceita cópias
Enfoque formal Enfoque informal
Enfoque autoritário Enfoque comunicativo
Objetivo científico Orientado para a inovação

Nesta nova concepção (pós-moderna?) de museu, mais importante que informar é provocar a reflexão. Para tal, as exposições devem não apenas enfrentar assuntos polêmicos, como também ouvir os dois ou mais lados da questão. Ademais, se o museu é o meio através do qual uma sociedade representa a sua história e sua relação com outras sociedades, ele também deve refletir as mudanças desta sociedade. A exposição A Ventura Republicana exemplifica não apenas os conceitos da “nova museologia”, como, a meu ver, pode ser definida como pós-moderna. É o que veremos a seguir.

III. Pós-moderno por quê? Ou a nova obra dos mouros

Escreve Saramago em seu Viagem a Portugal que em seu país se costuma atribuir aos mouros toda obra cuja origem seja, por uma razão ou outra, desconhecida. De modo análogo, toda produção cultural atual que de certa maneira fuja de padrões tradicionais é prontamente denominada pós-moderna. Seja na atribuição de obras a mouros, seja no pródigo uso do rótulo pós-moderno, o espírito do saco-de-gatos é o mesmo. Assim, tentando evitar tal generalização precipitada, como a que Jencks (1980: 35) detectou em Rosalind Krauss, afirmamos que a exposição recém-inaugurada A Ventura Republicana é pós-moderna não por ela ser diferente da exposição que veio substituir, ou diferente da também recém-inaugurada exposição no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, ou diferente da maneira usual com que exposições permanentes são montadas em museus históricos, mas por ela apresentar diversas características de uma dominante cultural que vem sendo caracterizada como pós-moderna. Características estas que, conforme me pareceram, coadunam-se bem com o modelo da “nova museologia” detectado por Linda Hutcheon, o que talvez demonstre a chegada do pós-modernismo em uma das mais tradicionalmente fechadas instituições culturais.

Partindo das formulações de Ernest Mandel em O capitalismo tardio, Jameson (1996: 61) identifica o pós-modernismo como sendo a lógica cultural do terceiro estágio do capitalismo. Este atual período, que sucede ao capitalismo de mercado e ao capitalismo imperialista, denomina-se capitalismo multinacional ou, como é mais conhecido, globalização. Drucker (1994) irá denominar esta nova sociedade de sociedade “pós-capitalista”, observando que tal nome não significa o fim do capitalismo, mas sua transformação, observação semelhante a que faz Habermas (1987: 116), quando lança mão do termo “pós-industrial”. Mas é em Swyngedouw (apud Harvey:1993, 167) que encontramos uma detalhada tabela na qual características da produção fordista opõem-se à produção just-in-time, isto é, da atual fase, que para ele é de transição. Contrastando as mudanças observadas no processo de produção, no trabalho, no espaço e na organização do estado, a tabela finaliza com a ideologia, onde pós-modernismo se opõe a modernismo.

Radicalizando o conceito de transformação, Steiner (1991) e principalmente Zavarzadeh (1976) preferem falar em “mutação”. Segundo Steiner,

a complicação e o ritmo de mudança não têm precedentes (a vida de Churchill cobriu um período que se estendeu desde uma batalha travada em Omdurman com cavalos e espadas, de uma maneira quase homérica, até a construção da bomba de hidrogênio).

Mais adiante, ele escreverá que “essas mutações deram fim à educação clássica” (grifo meu).

Zavarzadeh, em seu ensaio sobre o romance não-ficcional do pós-guerra americano, contextualiza o aparecimento desta nova forma de narrativa (que ele chama de “supramodernista”) em um presente que parece mais uma mutação do que uma continuação do passado. Zavarzadeh reconhece mudanças ocorridas outrora, mas afirma que as de nossa época são diferentes não apenas quanto ao alcance e a universalização da ruptura e da descontinuidade, mas também quanto à visão que nossa época tem de si mesma. Sua mirada aponta no sentido de que depois da Segunda Guerra houve uma universalização da ruptura. Ademais, em nossa época já não haveria “crise”, pois esta seria nossa própria (e permanente) condição. Ultrapassado o modelo aristotélico lógico, causal e sem contradições, nosso atual modelo seria o da entropia.

Questiono aqui essa visão de Zavarzadeh que considera que nunca, em tempo ou lugar algum, houve mudanças de tão grande alcance como as que atualmente vivemos. Pergunto se na Europa do século XVI, com as grandes descobertas ultramarinas, por exemplo, não se terá sentido o mesmo. Ou, invertendo as posições, se para os nativos das Américas as mudanças experimentadas por ocasião dessas mesmas descobertas não terão sido muito mais radicais que as que os ocidentais sentimos hoje. (O que são Internet e CD-ROM perto da perda da liberdade, da terra, da identidade, da cultura, dos valores?) Sua tese, aliás, de que a atual ficção americana é bizarra porque a vida nunca foi tão bizarra — tese que é abraçada por outros teóricos da literatura — foi já desqualificada como simplória e mesmo insensata (Newman: 1985, apud Hutcheon: 1991, 85).

Se mutação, ruptura ou continuidade, o que não se pode negar é que a época atual é distinta, digamos, daquela em que o modernismo fincou raízes. São distintos os meios de produção, são diferentes a ciência e a tecnologia (não vou me alongar aqui em exemplificações; remeto o interessado a um dos trabalhos citados, como os de Harvey e Drucker). Aceite isso, não se pode negar tampouco que a arte e as manifestações culturais, de uma maneira geral, vêm também se distinguindo, a partir dos anos 60, da estética modernista. Já não se pode produzir arte e cultura como se duas guerras mundiais, Freud, Einstein, revolução sexual e tecnologia da computação não tivessem existido. No fim dos anos 50 e começo dos anos 60, o modernismo é canonizado e institucionalizado academicamente. Abre-se espaço para uma “nova sensibilidade” (Sontag) e para um novo movimento não-cooptável (Huyssen). Este espaço, o pós-modernismo ocupa-o.

Se o pós-modernismo efetivamente rompe com o modernismo ou se ele o continua, reciclando-o, é discutível, mesmo porque podemos falar em pós-modernismos. De qualquer maneira, discussões assentes em dicotomias “ou isso ou aquilo” já perdem espaço. Em vez do “ou… ou…”, instaura-se o “e + e + e”. Antes complexificação que exclusão. Isso significa que o surgimento de uma nova determinante cultural não implica, necessariamente, a extinção das precedentes.

Quando Fiedler (1984: 154) afirma que o romance tradicional está não apenas moribundo, mas morto, reconhece que ainda há pessoas escrevendo romances tradicionais, que são lidos e resenhados, mas que isso teria tanto peso quanto freqüentar a igreja aos domingos em uma sociedade secularizada como a nossa. De maneira semelhante, o fato de a pós-modernidade ter chegado à exposição permanente de um museu histórico, quando o máximo com que ela antes podia sonhar era pôr seus pezinhos em exposições temporárias de museus de arte, não significa que a pós-modernidade tenha chegado, de mala e cuia, aos museu brasileiros. Pelo contrário, uma instituição que tem o peso da tradição, como tem o museu, tende a resistir. É justo por isso, por desvelar pioneirismo e coragem, que a exposição em pauta ganha destaque. Deixemos claro, entretanto, que pioneirismo e coragem não são condições sine qua non de pós-modernidade, e muito menos de excelência, conforme veremos quando da ocasião da análise da exposição.

Enfim, se já ficou demonstrado que a dominante cultural de nossa época é o pós-modernismo, que rompe ou (e) continua o modernismo, e se já ficou demonstrado também que reflexões acerca de uma “nova museologia” surgem contemporâneas às reflexões acerca do pós-modernismo, parecendo-me mesmo que o “novo museu” pode ser visto como um museu pós-moderno (lembrando sempre que há pós-modernismos), resta-nos examinar se alguns traços efetivamente pós-modernos estão presentes na exposição em questão. Isto é, a par dos traços característicos da “nova museologia”, existem os traços das artes pós-modernas em geral. Conferir a presença destes na exposição é o nosso próximo passo.

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Verlaine

Entenda-se a palavra “traço” em sua acepção primeira: risco ou linha traçada a lápis; a lápis, sim, para que seja mais vulnerável à ação da borracha. Isso porque o pós-modernismo, a meu ver mais pelo fato de ser a dominante atual do que por fatores intrínsecos, é objeto escorregadio e afiado, que não se deixa aprisionar docilmente nas malhas da sistematização.

Essa esquivez do pós-modernismo, que salta ligeiro qual Guido Cavalcante quando assediado pelos gentis-homens que vinham lhe provocar — exemplo de leveza destacado por Calvino (1995: 23) — prova-a o extremo cuidado tomado por teóricos que tentam sua sistematização, como Hassan, Huyssen e Sontag. Dentre estes três, os textos mais antigos são de Sontag: “Notas sobre o camp” e “Uma cultura e a nova sensibilidade”, respectivamente de 1964 e 1965. Escritos na aurora das discussões acerca do pós-modernismo, em ambos sente o leitor uma tentativa de aproximação, de tatear um objeto estranho que então surgia. Vinte anos depois do primeiro dos textos citados de Sontag, vem à luz “Mapeando o pós-moderno”, de Andreas Huyssen. Huyssen, naturalmente, já pisa em um terreno muito mais assentado que o de Sontag mas, ainda assim, evita generalizações e prefere, em suas próprias palavras, “esboçar” e, conforme o título, “mapear”. Mais três anos, em 1987, portanto, Ihab Hassan, no texto “Fazer sentido: as atribulações do discurso pós-moderno”, retoma onze traços das artes pós-modernas que ele próprio já esboçara em 1986. Delineados os traços, Hassan adverte:

Repito: estes onze traços não definem o pós-modernismo, embora nos ajudem a aferir o clima do seu discurso. Em todo o caso, eles sinalizam as dificuldades em fazer sentido numa época de “indetermanência” (indeterminação instalada em imanência), em que os signos se espalham como folhas levadas pelo vento e o que é autoridade vai murchando no frio Outono dos nossos descontentamentos.

Os onze traços de Hassan são: indeterminação; fragmentação; descanonização; apagamento do eu; o inapresentável; ironia; hibridação; carnavalização; performance; construcionismo; imanência. Pareceu-me conveniente lançar mão do trabalho de Hassan, mas não sem antes adicionar à sua lista mais cinco traços, que são: pluralismo; paródia; potencial combativo; capacidade de emocionar; um saber com sabor. Sempre tendo em mente a acepção que demos a “traço” e tendo sempre à mão uma borracha, examinamos a exposição A Ventura Republicana em busca de presenças e ausências. Não encontramos todos os dezesseis traços presentes, nem tínhamos essa pretensão. Dentre os que encontrei, destaco aqueles que me pareceram os mais proeminentes e os mais significativos para o objetivo da exposição. Se não me detenho nos traços agora, é porque prefiro explicá-los à medida que forem sendo usados. Não preciso afirmar que não tenho pretensões totalizadoras. Tivesse, estaria traindo Huyssen, Sontag, Hassan.

IV. Mãe, que é isso? (Indeterminação)

Aquilo que quero chamar de pós-modernismo é fundamentalmente contraditório
Linda Hutcheon

Por indeterminação entenda-se tudo aquilo que nos causa incerteza e indecisão: rupturas e ambigüidades das / nas linguagens. Em uma estética pós-moderna, ambigüidades e contradições são, para dizer o mínimo, toleradas. Pode-se, por que não?, suspirar saudoso por um mundo ordenado, mas não se pode fechar os olhos para o nosso mundo de hoje. Pode-se suspirar pela física de Euclides, mas não se pode negar Einstein. Essa disposição de se trabalhar efetivamente com o que se tem em mãos é exemplarmente expressa, não por acaso, por John Cage: “our intention is … not to bring order out of chaos … but simply to wake up to the very life we are living” (apud Zavarzadeh).

Na exposição A Ventura Republicana, incertezas e ambigüidades pululam. Logo nas duas primeiras salas, que tematizam os presidentes, há indeterminações de ordem temporal e espacial. De ordem temporal porque aboliu-se a cronologia. Contrariando um dos princípios mais caros de exposições em museus históricos, apresenta-se, de entrada, um imenso painel com colagens de fotos em que se misturam personagens do início do século com contemporâneos nossos, como José Sarney e Leonel Brizola. E de ordem espacial porque, sobre esse imenso painel preto-e-branco, colocaram-se pinturas de presidentes de diversos períodos. A indeterminação maior ocorre nas legendas, ausentes ou imprecisas. Em uma das paredes, por exemplo, a legenda diz: “Epitácio Pessoa, Ernesto Geisel, Getúlio Vargas, Médici, Paulo Salim Maluf, Nilo Peçanha”, mas é impossível acompanhá-la. Não se sabe se ela se refere às pinturas ou ao painel que está por debaixo. A indeterminação aumenta quando se dá conta de que há nas fotos muitas pessoas cujos nomes não estão na legenda.

Ausência de legendas constituem indubitavelmente o maior traço de indeterminação da exposição. Ainda nas duas primeiras salas, um outro painel com diversas fotos em preto-e-branco, montado numa pilastra, não traz nenhuma referência às fotos, além de apresentar algumas em tão elevada posição que torna difícil, quando não impossível, sua visualização. Comentários como estes que ouvimos devem repetir-se todos os dias: “Campos Salles é igualzinho ao Delfim Netto”, dito a respeito do mencionado painel na parede; a legenda estava próxima à foto de Delfim Netto, quanto a Campos Salles, não foi possível localizá-lo. Ou “Olha o Kennedy, o Juscelino, é… acho que é o Juscelino mesmo”.

Mais adiante, na sala que tematiza as religiões do Brasil, outro grande painel apresenta uma colagem de diversas fotos. A legenda, presente, denomina a Igreja Pentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, mas há no meio das várias igrejas, uma foto do Profeta Gentileza, em pregação. A legenda, no entanto, não traz o seu nome. Na sala que tematiza a rua, grandes bonecos, réplicas do Museu do Folclore, sendo um do Maranhão, e outro um palhaço de uma Folia de Reis, que pode ser do estado do Rio de Janeiro ou de Minas Gerais, se sustentam inomeados. E na sala das armas, o instrumento de tortura pau-de-arara também se queda mudo.

O objetivo da exposição, conforme ele é apresentado em diversos momentos nos textos de Anelise Pacheco (diretora do museu), Gisela Magalhães e Joel Rufino (curadores da mostra), presentes no catálogo, é mais “despertar o desejo pela história e pelo exercício da cidadania” do que “relatar episódios cronologicamente” (Anelise Pacheco). Gisela Magalhães escreve que “importa sabermo-nos e acreditarmo-nos. E preservar o espírito de aventura”. Um pouco antes escreve que “se alguém perguntar mais depois de visitar a exposição: deu certo.” O mote da exposição, aliás, a fala de Riobaldo, “O senhor pense. O senhor ache. O senhor ponha enredo”, presente tanto nos textos do catálogo quanto na próprio local, aponta nesse mesmo sentido de perguntar e refletir. A intenção seria a de contar uma história, a história da República que vivemos até hoje, cabendo ao ouvinte / leitor / visitante pensar, achar, pôr enredo.

A proposta encaixa-se, sem dúvida, no espírito da “nova museologia”, negociando a realidade em vez de apresentá-la impessoalmente, provocando a reflexão em vez de apenas informar, e enfrentando assuntos polêmicos, como a tortura. O problema é que a exposição também se quer pedagógica (a raiz grega pedos, não esqueçamos, significa jovem), conforme as palavras de Anelise Pacheco: “Sincronóticos bem-elaborados tendem a não corresponder, nos dias atuais, à expectativa de nossos estudantes, cada vez mais capturados por conceitos como realidade virtual, simulação e infovias”. Ora, se quadros bem organizados não atraem nossos estudantes, pergunto-me se sua ausência ou imprecisão irão fazê-lo. Assim, a falta e a imprecisão de legendas em uma exposição que se quer provocante, mas também pedagógica, são no mínimo problemáticas. Quem irá saber que os bonecos são do Maranhão, o personagem excêntrico e contemporâneo é o Profeta Gentileza? Ou isso não é importante? Pior: a coragem de se ter abordado um tema polêmico e ainda quente como a tortura no país pode resultar inútil. Muitos irão passar pelo pau-de-arara sem imaginar sequer o que ele representa de autoritarismo e brutalidade constitucionalizadas em uma época ainda recente. Os curadores da mostra podem obtemperar: mas aquele instrumento sobre o qual não há nenhuma informação irá provocar perguntas, que é justamente o nosso objetivo. É verdade, mas quem irá responder a essas perguntas? Os pais, os acompanhantes? Estarão eles aparelhados para fazê-lo? Estarão eles aparelhados para identificar os personagens na miríade de fotos dos painéis? Alguns estarão, é verdade, mas poucos. O museu, então, é para poucos? Elitista?

Ademais, penso que deve se fazer uma distinção entre pergunta e questionamento. Se o pau-de-arara estivesse minimamente nomeado, não há dúvidas de que ele poderia suscitar inúmeros questionamentos acerca da história recente do país. Não trazendo nenhuma identificação, porém, ele é apenas um convite para que olhos petizes dele se desviem. Além disso, se um jovem já vem perguntando perguntas básicas (sem estar necessariamente refletindo) a respeito de fotos e objetos, é muito provável que ele e seu acompanhante já estejam, a essa altura, cansados. Um acompanhante que responda a tudo pacientemente, como um professor de História, por exemplo, é privilégio de poucos, e já estaríamos adentrando o elitismo. Ou a utopia.

Indeterminação talvez não se case muito bem com intenções pedagógicas. Talvez cause apenas situações como a que ora relato. Uma jovem acompanhada por uma pessoa mais velha, talvez sua mãe, chega à segunda sala, onde estão diversos bustos de bronze de presidentes, e também duas redomas de vidro apresentando, cada uma, um par de tênis Nike e um fuzil AR-15. Intrigada, a jovem pergunta: “Ué, mas já tinha tênis naquele tempo?” Ao que a mãe responde: “Tinha, tinha, isso é coisa antiga”.

V. Fragmentação

Guerra ao todo
Lyotard

Fragmentação é porventura um dos mais importantes e característicos traços do pós-modernismo. Se ao ser “indeterminada” em alguns aspectos, a exposição pôs em risco os seus objetivos, o mesmo não se dá aqui. A Ventura é fragmentada, sim, mas isso não compromete sua intenção de provocar, muito pelo contrário.

Já em 1964 Sontag chamava a atenção de que a “nova sensibilidade” insistia no “princípio de que uma oeuvre no velho sentido não é possível. Somente ‘fragmentos’ são possíveis…”. Silviano Santiago, em artigo sobre o narrador pós-moderno, que se opõe ao narrador moderno e ao narrador tradicional benjaminiano, reconhece que “as narrativas hoje são por definição quebradas”.

A fragmentação detectada na exposição não é, naturalmente, a tradicional fragmentação de exposições convencionais, que expõem um objeto metonimicamente, para que se veja nele um fragmento do todo. A fragmentação aqui opera no sentido de contrariar um sentido de totalidade buscado pelas exposições tradicionais. A instituição museu sempre teve por norma tudo abarcar, encerrando em suas paredes até mesmo a biblioteca. Este saber enciclopédico, buscado pelos quixotescos heróis de Flaubert, Bouvard e Pécuchet, é posto em xeque. A trilha sonora da exposição, toda ela um imenso poutporri de músicas por vezes díspares, como Chopin e Cazuza, as fotografias que se emendam umas nas outras nos grandes painéis, a ausência de alguns presidentes na galeria dos bustos (enquanto outros comparecem mais de uma vez: há quatro bustos de Deodoro da Fonseca), toda essa colcha de retalhos parece em sintonia com o modo através do qual jovens, e não apenas eles, recebem hoje informações.

Apesar da fala da diretora Anelise Pacheco em matéria à Veja (25/12/96) de que “todas as referências básicas estão presentes”, é claro que essa totalização não se dá. Não há, por exemplo, para ficarmos apenas com os últimos dez anos, referência ao movimento das Diretas Já, nem ao impeachment de Collor, nem ao movimento dos caras-pintadas, nem ao Movimento dos Sem-Terra (apenas uma foto no catálogo, ausente da exposição), dentre outras ausências. Mas o mosaico formado pelas imagens e pelos personagens permite que o visitante indubitavelmente forme um painel generoso de boa parte dos acontecimentos passados e contemporâneos da República. A justaposição de imagens, ademais, permite que se visualize que passado e presente estão mais próximos do que visitante incautos podem imaginar.

Se uma história está sendo contada, a história da República, pensei em tentar uma aproximação entre as estratégias narrativas adotadas pelos curadores da mostra e aquelas adotadas por romancistas como Camilo José Cela, em A Colméia, John dos Passos, em Manhattan Transfer, e Cyro dos Anjos, em Montanha. Se nos restringirmos a A Colmeia para efeitos de comparação, não se pode negar que o romance de Cela, de 1950, compartilha algumas características com a exposição, tais como a técnica simultaneísta de narrar o tempo, o acúmulo de personagens e sua fragmentária articulação em pequenos núcleos, criando o efeito de mosaico. Não obstante, o romance de Cela, escrito em uma estética modernista, se notabiliza pela ausência de protagonistas, de personagens principais, enquanto que a exposição quer justamente pôr em cena o cidadão comum como personagem da história. Em vez de ausência de personagens principais, todos personagens principais, brancos e pretos, sambistas e presidentes. Fragmentários, esboçados, mas personagens. (O que não impede, ainda, de que nesta colméia uma certa abelha-rainha zumba pela exposição: Getúlio Vargas, ainda personagem de destaque [apesar da descanonização que veremos adiante], cuja presença ilustra aquela contraditória “centralização descentralizada”, de que nos fala Linda Hutcheon [1991: 86].)

VI. Pluralismo

Fragmentação envolve, quase que forçosamente, pluralidade. Difícil imaginar um mosaico de apenas duas ou três cores. De fato, o pluralismo é outro traço forte do pós-modernismo, aqui entendido menos por “pluralismo estilístico”, algo mais ligado ao que irei trabalhar em “imanência” do que por multiplicidade, uma das seis propostas de Calvino para o milênio que se nos avizinha.

Segundo Hassan (1988: 69), por detrás da posição pluralista subjaz não um sentimento piegas de tolerância (e de paternalismo, eu adicionaria), mas um compromisso sobretudo ético. Partindo do pragmatismo de Henry James, Hassan aponta o pluralismo em direção a um “multiverso” em lugar de um “universo”, um “compromisso com a mediação e a negociação e não com o dogmatismo ou a contumácia”.

Na exposição, o pluralismo é evidente. Na sala destinada às religiões, um grande painel colorido mostra fotografias de diversos líderes e movimentos religiosos, como a umbanda, a Igreja Universal do Reino de Deus, o Padre Cícero, a Menininha do Gantois. Em três redomas de vidro, destacam-se a Bíblia, o Livro dos Espíritos e o Alcorão. Na sala destinada às armas, há desde as mais convencionais, algumas mesmo com aura de relíquia, como um revólver usado na coluna Prestes, sabres de Deodoro da Fonseca e o punhal que matou Pinheiro Machado, até o lúgubre e já citado pau-de-arara. Nesta mesma sala, a maquete de Oscar Niemeyer para o monumento “Tortura nunca mais”. Eis o pluralismo: a arma de quem abusou do poder e torturou junto à arma pacífica de quem sofreu e não quer que seu sofrimento caia no esquecimento: o monumento. Há também na sala “A Rua” um grande painel formado apenas por mulheres; em outro, com fotografias de samba, um negro, quase que em posição central, nos sorri.

O pluralismo está principalmente presente na multiplicidade de personagens que saem da “obscena” e surgem à “cena” (ver Gomes: 1996). Linda Hutcheon situa a década de 60 como a época em que grupos anteriormente silenciosos, “definidos por diferenças de raça, sexo, preferências sexuais, identidade étnica, status pátrio e classe” são registrados na história. Não foram esquecidos tampouco os diferentes capitais simbólicos desses grupos. É assim que, além dos cinco livros “básicos” de nossa literatura — Os Sertões; Urupês; Macunaíma; Casa-grande & Senzala; Grande Sertão: Veredas — estão também expostos folhetos de cordel. E além de um Chopin e um Caetano Veloso, um rap, misturando os códigos, misturando o universal com o local e criando não uma língua franca, mas uma miríade de dialetos. Steiner (1991) diz que “esvaziamos de sua própria humanidade aqueles a quem negamos a fala. Fazemos que fiquem nus e ridículos”. Humanizar os excluídos, fazendo com que eles vistam sua nudez com sua linguagem, é proposta de todo empreendimento pós-moderno que se queira plural.

A concepção pluralista da “nova museologia”, segundo a qual os dois ou mais lados da questão devem ser ouvidos, comparece de diversas maneiras. Na questão da tortura, e na questão da própria República: na sala do sertão, um Antônio Conselheiro ainda nos adverte dos males da República, que não está na Bíblia… Além disso, embora a curadoria assuma um lugar, sim (e por que não lembrar que a exposição foi concebida por uma mulher, Gisela Magalhães, e um negro, Joel Rufino?), já que não se pretende mais passar por neutra ou objetiva, parece-me relevante que a exposição não se situe de forma muito acentuada à esquerda, posição política mais freqüente entre historiadores. Antes de ser marcadamente de esquerda, ela é crítica; e antes de ser politicamente correta, ela é humorada e irônica. Um antigo comercial televiso da Coca-Cola (anos 60?), em que brancos tocam instrumentos “bem brasileiros” e dançam ao redor de uma baiana igualmente branca, deixaria politicamente corretos e patrulhas da esquerda de cabelo em pé. Mas ele está lá, em uma das últimas salas, em meio a outros anúncios.

Poder-se-ia objetar que contra a pluralidade concorre o excesso de citações de Lima Barreto. De fato, só no catálogo contabilizam-se 13 citações, sendo o escritor carioca seguido por Hilda Hilst, de quem há cinco citações. Embora eu reconheça que Lima Barreto seja, por sua visão acidamente crítica em meio à bonomia Belle Époque, um escritor absolutamente indispensável para se pensar o país no começo do século, a quantidade de sua presença pode suscitar a questão: não havia, nesse período, outras cabeças pensantes? Ademais, Lima Barreto foi um crítico ferrenho das reformas empreendidas pelo prefeito carioca Pereira Passos, reformas estas que, conhecidas pelo nome Bota-Abaixo, estão tematizadas na exposição. Mas estas reformas foram apoiadas por muitos intelectuais, entre eles Bilac. Onde, a sua voz eufórica?

De modo análogo, é excelente que se tenha colocado poesia em uma exibição, principalmente vindo ela de uma boa poeta infelizmente desconhecida do grande público: Hilda Hilst. Mas é uma pena que a poesia tenha ficado quase que exclusivamente nas mãos de Hilda Hilst. Se não há nada dos “medalhões” de sempre, como Drummond, Bandeira e Cecília, e se tampouco há exemplos de outros poetas menos conhecidos do grande público, como Lêdo Ivo, Murilo Mendes ou Audálio Alves, o foco excessivo em Hilda acaba criando como que um desequilíbrio. Se tal desequilíbrio é pós-moderno, não sei, mas seguramente prejudica o pluralismo, en outros aspectos tão evidente.

VII. Descanonização e carnavalização

Vivam as margens!
Alegre Trambiqueiro
Tom Wolfe

Descanonização ou, nas palavras de Lyotard, deslegitimização, aplica-se à subversão de todos grandes códigos, centrados na razão, no masculino, nos valores ocidentais, na alta cultura. Situei aqui outra conspícua característica do pós-modernismo: a quebra de fronteiras entre alta cultura e cultura de massa. Já a carnavalização é considerada aqui como a maneira através da qual a descanonização acontece: a morte do rei, do mestre ou, nas palavras de Hassan, “a descoroação do rei pelo bobo”, ato que, sem dúvida, reúne os dois traços ora considerados.

Historiando o surgimento dessa ruptura entre as fronteiras, Huyssen escreve que

a arte pop, em seu sentido mais amplo, foi o contexto em que primeiro ganhou forma uma noção do pós-moderno, e, desde seu início, as tendências mais significativas do pós-modernismo têm desafiado a constante hostilidade do modernismo para com a cultura de massas. (grifo meu)

É natural que a quebra de fronteiras cause arrepios em adornianos convictos. Para estes, Sontag irá chamar a atenção para o espírito de aventura, experimental, do empreendimento, sem “um desprezo elitista por aquilo que é acessível à maioria”. Já Gardner (1996: 107), lembra que as rêfregas entre o alto e o baixo, o popular e o elitista, ensaiam “a velha luta das forças centrífugas de inovação versus forças centrípetas que exigem ordem e autoridade”.

Sendo nosso objeto de estudo uma aventura, não causa espécie que ela esteja sob o signo das forças centrífugas, de tal maneira fortes que amiúde deitam abaixo todas as hierarquias. Na terceira sala, dedicada ao poder do sertão, redomas de vidro privilegiam a exposição de objetos como alpercatas, folhetos de cordel, balas de canhão. Por dentro da parede desta mesma sala, em belo efeito, vemos, através de um vidro, a mesa-secretária de Marechal Floriano Peixoto e, através de outro, o seu mobiliário. O Marechal de Ferro, centro de tantos acontecimentos da história oficial do país, recua para dentro da parede, para um parênteses, e dá lugar para as alpercatas já calçadas por milhares de sertanejos. O centro, até bem recentemente considerado eterno, imutável e universal, abre espaço, encosta-se a um canto, torna-se excêntrica.

Mas não são apenas alpercatas dramáticas que descanonizam o Marechal. A descanonização amiúde se dá de forma jocosa e irreverente: carnavalização. Logo na primeira sala, como já ficou consignado, presidentes entreolham-se ao som de Caetano Veloso, Rita Lee, chorinho e rap. Na sala contígua, os bustos de bronze não podem desviar a mirada da frase de Glauber: “A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”. O fuzil e o par de tênis. E tome rap. Menos seriedade, mais frivolidade, pedia Fiedler, e saímos da penúltima parte da exposição ao som de Fernanda Abreu, branca e rica, cantando samba na propaganda de TV das sandálias Reider.

A descanonização traz em seu bojo duas questões importantes. A primeira, diretamente ligada à quebra de fronteiras entre a alta cultura e a cultura de massa, faz-nos pensar nos riscos do vale-tudo, do “anything goes” (Kramer, apud Crimp, s.d.: 44). Colocado abaixo o muro, todos poderiam passar e fazer o que quiser. Porém, o pós-modernismo, pelo menos o de Barth, o de Hutcheon e o de Sontag, não extingue a capacidade crítica. Ser mais generoso na análise de outras manifestações culturais que não as da alta cultura não significa aceitar tudo em nome de um pós-modernismo. Em outras palavras, não significa pôr de lado o juízo crítico. A capacidade de se lidar com arte e cultura apenas se torna mais difícil, uma vez que já não se pode negar alguma coisa aprioristicamente, pelo mero fato de ela pertencer à cultura de massa.

A outra questão trazida à tona pela descanonização é a armadilha do etnocentrismo às avessas, isto é, transformar a margem em centro. Negar um cânone para impor outro. Negar Os Sertões e pôr em seu lugar o cordel. A diferença pós-moderna, no dizer de Linda Hutcheon, “é sempre plural e provisória”. Ocupam o palco ora um, ora outro, e aquele que, por motivos históricos e sociais, sempre foi relegado às margens deve estar “dentro, porém fora; cúmplice, porém crítico” (Hutcheon: 1991, 103).

VIII. Imanência e hibridação

A imanência consiste, segundo Hassan, “na capacidade secular que a mente possui de generalizar, de se prolongar através de linguagens, dos media, de novas tecnologias”. Os cinco sentidos em alerta, somos parte de um “sistema semiótico imanente”. Esta imanência, somada à profusão de novas tecnologias, não poderia ter outro efeito sobre as manifestações culturais que o sincretismo de estilos, que é, em outras palavras, hibridação.

A eletrônica tem hoje um papel tão proeminente na vida do homem urbano, que a simbiose entre homem e máquina já foi prevista (Heisenberg, apud Zavarzadeh: 1976, 20) como sendo da mesma ordem como a existente entre o caracol e sua concha, a aranha e sua teia. Susan Sontag (1965) afirma mesmo que o fulcro da nova sensibilidade reside nas obras inspiradas “abundantemente, naturalmente e sem constrangimento”, na ciência e na tecnologia.

Em A Ventura o sincretismo se apresenta do início ao fim. Temos desde redomas de vidros tradicionais, amiúde destacando objetos não-tradicionais em museus históricos, como o par de tênis e o amuleto de Getúlio, até a sala final, que apresenta a instalação “1/4 de Memória”. Entre uma ponta e outra, fotos antigas, fotos contemporâneas, uma televisão apresentando trechos de filmes, documentários, partidas de futebol e outra apresentando vídeos com comerciais completos e tomadas feitas no centro do Rio, com camelôs e com o saxofonista do metrô da Carioca. Em todas as salas, música, muita música. A riqueza de imagens e de música coaduna-se com uma época em que, inegavelmente, elas têm um peso e um apelo maior que o da palavra escrita, principalmente entre as gerações mais jovens. Já a inclusão de vídeos em um museu histórico atende, em primeiro lugar, à exigência que faz a “nova museologia” acerca da necessidade de se tematizar também o presente (cf. quadro de Sola). É ouvir os tão familiares pregões dos camelôs e as notas do saxofonista para perceber que o cotidiano é História. Em segundo lugar, a presença do vídeo confirma a assertiva de Jameson (1996: 93) de que é ele “o mais rico dos veículos alegóricos e hermenêuticos de uma nova descrição do próprio sistema. O cinema e a literatura não mais cumprem essa função”. Cumpre salientar que por “vídeo” Jameson entende suas manifestações correlatas, como a televisão comercial e o videoarte. Em entrevista ao Jornal do Brasil (29/11/96), Gisela Magalhães afirma mesmo que considera a propaganda a “arte da nossa época”. É ligar a TV e participar da História.

O pródigo uso de fotografias, vídeos, slides (na instalação) e músicas não significa que a palavra escrita tenha sido posta de lado. Fazê-lo seria incorrer na armadilha que mencionei no capítulo anterior: fazer da margem, centro. A palavra escrita, portanto, está presente não apenas na exposição dos cinco livros básicos já mencionados, mas principalmente em citações críticas, irônicas, bem-humoradas, poéticas, cáusticas, que ocupam generosamente diversos espaços, das paredes aos suportes.

IX. Sapere

Um saber com sabor. Neste capítulo final, irei mencionar en pasant alguns traços pós-modernos presentes na exposição que contribuem para que a (re)união entre saber e sabor tenha lugar. São eles: paródia, ironia, potencial combativo e capacidade de emocionar, que aqui se encontram bastante interligados.

É profícuo o desencontro que Hutcheon e Jameson têm acerca do conceito de paródia e de sua presença ou não no pós-modernismo. Para Jameson a paródia era uma característica do modernismo, que tinha ainda um texto fonte que podia parodiar, ao passo que ao pós restaria apenas o pastiche, paródia de uma paródia de uma paródia. Com a morte do mestre, já não haveria o texto fonte. Já Linda Hutcheon toma paródia na concepção de reelaboração crítica e a vê como um traço intrínseco ao pós-modernismo. Para ela, não ocorre o “canibalismo aleatório” criticado por Jameson. Sem tomar partido em nenhum dos lados, tomo paródia, aqui, na concepção de reelaboração crítica, algo definitivamente presente no espírito que anima a exposição. Basta dizer que o terceiro andar do Palácio do Catete permaneceu longo tempo quase que inteiramente vazio, tendo como único destaque o quarto de Getúlio Vargas. Quanto ao acervo, este se resumia, principalmente, a bengalas, medalhas, bustos de bronze. Pois tomar todo o acervo existente e uni-lo a outro, então criado especialmente para a mostra é, sem dúvida, exemplo de uma reelaboração não apenas crítica, mas também saborosa.

A ironia está mais presente no catálogo do que na exposição em si, o que não impede que, logo na primeira sala, a dos presidentes, leiamos em uma legenda: “Reserva moral da nação — Epitácio Pessoa, Geisel, Getúlio Vargas, Médici, Paulo Maluf, Nilo Peçanha”. A sala mais convencional, que apresenta medalhas e a primeira bandeira oficial da República, bordada pelas filhas de Benjamin Constant, não está tampouco isenta de farpas irônicas: vêem-se as medalhas ouvindo-se a voz de Cazuza: “Meus heróis morreram de overdose”. No suporte de uma das televisões, lê-se a frase de Lima Barreto: “Só souberam exclamar: Oh! e mais não disseram”, o que bem entendo como uma ironia a esse meio de comunicação tão popularizado. Dentro, porém fora. Cúmplice, porém crítico. Saber.

Anima a exposição um potencial combativo, aquele mesmo que Huyssen sentiu falta ao visitar a Documenta com seu filho. A exposição é combativa em sua montagem e em suas posições políticas. Sem se inclinar demasiado para a esquerda, revela no pródigo uso de Lima Barreto desconfiança em relação ao poder, sem que esta se resvale pare o pessimismo. A caixinha, colocada no genuflexório do quarto da instalação, traz mensagens otimistas de Fernando Henrique Cardoso. Isso tudo não significa, entretanto, que os visitantes estejam livres de ouvir os “Não toque!” dos seguranças. Nem mesmo em um tambor, tão convidativo, é permitido o toque. (“Se bem que ele não é uma relíquia”, confessou-me uma segurança.) O traço que Hassan definiu como “performance” — participação, preenchimento dos espaços — se dá muito mais a nível de refexão. Não há botões para serem apertados, mas muito, muito espaço de reflexão para ser preenchido.

Presente em todas as salas, a capacidade que a exposição tem de emocionar atinge o seu auge nos dois últimos quartos: o de Getúlio e o de memória. Barth (1981: 402) nos fala que Brecht guardava em sua mesa de trabalho um burrinho com o dizer: “Mesmo eu devo compreender” e afirma que os escritores modernistas, em vez de um burrinho, deviam ter um pequeno boneco representando um professor universitário com o dizer: “Nem eu posso compreender”. O pós-modernismo vai decididamente contra tal postura hermética do modernismo, pretendendo pegar seu público pelo laço. Que ele possa compreender, sim, participar e se emocionar, mas não da maneira barata e simplista como a proporcionada pela cultura de massa. Afinal, uma exposição em um museu não é uma novela das oito. Pode mesmo servir-se dela, mas não é ela. A obra pós-moderna pode mesmo ser difícil, mas que seja também atraente, de tal modo atraente que desperte no público o desejo de voltar a ela. Cada volta, cada nova leitura, revelará, ao contrário das obras epidérmicas da cultura de massa, novos significados.

O quarto de Getúlio, abelha-rainha da colméia, foi sempre ponto de peregrinação do Palácio. A curadoria optou por preservar seu clima quase religioso instalando nele apenas uma cortina de tule preto. A carta-testamento é emocionada e rigorosamente lida (em fita) por Affonso Drumon. O efeito obtido é espetacular, causa arrepios.

O mesmo se dá no epílogo da exposição, através da instalação “1/4 de Memória”, encenada em um quarto escuro, que foi o quarto de dormir de grande parte dos presidentes do Brasil. Em uma cama, a imagem de um homem velho, sem identificação, é projetada por sobre os lençóis. Acima da cabeceira da cama, em uma enorme cortina esvoaçante, imagens da história do Brasil, recentes e antigas, surgem para logo serem lentamente consumidas pelo fogo. A trilha sonora consiste em uma colagem de ruídos (que lembram a “Revolution 9”, do Álbum Branco, dos Beatles) que vão de vozes a balidos. O clima é de vago temor, um temor vagamente religioso. Aos pés da cama, quem se ajoelha no genuflexório (o que pouquíssimos fazem, pois não percebem que há alguma coisa ali) tem um contraponto: Fernando Henrique Cardoso, em uma microtelevisão, dá mensagens positivas. O homem sobre a cama se vira de bruços, chega a ressonar, enquanto as imagens surgem e se queimam.

De certo modo, lembrei-me do trabalho do belga Vautier, do grupo Fluxus, chamado Total Art Match-Box, que consistia unicamente em uma caixa de fósforos de cabeças azuis, com os dizeres: “Use esses fósforos para destruir toda arte — Museus, Bibliotecas de Arte, Pop — Queime tudo — Guarde o último fósforo para esta caixa”. Parece que tudo o que foi visto até então pode se consumir no incêndio do passado. História é hoje.

 

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