Cidades em Diálogo

De como Almada Negreiros constrói sua invenção em Nome de Guerra

Claudia Chigres

Nome de Guerra, de Almada Negreiros, pode ser lido sobretudo como auto-retrato literário[1], romance em que são abordadas as questões centrais do autor Almada, recorrentes em vários escritos, sejam eles poesia, ensaio ou peças teatrais, agora reunidos e condensados pela trajetória de um personagem — Luís Antunes.

Por que auto-retrato? Porque o auto-retrato, diferentemente da autobiografia, concerne basicamente à descrição, aqui ficcional, da construção de um foro íntimo, de um imaginário particular, de um sujeito que pretende contar não o que eu fiz, mas o que eu sou, como cheguei a ser o que sou, e o que faço comigo diante do mundo.

O fato de ser ficcional autoriza a caracterização de auto-retrato para o personagem Antunes. Porém, talvez possamos afirmar que é através de Antunes que Almada desenha seu próprio auto-retrato, já que é um romance de construção, de aprendizado, uma releitura, onde o narrador conduz a fala do personagem em busca de seu autoconhecimento. Ademais, Almada é sobretudo um artista, e é pela arte, pelo inventar-se na ficção, que afinal desenvolve um auto-retrato, o seu, o de Antunes, ou de “todo aquele que couber dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa”[2].

Aparentemente descontínuo, já que não inclui uma trajetória retilínea, mas coroada por lembranças, divagações e descrições de fragmentos de tempo — dia, noite, amanhecer — e de fragmentos de espaço — clube, hotel, quarto, rua —, e organizada por sua própria lógica temática, Nome de Guerra como auto-retrato configura-se ao mesmo tempo como uma pedagogia — dirigida aos outros, aos leitores — e como um discurso dirigido a si mesmo, ao próprio escritor enquanto sujeito no mundo.

Podemos dizer que a narrativa almadiana oferece três níveis ou operações de análise, se bem que apresentadas como conjunto. O primeiro nível diria respeito a um retrato verdadeiro dos eventos e fatos que o personagem viu. Neste aspecto, Almada faz um retrato bastante peculiar e original de Lisboa. De modo realista e econômico, mas extremamente pungente em imagens, tal qual seus desenhos e caricaturas, Almada descreve a sociedade lisboeta que freqüenta clubes noturnos, a situação de prostitutas e garçons, inclusive transcrevendo diálogos — falsos, porque imaginados, mas verdadeiros, porque verossímeis — entre rapazes que conversam despreocupada e alegremente sobre o amor, ou mesmo entre prostitutas em seus mais íntimos segredos.

Almada parece ter por intuito desenhar um perfil, não da sociedade como um todo, mas de determinados segmentos desta. Este fato já pontua a modernidade de Almada, tanto no que diz respeito à escolha do tema, quanto à sua apresentação. Tendo em vista a época em que foi escrito, Almada pode ser encarado como um grande expoente do Modernismo em Portugal, já que elabora, neste romance, uma nova maneira da Arte em lidar com temas correntes da literatura — por exemplo, a dicotomia campo x cidade —, procedendo não a uma inversão, mas a uma nova forma de abordar o assunto, mais complexificada em seus termos constituintes, e na qual o embate, ao invés de dicotômico e reduzido em seu maniqueísmo, é ampliado a vários embates, várias correntes, seja na província, seja na cidade.

O segundo nível corresponderia a uma reflexão do que o personagem participou e pensou. Ele se dá através dos perfis que descreve, através de situações vividas pelo personagem e sua inserção nestes ambientes. Exemplo disso seria sua primeira noite no clube, na qual a descrição de suas atitudes diante de D. Jorge e das prostitutas não corresponde ao que vê ali, e o personagem parece saber-se desconfortável. Voltaremos a isso.

O terceiro nível trataria de sua auto-reflexão, geralmente em ambientes em que se encontra sozinho consigo mesmo, mesmo que esteja na rua diante da multidão. Ou seja, o personagem, neste nível, não interage com ninguém a não ser consigo próprio.

Se o primeiro nível pode ser caracterizado por eles, o segundo nível seria nomeado por nós, e o terceiro por eu. Correndo paralelo aos outros dois, e aí entra a pedagogia do autor, o terceiro nível é aquele que promove uma auto-reflexão sobre o mundo, sobre si diante do mundo e sobre si diante de si. Apenas neste nível se dá a construção / modificação do personagem, que trará conseqüências sobretudo ao segundo nível.

Assim, se o mote para se pensar / construir se dá a partir das situações vistas e vividas, a transformação interna se dá dentro do personagem em construção, no seu íntimo, irradiando aos outros níveis as conseqüências desta transformação: ao primeiro nível, porque pode ver de maneira diferente da anterior, ao segundo nível, porque então pode agir e se relacionar de forma diferente da anterior.

Como se dá a imbricação desses três níveis, e de que forma esta imbricação relaciona-se às questões fundamentais de Almada, ao nó almadiano, é o que me proponho a seguir.

O nó almadiano

Já no primeiro capítulo, As Pessoas Põem Nomes a tudo e a si Próprias Também, Almada parece nomear de um só golpe vários temas que se propõe a tratar, como um prólogo, um índice de equações a serem, se não solucionadas, pelo menos tratadas.

Um destes temas, talvez o que englobe todos os demais, refere-se à questão do sujeito diante da realidade, à questão de como e porque nomear as coisas, ou seja, de como a linguagem é capaz de nomear a realidade e que conseqüências este fato pode trazer, seja para o indivíduo — nomeado e nomeador —, seja para a sociedade — também nomeada e nomeadora. Vejamos:

Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes puseram no baptismo, ou ele tem de seu o bastante para marcar a cada um. (NG. p.27)

Veia corrente da reflexão de Almada, esta questão aparece também desenvolvida nos poemas A Invenção do Dia Claro e As Quatro Manhãs[3] e também no ensaio Direcção Única[4]. Se, para Almada, os nomes nos são dados independentes de nossa natureza, ou nos fazemos, nos inventamos, nos construímos em relação ao nome que nos dão, ou deixamos que nos marquem por eles mesmos. Qual o peso da sociedade e qual o peso do indivíduo? Haverá equilíbrio? Parece que sim. Pois, como diz na Primeira Manhã[5],

Quando eu cheguei devia ser tarde,
já tinham dividido tudo
pelos outros e seus descendentes.
Só havia o céu por cima dos telhados
lá muito alto
para eu respirar
e sonhar.

E mais adiante:

Nascer é vir a este mundo
não é ainda chegar a ser.
Nascer é o feito dos outros.
O nosso é depois de nascer
até chegarmos a ser
aquele que o sonho nos faz.

A explicação também está dada na Invenção do Dia Claro[6] quando diz que “as palavras já foram inventadas” e que é preciso então “Inventar outra vez as palavras que já foram inventadas”. Para que isso aconteça, é necessário descoser vínculos, desconstruir significados dados, projetando um olhar novo sobre eles e reinventar elos, tecidos, linguagens.

Decorrência deste tema, é a questão indivíduo-coletividade, que também pode ser lida como natureza-sociedade ou ainda como particular-universal. Ainda no primeiro capítulo, diz o narrador:

Mas a verdade é que o facto de alguém ser Joana ou Manuel já é mais do que ser apenas homem ou mulher. Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E se o João é Sousa e a Manuela é Pereira, então, à natureza e à vida junte-se-lhe ainda por cima a existência e complicou-se o problema. (NG.pp.27-8)

Ao relacionar sobrenome/ nome/ e nome de guerra, Almada relaciona também tradição, presente e invenção, bem como aborda a questão que permeará todo o romance: tradição e modernidade:

Nós todos, inclusive os expostos, temos todos as nossas árvores genealógicas do mesmo tamanho. Lá no tamanho das árvores somos todos iguais. Mas é precisamente nas árvores que está a nossa diferença.Vê-se perfeitamente que a cada um aconteceu qualquer coisa que não se passou com mais ninguém. E aconteceu-nos antes ainda de nós termos nascido. É a árvore genealógica. Esse segredo do nosso segredo. Esse mistério do nosso mistério. Nós somos hoje o último fruto dessa árvore secular, secularmente secular!(…) Não! Não somos um fruto qualquer, somos como qualquer outro fruto. (NG. p.28)

O grande mistério para Almada, o grande segredo, é descobrir a colaboração entre estas correntes dialógicas, e caminhar junto com a humanidade sendo cada um como cada qual. Esta seria a direção única. E para se alcançá-la, já que não depende somente de nós, da nossa vontade, é preciso ter em mente o nosso papel no mundo, como individualidades que fazem parte de um todo maior. Para tanto, é preciso descobrir o nosso mistério, o Grande Segredo de sermos nós mesmos a construirmos nossos caminhos, como na Terceira Manhã:

eu jamais saberia nada
senão através das minhas próprias dimensões,
senão à luz da minha estrela,
à luz da aurora do meu mistério
Que o pobre do mundo clama
para que desvendemos cada qual os nossos próprios mistérios!

Mas, para isso, não há livro — como fica patente na primeira parte da Invenção do Dia Claro —, não há ciência que nos dê a fórmula do autoconhecimento. Em Nome de Guerra, a versão de Almada assim se verifica:

A árvore genealógica não funciona como ciência. É mesmo o contrário de ciência: mistério! Um mistério que se espelha só em cada um de nós! Um verdadeiro mistério humano, que ultrapassa a sociedade e a ciência, que respira apenas ar de Arte e de Religião! (NG. p.28)

Nome de guerra: Judite

A primeira personagem que aparece no romance não é o protagonista, mas sim Judite. Esta é apresentada como tendo um nome de guerra — título do romance — que, no entanto, não será dado a conhecer pelo leitor. E o que é um nome de guerra senão uma persona que Judite colou a si própria? Indaga o narrador:

Parece que, em verdade, um nome suposto facilita. Não sei o quê, mas facilita. E se facilita é porque o nome verdadeiro transtorna ou transtorna-se. Haverá assim necessidade da mentira para defender a verdade? (NG. p.31)

E novamente a questão dos nomes. Nome de guerra, sobrenome, anonimato. Como sobreviver, como viver em sociedade, defendendo nossa individualidade e assumindo, ao mesmo tempo, um papel? Judite é encarada como aquela que é só persona, como aquela que escolheu um papel — talvez para poder enfrentar a sociedade —, que vive a maior parte do tempo como Judite, age como Judite e até parece poucas vezes se lembrar de que não é Judite. Mas, ou por prudência ou por incapacidade, não revela seu verdadeiro nome: cala-se.

Antunes estreante

Apresentadas as questões, apresentada a personagem-título, Almada apresenta a seguir um dos ambientes no qual se desenrolará a trama: o clube noturno de Lisboa, freqüentado por prostitutas e experimentados — personas que conhecem os códigos internos do local, e que agem dentro desses códigos.

Não é por acaso que Antunes será apresentado, logo ao título do sexto capítulo, como um estreante. Ele, que entra no clube pela primeira vez, desconhece os códigos, assiste a tudo com curiosidade e procura de alguma forma inserir-se nessa nova teia de signos, o que configura situações engraçadas por conta da sua inadaptação.

Nunca ouvira tanto barulho nem no Carnaval. Mas gostava. Achava graça. Dizia ele. Com efeito, antes de mais nada, ele apenas fazia por gostar, mas os seus olhos rebolavam por todas as bandas e não paravam em nenhuma. O experimentado companheiro tamborilava com o talher nos pratos e copos a dar com a música. O exemplo estava dado e pegou como uma epidemia nas outras mesas. O estreante aprendia aquela maneira de usar o talher, porém, incapaz de orientar-se na chinfrineira, copiava de preferência a mecânica do gesto do mestre. Quando os pares se desfizeram e cada um foi restituído à sua mesa, ele não percebeu que foi por ter acabado a música e a dança. (NG. pp.39-40)

O estreante, então cansado de tantas novas informações e demandas, dirige sua mente para um sítio já conhecido — sua cidade, sua família, seu nascimento, e a causa de sua estada em Lisboa: seu tio. O universo que pensa dominar é bem mais reduzido e estanque, recolhido a poucos e tradicionais códigos de sociabilidade. Isso não quer dizer que lá não haja papéis, mas antes significa dizer que os papéis são menos mutantes, mais duráveis, e que sobretudo ele pensa dominá-los, mesmo porque talvez nunca tenha pensado nisso.

O tio é descrito como aquele que dividia o mundo em duas espécies — os que não racham e os que não prestam para nada. Claro está que essa classificação vinha acompanhada de uma frase sempre pronta: “é preciso quem faça as coisas”.O tio era uma presença entre as gentes, mas não sabia estar sozinho. Porque estar sozinho é interagir consigo próprio e dialogar com a vida que temos dentro de nós. Isso ele não tinha. Calou-se antes Judite ao querer pronunciar seu verdadeiro nome, cala-se a vida do tio em sua intimidade. Um e outro não sabem e não podem ficar sós.Como diz, Judite “fugia horrorizada dos lugares pacíficos que lhe negavam a paz e ia misturar-se na multidão para não se ver, para não se sentir” (p.80).

De volta ao clube, já que de lá não havia saído, Antunes e Judite se conhecem, e o estreante dá continuidade à sua falta de experiência e falta de coordenadas.

O Antunes arranjava sorrisos, gostava de saber dizer qualquer coisa para quando há daqueles momentos, queria sobretudo ser como um de quatro à mesma mesa. Ele já o tinha reparado: só sabia estar atrás, no passado, até ontem, o mais tarde até entrar naquela sala. Tudo o mais era imprevisto, não estava no seu programa, ele bem não queria ter vindo a Lisboa. Mas já que estava, ele gostava de poder estar. Nunca na sua vida fizera um esforço tão grande como agora. Inútil. A primeira vez é a primeira vez. Amanhã fará melhor. E sorria-se. (NG. p.50)

A ação prossegue, o experimentado D. Jorge tentando fazer com que Antunes e Judite finalmente exerçam os papéis determinados a um homem e a uma prostituta, inclusive deixando para ele a tarefa de despi-la. Mas o resultado não é o esperado, pelo contrário, é a inversão total dos códigos, já que Antunes, além de sequer tocar em Judite, apaixona-se por ela.

A relação entre os três níveis

Até aqui estivemos atravessando os níveis 1 e 2 de análise, ou seja, um retrato verdadeiro dos eventos e fatos que o personagem viu, bem como sobre o que o personagem participou e pensou. É chegada a hora de entrar no nível 3, isto é, sua auto-reflexão. Sozinho em seu quarto de hotel, encontra-se com seus pensamentos.

Toda a gente sabe que ninguém neste mundo é estúpido senão por não saber estar onde está! Ora o Antunes, para qualquer parte onde vai, já não sabe onde está! Contudo, sozinho, ele tem, só para ele, uma maneira de ver as coisas muito sua.
A sua memória abrangia todos os momentos em que andou acompanhado e em todos os pormenores. A par disto a sua crítica fazia-se, embora os seus julgamentos fossem no fundo de um poço, longe do testemunho de toda a gente. Assim era o primeiro a reconhecer que, em tudo o que se tinha passado, havia um único ridículo: era ele! Via-se forçado a pensar desta maneira para respeitar a verdade. Mas ele amava a verdade acima de tudo. Acima até das desculpas que ele soubesse inventar para se justificar. Quem pensa sozinho não quer senão a verdade, as justificações são por causa dos outros. (…) Em sociedade desaparece-lhe o homem que pensa sozinho. (…) Abrira-se no seu íntimo a janela que dava para a vida: os outros, o próximo, a multidão, a humanidade. (NG. pp. 61-2)

Caso aceitemos que a auto-reflexão é uma janela para que nos olhemos criticamente, e se Antunes, ao se encontrar sozinho, pratica este debruçar-se sobre si mesmo, podemos acrescentar ainda um outro fator que propicia a auto-reflexão: a suspensão do hábito. Tendo em vista que o hábito age como que um anestésico de nossa percepção, obrigando-nos a um contínuo reajuste de nossa sensibilidade face às exigências do mundo, tudo me leva a crer que esses períodos de reflexão devem-se à breve suspensão da vigilância do hábito. Seja momentâneo, passageiro, ou efêmero, o amortecimento do hábito nos propicia a reflexão sobre nossos papéis e nos coloca face a face com o espelho de nós mesmos.

Segundo Samuel Beckett[8], a suspensão do hábito oscila entre dois pêndulos: sofrimento e tédio. O primeiro se dá quando se abre uma janela para o real, e é considerado como a condição principal da experiência artística. O segundo é tido como o mais tolerável dos sentimentos, já que, de todos os males humanos, é o mais duradouro. No caso de Antunes, a morte do hábito ora é proporcionada por condições reais de quebra de laços e desconhecimento de códigos, ora por sofrimento — seu desejo por Judite contradizendo sua educação —, ora por tédio — também em relação a Judite. De qualquer maneira, são estes períodos de reflexão que vão preparando o personagem para um novo nascimento, e colocando-o diante de seu mistério, de sua vontade:

Ora o Antunes amava a verdade acima de tudo e não tinha necessidade nenhuma de estar a mentir a si próprio, e portanto, disse a verdade: aquele corpo nu de mulher foi o mais belo espetáculo que os seus olhos viram em dias de sua vida! (NG. p.66)

Sabedor de sua vontade, de sua condição, vem o sofrimento, o sofrimento que os ignorantes não têm:

O Antunes via que a sua educação e a realidade estavam em guerra, naquele momento só que fosse. A realidade, por ironia, tinha posto uma mulher nos braços de sua educação. E quando a realidade fala com tamanha brutalidade é seguramente porque não pode ser ouvida de outra maneira. (NG. p.68)
Ele fazia diferença entre viver e existir e, ao separar estes dois verbos, um fantasma velado atravessou a sombra de repente. Ele via em pessoa no seu pesadelo essa maldição possível de ter vindo a este mundo e não ter feito parte da vida. Havia uma grande lacuna na sua vida, e sentia-se apartado do resto do mundo, como se tivesse crescido a maré e ele ficasse no mar em cima de um rochedo sem ligação com a terra. (NG. p.68)
Mas o mais difícil era esquecer o que lhe ensinaram. O mais difícil era ficar outra vez ignorante: aquela genial ignorância das idades onde se começam todas as coisas deste mundo. (NG. p.76)

Antunes protagonista

É curioso notar que a partir desse segundo nascimento, o narrador muda também a denominação que costumava dar a Antunes nos títulos dos capítulos: de estreante, Antunes passa a ser protagonista. Ele agora pretende realizar seu sonho, o de encontrar uma mulher, pretende protagonizar seu enredo, enfim, sua vida. Mas as coisas não se darão de forma pacífica. Quando queremos reconstruir o construído, precisamos antes desconstruir o feito para então rearrumá-lo, refazê-lo. Nesse processo de desconstrução, conceitos e sentimentos ficam suspensos, e organizá-los de acordo com nossa vontade, além de demandar tempo, demanda também dor, confusão e paciência.

Os sentimentos de Antunes oscilam entre Maria — a noiva pura e ingênua da província — e Judite — a prostituta experimentada da cidade —, traduzindo todas as dicotomias levantadas por Almada Negreiros em seus escritos. A difícil conciliação de termos dialógicos sobrevoa a cabeça de Antunes, que, hesitando confusamente entre uma e outra, funde imagens inusitadas que desembocam em uma fantástica visão que exibe seus desejos.

As imagens destas duas mulheres sobrepunham-se e faziam coincidir os seus contornos numa única figura que torturava o coração do Antunes. Estes seus pensamentos involuntários davam-lhe a impressão de irem ofender quem não se mete com o mundo, mas por outro lado, o Antunes estava curioso de ouvir o seu coração a falar sem escrúpulos. O Antunes queria saber claramente tudo quanto se passava no seu íntimo. (NG.p.82)
Era tal a curiosidade do Antunes em querer saber exactamente o seu desejo que seguiu com toda a atenção a sua visão fantástica, como quem escuta a sentença do que será de si amanhã. Mas esta sua visão era apenas a fotografia da sua própria impaciência, e as personagens correspondiam paralelamente às desordens de sua cabeça, do seu coração e da sua vida inteira. De modo que tudo o que o Antunes ficou sabendo foi que tinha uma grande curiosidade de saber a verdade. (NG. p.83)

A direção única, ou quando 1+1=1

Antunes tem diante de si uma direção: o trajeto hotel-clube. Mas não consegue ainda achar-lhe o sentido. Vai de um a outro e de outro a um. A sua Lisboa era entre o hotel e o clube. Num e noutro faltavam-lhe laços que o prendessem, que o tirassem daquele estado de suspensão. Num e noutro faltava-lhe o que procurava: intimidade, complemento, vida.

No ensaio Direcção Única, Almada elabora uma teoria a partir de uma sentença lógica: 1+1=1. Uma das palavras-chave utilizada por Almada para compreendermos o (des)envolvimento da humanidade é colaboração. Assim, caso tenha um conteúdo positivo, ou seja, caso haja verdadeiramente colaboração entre duas categorias aparentemente opostas, caso haja complemento, troca, temos a chamada direcção única, em que 1+1=1, ou seja, a colaboração e o envolvimento entre duas individualidades ocasionam uma direção única: a direção da humanidade, pois, como diz, a humanidade é única, apesar de os indivíduos serem diversos.

Caso tenha um conteúdo negativo, temos que 1+1=0, ou seja, direção proibida, cujo resultado é a solidão, a pura existência em detrimento da vida, pontuada em vários escritos, seja na poesia Panorama, seja na peça Pierrot e Arlequim[9]— individualidades solitárias, trágicas que, apesar de opostas, inserem-se no mesmo plano, na mesma virtualidade vazia.

Como sabemos, Antunes quer viver, quer perseguir seu ideal. E seu ideal neste momento é encontrar o objeto que ocupe o segundo termo da sentença lógica 1+1=1. Esse objeto é Judite. Após muitas tentativas, Antunes parece alcançar seu ideal: Judite aceita-o. Formam então um par. Porém, como revela o título do capítulo, um par sem outro sentido além de par. Levará algum tempo ainda para Antunes descobrir que eles não correspondem à fórmula da direção única. Judite está por demais colada a sua persona. Míope que é, não olha senão para seus interesses imediatos: ter um cavalheiro ao lado não é nada mais do que passeios ao Tejo, roupas novas, ostentação e luxúria.

O Antunes começava a ver que, afinal, aquele viver no céu era muito caro. Olhou para dentro de si e quis manobrar o travão da descida, mas a sua dignidade fê-lo enganar-se na direcção e viu de repente que estava mesmo em frente da responsabilidade do sustento daquela rapariga, que trocara tudo pela sua companhia. (NG. p.111)
Observou o Antunes que a vida ali naquele quarto era comer, beber, dormir, estarem juntos, encostados um ao outro, jogar a bisca, pagar contas e nem mais nada. O que ela fazia mais do que tudo era comer e beber, o que ela fazia mais do que tudo era dormir, o que ela fazia mais do que tudo era jogar a bisca, e depois dito nem mais nada. Começava o Antunes a ter os sentidos azedos como o estômago e a boca, sentia um grande entorpecimento motivado por um excesso de facilidades materiais, uma espécie de indigestão por causa de uma falta de aspectos variados diante dos seus olhos; parecia-lhe que estava numa prisão, condenado a um regime repetido diariamente, sem saída, sem uma crença, sem fé em nenhuma transfiguração, sua, dela ou dos dois.(NG. p.112)

Da alegria de ter conseguido Judite, do paraíso de passar com ela dias e dias em plena intimidade, segue-se o tédio. E Antunes começa a vislumbrar novamente a realidade de sua condição. A repetição de termos e sentenças utilizadas por Almada confere nitidez à rotina vivida pelo casal, na qual nada se constrói, nada se sonha, nada se deseja, nada se procura, nada se faz.

A realidade começava a meter-lhe os dedos pelos olhos dentro e acabava por andar na sua frente, naturalmente, nas variadas distâncias, longe ou encostada, como um objecto que afastamos ou aproximamos, conforme é nosso desejo e curiosidade. (NG. p.113)

Novamente com seus pensamentos, Antunes descobre seu segredo: Judite é apenas um episódio em sua vida, e contra ela. Judite é a porta que abriu para descobrir a si próprio, sua entrada na realidade, seu rito de iniciação. Judite, enfim, é “a estátua mutilada da Verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da estátua mutilada é verdade!” (p.153).

O estreante da vida aprende com a realidade seus códigos, aperfeiçoa-se na sua linguagem, e sua reflexão vai se alargando passo a passo com suas descobertas. Assim, o resultado da auto-reflexão, do eu, irradia-se para o nós — sua relação com Judite — e para o eles — o protagonista decide ir à rua ver a multidão. Certamente que agora poderá encará-la de maneira diferente, não mais temendo-a, não mais vendo-a como um bloco sem rosto e sem personalidade, mas como individualidades que compõem a humanidade, como diferenças que se misturam e se auto-alimentam, como 1+1=1.

Da mesma maneira, a descrição agora do clube e de seus freqüentadores aparece invertida em relação à primeira descrição, quando da primeira noite em que lá entrava. Se antes achava tudo curioso, engraçado, em que ele era o ridículo, agora não poupa críticas àqueles corpos aprisionados em suas máscaras:

Ele queria a verdadeira mentira, essa que vale tanto de noite como a verdade de dia. Mas por mais que fizesse não conseguia deixar de ver diante de si, em todos os homens e em todas as mulheres, caricaturas grotescas, estrangeiras, tortas, incompreensíveis, inúteis, mal fabricadas, erradas, empecilhos, envenenadores da memória, mascarados, oiro de cenografia vista ao pé, papelão a fingir carne, barato e sem ilusão. Eles tinham esgotada a imaginação: incapazes de ironia e de optimismo, esmagados pela realidade, esborrachados pela vida, impossibilitados, estampados, inválidos, parados. A imaginação reduzida à fantasia, o artifício limitado à mecânica. Nem verdade nem mentira, nada! Nem desequilíbrio nem erro, nada! Bonecos, fantoches, sem saída, corpos sem alma, almas que morreram primeiro do que os corpos! Gente que ia de passagem e ali ficou para sempre. Copiam, repetem, imitam, representam, mas de repente a sina escurece outra vez. Ficam os foles em vez da respiração. (NG. p.158)

Morreu a Maria, acabou-se a Judite

Ao receber a notícia da morte de Maria, Antunes sente-se aliviado, liberto, e conclui que por ter morrido a Maria, acaba-se então Judite. Por quê? Se Judite não fazia jus ao segundo termo da fórmula 1+1=1, tampouco o fazia Maria. Estes dois elos da vida do personagem ligavam-no a uma realidade que não mais correspondia a seus anseios e seu aprendizado da vida. Maria, porque simbolizava um amor à distância, sem carne, sem nada que pudesse fazê-lo se sentir homem. Era uma “noiva” de ocasião, não escolhida pelo seu desejo, por sua vontade. Judite, porque significava apenas um degrau na sua descoberta, necessário ao princípio, mas desconsiderado em seguida.

A sua ligação com Judite tinha sido uma compensação, uma desforra, um contrabalanço… de quê? A sua vida esteve toda inclinada para o lado oposto ao da Judite. Para onde? Houve um desequilíbrio para responder a outro desequilíbrio, necessário para pôr o fiel a zero, como um pêndulo vai obrigatoriamente de um a outro lado da vertical a distâncias iguais, para cumprir a simetria, a gravidade e a oscilação. O desequilíbrio era para os dois lados: a Maria e a Judite eram ambas ainda o mesmo erro! (NG. p.183)

Uma e outra anulariam-se pela fórmula 1+1=0. Tal como Pierrot e Arlequim — o primeiro por ausência de realidade e o segundo por excesso desta — Maria e Judite não conseguem desgarrar-se de suas personas, “coitados, já não têm na verdade salvação possível”[10]. Com a morte de Maria, cai o pano para sempre de Judite. Como diz Almada nos Comentários à peça em questão,

A morte de Pierrot e Arlequim explica-nos tudo: Eles afinal nunca pertenceram à vida, (…) As suas mortes foram exactamente como as suas existências: dois isolados !… Ambos morreram como personagens, não tendo nunca chegado a ser pessoas[11].

A odisséia do personagem por uma autodescoberta prossegue. Até aqui, Antunes andava atordoado, confuso, num redemoinho em que sentia que “Todos os seus hábitos foram decepados.” (p.177). Não sabia o que procurar para amenizar seu estado de torpor, para curar o mal que lhe afligia. A ciência mostrava-se incapaz de entender seu problema: o médico que consultou como um sonâmbulo poderia no máximo curar seu corpo, não sua alma. Tampouco a instituição da tradição — a Igreja — resolveria seu caso. Antunes percebe então que era preciso

acertar com o chão, ir por onde vão os outros, a par da vida, sem ficar para trás, nem voar, nem tirar os pés da terra. Agora era cá outra coisa só com ele. A sua vida não podia deixar de continuar. Ele não sabia como. Bom ou mau, tudo era apenas passado. Era o seu único mestre. Havia de tê-lo sempre bem presente. (NG. p. 178)

O que faço comigo diante do mundo

O protagonista nasce pela terceira vez. Chegada a consciência, sabe-se responsável por sua própria vida. E agora? Agora era o momento de arrumar a casa, ou seja, aproveitar sua condição de independência para construir novos hábitos, organizar seus pensamentos, inventar novamente as palavras e trabalhar seu texto. Assim, sai do hotel e aluga uma água-furtada, com vistas para o Tejo.

— Palmela e Almada. De cá, Sintra e Santarém. Mouros, Afonso Henriques. Os cruzados. E desde então até hoje. Até aqui a esta água-furtada. Até mim. Tanta gente e tantos séculos encarreirados por aqui: as quinas, Avis, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal. (NG. p.193)

Nos Comentários a Pierrot e Arlequim, Almada dá nome a seu segredo: Anjo da Guarda. Através de uma parábola aparentemente ingênua, na qual o Anjo só responde ao que lhe for realmente bem perguntado, Almada mostra-nos quão importante é saber o próprio desejo, de sorte que se transforme em uma questão bem feita. Estando a pergunta formulada, ao Anjo só caberá responder que, com uma pergunta tão bem perguntada, só falta pensar mais um bocadinho que a resposta vem em seguida. E conclui: “Quer o Anjo da Guarda dizer com as suas palavras que muito mais difícil do que responder é perguntar”[12].

Antunes pode agora ser encarado como aquele que está aprendendo a formular suas perguntas, está descobrindo o que é verdadeiramente perguntar.

Porque não me hei-de explicar, se tenho em mim os dados? Hei-de morrer sem saber dizer-me todo? Hei-de acabar por não de dar a conhecer bem a mim nem aos outros?

Dialogando com seu Anjo da Guarda ou com as estrelas no céu, Antunes vai construindo seu próprio entendimento do mundo, vai descolando sentidos impostos pela sociedade e conjugando seu próprio verbo. Sua percepção do mundo alia, agora, doses pessoais de imaginação e criatividade a conceitos pré-estabelecidos, escapando, de um lado, à mecânica das atualidades, e alcançando, por outro, seu próprio pensamento.

O que há de terrível na vida moderna são os aspectos do quotidiano atingirem um tal grau de nitidez que esta facilmente destrona aquela que devia estar em cada homem de hoje. De facto, não estamos feitos a poder receber os choques das mil e uma caras da realidade exterior e, sentindo-nos incompletos, cremos que é esse conhecimento que nos falta. Talvez. Mas o que nos falta com certeza é confiarmos mais em nós mesmos. Temos o instinto quando nos falte o conhecimento. O instinto dá-nos imaginação bastante para abreviarmos todo o conhecimento de que necessitamos para nosso uso. E assim poderemos formarem-se serenamente os nossos legítimos sentimentos. (NG. p.212)

O romance termina exatamente como a última obra de Almada Negreiros, exposta no Museu Caloustre Gulbenkian: o quadro Começar. Antunes, agora, pode começar a viver seu sonho.

Conclusão

O que é curioso em Almada Negreiros, não é somente a sua filosofia, não é somente o conteúdo de seus escritos. É também o modo pelo qual opera seu raciocínio. Pois, além de inverter a aritmética, inverte também a lógica e, por que não, a gramática. Se, como vimos, 1+1 pode ter como resultado 1 ou 0, da mesma forma as sentenças lógicas que opõem contrários, se transformam, pela mão de Almada, através da conjunção aditiva e, em totalidades outras, recriadas por colaboração e complementação de opostos: não mais opor homem a mulher, mas agora pensar e viver em termos de homem e mulher; não mais opor indivíduo a coletividade, mas agora relacionar indivíduo e coletividade; não mais opor pessoa a persona, mas relacioná-las entre si; não mais opor interior a exterior, mas vê-los como uma totalidade; enfim, não mais opor Pierrot a Arlequim, mas relacioná-los como manifestações diversas de um só indivíduo.

Segundo Almada, este século é o século - trágico e alegre, Pierrot e Arlequim - onde a claridade da visão e da experiência permite conceber um novo caminho da direção única, qual seja, a correlação, ou melhor, a colaboração, entre universal e particular. Parte e Todo, de tal forma imbricados, em que um não mais se separe do outro. Esta, talvez, seja a utopia feliz de Almada. Como diz Eduardo Lourenço, vontade de origem e originalidade. Por origem, entendo criar, encontrar a individualidade, o ponto pessoal de cada direção única. Seja pela ingenuidade infantil, seja por um novo olhar, seja ainda por um mergulho nas Quatro Manhãs pela busca incessante de um ponto de origem que a tudo oriente e organize:

Tudo começava lá, ao princípio,
num ponto:
um simples ponto sem dimensão,
e do qual partiam depois todas as linhas
todos os ângulos, cones e sectores
de uma esfera infinita
da qual a terra era uma pequena reprodução
e eu uma pequena reprodução da terra.
Desde o ponto inicial até mim
a linha era única
e não pertence hoje
senão a mim.

Por originalidade percebo a idéia almadiana de reinventar a colaboração, através da inversão do sinal que exclui ao invés de incluir, que opõe ao invés de associar, de englobar. Se as palavras já nasceram antes de nós, se os símbolos são anteriores à nossa experiência, desconstruí-los em um novo universo significativo, conferindo dignidade a seu protagonista. E essa dignidade é fazer com que as palavras existam outra vez, recriadas pelo gênio criativo e iluminado do artista.
Pois, como diz Almada, ser o próprio é uma arte onde existe toda a gente e que raros assinam a obra-prima. Assim, a tragédia da unidade poderia, pela primeira vez, recusar sua herança solitária e dissolver-se na idéia de viver também o sonho, viver também a arte.

 

Notas

  • 1 Normalmente, a definição de auto-retrato refere-se ou a um texto memorialístico, ou a um texto ensaístico. No caso de Nome de Guerra, temos um romance que, por sua constituição, estrutura e tema, assemelha-se a um auto-retrato.
  • 2 NEGREIROS, Almada. A Invenção do Dia Claro. In: Obras Completas.Vol. I — Poesia. Porto: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985,p. 166.
  • 3 NEGREIROS,Almada. Obras Completas.Vol. I — Poesia. Porto: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985.
  • 4 NEGREIROS, Almada. Obras Completas. Vol. VI — Textos de Intervenção. Lisboa: Editorial Estampa, 1972.
  • 5 NEGREIROS, Almada.As Quatro Manhãs. In: Obras Completas.Vol. I — Poesia. Porto: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985.
  • 6 NEGREIROS, Almada. Op. cit. p. 158.
  • 7 NEGREIROS, Almada. Obras Completas.Vol. I — Poesia. Porto: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985.
  • 8 BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: L&PM, 1986. p.14.
  • 9 NEGREIROS, Almada. Obras Completas. Vol. VII — Teatro. Porto: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985.
  • 10 NEGREIROS, Almada. Pierrot e Arlequim. In: op. cit. p.68.
  • 11 NEGREIROS,Almada. Comentários a Pierrot e Arlequim. In: op. cit. p.69.
  • 12 NEGREIROS, Almada. Comentários. In: op. cit. p.71.