Vieira

Comportamento profético e comportamento retórico em Vieira

Margarida Vieira Mendes
Universidade de Lisboa

A doutrina messiânica e profética do padre António Vieira distribui-se por múltiplos escritos, alguns deles ainda inéditos, e vem apresentada globalmente no tratado fundamental, constituído por duas “Representações” só publicadas em 1957, no Brasil, por Hernâni Cidade, com o título Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Os conteúdos dessa doutrina foram estudados e dados a conhecer há trinta anos por Raymond Cantel[1] e por todos quantos divulgaram as obras do jesuíta, com menção para o esclarecedor estudo de fontes que antecede a edição crítica do Livro Anteprimeiro, por José van den Besselaar[2].

Resta, porém, penetrar as razões de ser do comportamento profético de Vieira e revê-las, à luz da sua personalidade de pregador e do seu habitus retórico. O pregador, como tipo ou protótipo no século XVII peninsular, representou-o Vieira de modo veemente em três figuras: a do orador sacro, a do profeta do rei e a do missionário no Novo Mundo. Tentarei relacionar as duas primeiras figuras, deixando para uma outra ocasião a terceira, ou seja, a do missionário, que é tão decisiva na configuração do profeta como na do orador, mas que não cabe aqui tratar.

Aproximar estas três figuras não tem igual validade hermenêutica para cada um dos pregadores seiscentistas; só o faço no caso particular de Vieira, porque a sua concepção de pregador passa por essa implicação tríplice e porque tal concepção não é independente da sua identidade de autor: as obras de Vieira derivam em grande parte de ele ter vivido com fervor o seu ideal de pregador, na dimensão do ethos, ou caráter, do pathos, ou paixão, e do logos, ou ação discursiva, como tive ocasião de mostrar num trabalho de maior fôlego[3].

Limitar-me-ei a esboçar um certo número de implicações entre logos profético e logos oratório, na pegada da intuição de António Sérgio que, em 1936, exilado em Madri, tentou explicar o profetismo a partir do conceptismo, interpretando um traço de natureza ideológica — política e religiosa — à luz de um traço de natureza estética — o conceptismo hispânico barroco[4].

Pelo menos quatro fatores de origem retórica condicionaram a atitude retórica de Vieira:

• a tópica argumentativa;
• a atitude institucional do pregador régio;
• a palavra com gesto ou ação;
• a engenhosidade performativa.

Pertencem os quatro à instituição oratória do tempo. De fato, não podemos perder de vista ter Vieira vivido em plena “idade da eloqüência” — como chamou Marc Fumaroli a mais de dois séculos de educação baseada na disciplina da retórica.

 

1. Os tão conhecidos conteúdos do profetismo messiânico e imperial de Vieira — cuja morfologia assenta em grandes arquétipos humanos, cuja proveniência reside na tradição ocidental cristã e judaica, cuja oportunidade deriva do momento histórico restauracionista e de crise européia, e cuja força motriz pertence à psicologia individual e coletiva —, esse acervo de conteúdos e predisposições, dizia, funciona, nos textos de Vieira, como uma TÓPICA, isto é, uma reserva de lugares onde se vão buscar os argumentos para uma causa polêmica: o sentido lusitano da história e dos textos contra o sentido castelhano, o messianismo cristão contra o judaico ou então o bandarrismo joanino contra o sebástico.

Eis, em linhas gerais, parte do “recheio” ou da enciclopédia disponível para a inventio do orador Vieira:

  • 1. a concepção da história como um plano divino, com um programa escatológico a curto prazo, com a parusia e o fim próximo;
  • 2. a convicção de que os reinos são favorecidos ou castigados pela Providência, que igualmente intervém nas batalhas;
  • 3. a tradicional poesia de vaticínio das Sibilas que, a fim de intervir politicamente, atribui a um príncipe justo a vitória sobre os inimigos, por eleição divina;
  • 4. um corpo mais ou menos fixo de idéias de cruzada e de crenças num destino imperial da cristandade (o Quinto Império), na dilatação progressiva da fé, com um imperador escolhido, destinado a vencer o inimigo religioso, a reconquistar Jerusalém, a instaurar a paz e o catolicismo universais, cumprindo o “Fiet unum ovile et unus pastor”[5];
  • 5. mitos nacionais, relativos à história e destino de Portugal, por vezes com equivalentes hispânicos — D. Sebastião, Ourique, o português como homem “de todas as quatro partes da terra”, descendente de Jafet e de Túbal, que significa “Mundano”, de todo o mundo[6].

Uma argumentação de caráter profético e emocional tornou-se oportuna no momento histórico de Vieira. Como é sabido, vigorou então a ideologia apologética da Restauração, de cariz ultra-nacionalista, difundida numa literatura prolífera, que durou até 1669, segundo Reis Torgal. Socorria-se ela de todo o tipo de argumentos — históricos, etimológicos, miraculosos, sibilinos — a fim de provar, perante o papa, as nações e a opinião pública, os direitos da coroa portuguesa. Lembremo-nos do choque de imperialismos e das alterações das hegemonias que então ocorreram. Foi quando nasceu a reputação e a opinião pública, nacional e internacional, e o necessário recurso a mecanismos de persuasão e de propaganda, que o Concílio de Trento integrou, fortalecendo assim essa civilização de combate. Convém lembrar ainda que, na seqüência dos descobrimentos, a história santa torna-se de fato universal, abarcando no seu devir os povos de todos os continentes. Por último há que salientar o período de dificuldades e crise, sempre propício a esperanças visionárias milenaristas, individuais e coletivas: a crise da cristandade, dividida; a de Portugal, pequeno e sem meios para combater nações poderosas, e ainda a das idéias do padre António Vieira, mal aceites e hostilizadas — sem falar na personalidade do jesuíta, de tipo paranóide e persecutório.

A tópica restauracionista, com o seu corpo de doutrinas e de ficções, usadas com uma função argumentativa de prova da legitimidade da coroa portuguesa, visando o reconhecimento nacional e internacional e, sobretudo, a aceitação de Espanha não pertence a Vieira pois está patente em múltiplos sermões de outros autores, estudados de forma sistemática e exaustiva por João F. Marques, em trabalhos de consulta imprescindível[7]. Aí mostrou amplamente como a mentalidade providencialista e a argumentação pelas profecias foi usada sem parcimônia por pregadores de todas as ordens, em prol da aclamação de D. João IV e do repúdio da dinastia castelhana.

A leitura religiosa da Restauração feita por pregadores que seguiam uma lógica narrativa de tipo messiânico — Portugal predestinado, depois castigado e finalmente libertado providencialmente para cumprir desígnios divinos e instaurar uma nova era — manifesta-se nos escritos proféticos de Vieira, mesmo para lá de 1668, e passa dos sermões para os papéis expositivos. Passa também para muitos outros gêneros de discurso do tempo, como a crônica, a hagiografia, a sátira, a poesia, as cartas, os regimentos de príncipes, as descrições de Lisboa, os prólogos e dedicatórias. Há que ter em conta que muitos dos tratados que podemos julgar meramente expositivos, mesmo em épocas anteriores à Restauração, tinham afinal um regime oratório, orientados por finalidades argumentativas, intervencionistas, pragmáticas e casuísticas. As idéias tópicas confundiam-se então com ações, pois o saber e o expor não possuíam um caráter autônomo e teórico independente dos atos de declaração, refutação, elogio etc. Faziam-se aplicados a situações práticas, o que torna inadequada qualquer história de idéias dessa época (proféticas, políticas, éticas, religiosas) que não seja mais do que uma descrição sistemática a partir de excertos textuais descontextualizados[8].

 

2. Além de serem reserva tópica, as idéias e ações da exegese profética de Vieira assentam no papel de protagonista na cena da história santa, papel que Vieira sempre atribuiu à instituição do PREGADOR, ou seja, a si próprio. Homem barroco, António Vieira centrou o mundo no palco da sua vida, no espaço geopolítico que habitou e no tempo que lhe coube. Recorreu à mediação de heróis bíblicos e evangélicos, tais como os profetas conselheiros dos reis de Israel ou S. João Baptista, que foi o primeiro profeta da lei da graça e o primeiro evangelizador missionário: anunciou e presenciou o advento messiânico revelando-o, como profeta, e realizando-o, como baptizador[9]. A chefia da cristandade e de um futuro império católico, oferece-a o jesuíta à casa real portuguesa, em discursos oficiais — de profeta — e viabiliza-a com as suas ações no Maranhão — de missionário[10].

Vieira dramatizou a vida com os discursos e os discursos com a vida, reforçando uns e outros com a inspiração e projeção nas narrativas bíblicas, aplicadas a profetas e apóstolos — função dupla que sempre interpretou como fazendo parte da mesma causa. A conversão universal e o estabelecimento do Quinto Império e de uma igreja única no mundo não é apenas uma idéia ou uma crença: tornou-se para Vieira um conjunto de ações biográficas concretas e uma complexa atividade discursiva. Para o jesuíta, o pregador é um dos agentes principais do advento desse império: exorta o rei, futuro imperador, como profeta; converte os súditos, judeus e gentios, como missionário; e a todos convence, como orador.

Note-se que a instituição do pregador régio facultava a quem desempenhava tal ofício o papel de arbitrista ou conselheiro do monarca e dos ministros em matéria de decisões econômicas e políticas, vistas à luz dos preceitos religiosos (segundo D. Francisco Manuel de Melo, o papel de alguém que estava entre o “conselho” e o “mexerico do vassalo”[11]). Na concepção sagrada de Vieira, os pregadores são as vozes da voz de Deus. O papel do orador religioso é o de quem fala à terra e aos homens em nome do céu, quem promete vitórias e ameaça com castigos, quem delibera sobre medidas a tomar e agradece os sucessos bons, dando um sentido sacro às coisas públicas. Pode assim proferir solenemente tanto num sermão — “Eu prometo à Baía” — como no Livro Anteprimeiro — “[Eu] prometo este remédio”. As apóstrofes retóricas interpelam destinatários historicamente diversos: “ó Portugueses […] Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser”; “ó gentes, ó rei, ó reinos”, “ó Espanha”; “ó poderosíssimo monarca Filipe o Quarto, ó grande rei”[12].

Estamos perante um papel enunciativo cujo valor ilocutório e cívico tem uma origem sagrada, equivalente ao dos profetas de Israel e ao dos antigos donos da verdade na Grécia arcaica[13], posteriormente laicizados nos sofistas. Esse papel e voz possuem uma ancestralidade que Vieira intentou recuperar para si enquanto pregador e que penso constituir um importante traço do barroco literário.

Por vezes, o alvitrista do tempo era acusado de falso profeta e de captar a vontade dos ministros, por palavras bem ordenadas e engenhosas ficções[14]; de modo semelhante, os oradores sofistas haviam sido responsabilizados por abusos e confusões entre pseudos e plasma. Esta época foi uma daquelas em que proliferaram intelectuais com um alto conceito do seu valor, com vontade de servir politicamente, no púlpito, na imprensa, em auditórios reais, escolares e populares. Os conflitos e guerras entre os produtores de conselhos prendem-se com a intenção dos escritos proféticos de Vieira, sempre tão polêmicos e apologéticos quanto o era um sermão.

O modo de fundamentar com argumentos, dando força aos pareceres, baseava-se em interpretações do que das Escrituras se podia aplicar a Portugal em cada caso concreto. Este método de exegese profética obedecia a um modelo casuístico e acomodatício, a um habitus retórico, a uma função política concreta e a um pretexto religioso, o dos escrúpulos: o que estava escrito na Bíblia era profecia do que iria acontecer e, como tal, não poderia ser contrariado pelos governantes. É assim que o padre Vieira tenta convencer Filipe IV a levar a cabo a paz; de outro modo iria contra Deus e os seus desígnios sobre Portugal[15]. Para um arbitrista como Vieira, cujos pareceres nem sempre foram bem aceites, o prognóstico e a profecia serviam para reforçar, porque inspirados nos textos sagrados e para-sagrados, as idéias que pretendia inculcar a respeito de Portugal. Considerava indispensável terem os soberanos um profeta qualificado — o próprio Vieira — a seu lado: “O Maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros”[16]. Como pregador, estava habituado a acomodar os textos ao tempo e à situação discursiva: o lá ao cá, o então ao agora do ato de fala. Esta necessidade concionatória de acomodar explica as flutuações não do pensamento messiânico de Vieira mas sim dos seus sucessivos ajustamentos ao real. Por exemplo, as diversas identificações do Encoberto — D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro e seus filhos.

 

3. O terceiro reflexo das atitudes parenéticas no profetismo de Vieira é o que diz respeito ao uso da palavra como acontecer ativo, isto é, como veículo de uma ou mais ações ilocutórias, na linguagem da pragmática atual, de “movimentos de alma”, na acepção de Arnauld e Nicole, de “inscrições patéticas”, na terminologia de Tesauro[17]. Se um sermão realizava uma deprecação, uma ação de graças, um elogio ou louvor, uma prova ou apologia, também um tratado como a História do Futuro, afinal mais uma proposta do que uma obra efetiva, correspondia às intencionais intervenções patéticas, próprias de uma peça oratória destinada a agir sobre o presente.

Há que chamar a atenção para este fenômeno, nem sempre lembrado: cada escrito oracular de Vieira, autônomo ou inserido numa obra, constitui, por si, um GESTO histórico e público exercido num contexto situacional. Podemos encontrar recorrência nas idéias e no modo de as tratar, mas cada escrito possui uma orientação argumentativa singular. Por isso Vieira vai escrevendo papéis diferentes, sem jamais completar qualquer tratado profético consistente — é o caso da História do Futuro e da Clavis Prophetarum, livros tão-só iniciados. Pelo contrário, concluiu os escritos que mais se assemelham a peças oratórias, por serem de intervenção, de combate político imediato, de propaganda ideológica e de defesa pessoal — é o caso da carta-tratado anti-sebastianista Esperanças de Portugal (1659), da Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício (1666), da carta apologética ao padre Iquazafigo ou Squarçafigo (1686), do Discurso Apologético (1689) ou ainda do juízo do cometa de 1695, intitulado Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Baía — e quase concluiu a apresentação aos governantes do projeto da História do Futuro, nos capítulos do chamado Livro Anteprimeiro[18].

A instituição do pregador do rei, bem como a do pregador urbano e letrado em geral, compreendia as ações de oferecer prognósticos, adular, exalçar, incitar os ânimos, avisar, aconselhar etc. Este modo de ser discursivo prolonga-se nas produções proféticas de Vieira, pois todas elas, quando não declaradamente de defesa pessoal, foram ofertas ou serviços de vassalo: as Esperanças a D. Luísa, o Livro Anteprimeiro a Afonso VI e Filipe IV, o Discurso Apologético a D. Maria Sofia. Como é sabido, cabia ao pregador levar a cabo, em celebrações e efemérides, a leitura religiosa de acontecimentos públicos (batalhas, bulas, cortes, pestes, exéquias, nascimentos). Nesses sermões epidícticos encontramos ações de promessa e vaticínios de um futuro império oferecidos pelo pregador à coroa. Isto leva a interpretar as idéias messiânicas de Vieira como decorrendo das estratégias retóricas do panegírico e da matriz enunciativa canônica da pregação régia, seriamente assumida pelo orador. Mesmo aquilo que é uma ação de pedido ao rei — por exemplo, favorecer as missões dos jesuítas — pode transformar-se num ato de conselho, de advertência e inclusive de ameaça, fundado no conhecimento exegético da indiscutível vontade divina e até dos presumíveis castigos, tais como a morte de príncipes e o fim duma casa real.

Quem ler os capítulos do Livro Anteprimeiro verifica logo que o discurso realiza aí uma ação equivalente à dos sermões restauracionistas, servindo-se das figuras persuasivas próprias da oratio, ainda que com maior cópia de autoridades[19]: Vieira oferece aos novos governantes e ao novo soberano um prognóstico de paz e domínio, prognóstico de natureza não-astrológica mas escriturária, pois baseara-se em promessas divinas disseminadas pelos textos proféticos; além disso, tenta entusiasmá-los a convencerem-se da força irrecusável das provas aduzidas, tenta dissuadir Filipe IV e levá-lo a estabelecer, por essas razões sagradas, a paz com Portugal (nação mais proveitosa como “amigo do que como sujeito”) e pretende mostrar ao mundo que Portugal não pode ser conquistado por Castela[20]. Parece assim que um sonho imperial emerge apenas com o fim de sustentar um parecer político e dotá-lo de força persuasiva.

De fato, a questão da paz com Castela foi a que mais apaixonou Vieira nos anos de 1662-1665, anos em que redigiu os textos da História do Futuro e do Livro Anteprimeiro. Tratava-se de proporcionar aos governantes um discurso irrefutável sobre a necessidade da paz e a certeza da vitória portuguesa. Os argumentos aduzidos poderiam ser úteis na tomada de decisões bélicas, ofensivas e defensivas[21], e nas conversações com outras nações, para bem dos direitos e da reputação de Portugal, que sempre preocuparam o jesuíta. O papel de Vieira era assim o de um logógrafo e o de um produtor de pensamento político no registro ou modalidade da profecia.

Tratava-se também de captar a atenção do monarca e seu valido, Castelo Melhor, para a pessoa de António Vieira desterrado em Coimbra — “cujo coração há mais de três anos está cozendo desgostos e discursos, sem poder romper o silêncio” — e de criar a necessidade de ser chamado novamente à ribalta política para desempenhar a função de oráculo do rei, inerente ao “Pregador de sua Majestade”. Vieira qualificava-se com a proposta da História do Futuro e o envio à corte de um “retalho” que a apresentava[22]. Aspirava ao reconhecimento do serviço e do afeto visível posto nas interpretações proféticas. É Vieira, na figura de Daniel, que assim o exprime, em carta de 28.I.1664 ao seu cúmplice na corte, D. Rodrigo de Meneses: “porque sobre as obrigações de vassalo, tenho as que herdei dos mortos e as que devo aos vivos, e as que espero dever à pessoa de S.M., quando, assim na verdade do meu afeto como nas minhas interpretações, reconhecer um menor Daniel e lograr uma maior monarquia”[23]. Os hábitos retóricos do discurso persuasivo, cuja razão de ser reside na eficácia com que altera o estado do mundo ou da história, encontramo-los assim na raiz da exegese profética de Vieira. A prática verbal orienta-se então para funções menos informativas do que produtivas de transformações das coisas. Lidar com o sentido era descobrir a sua “força” ou “energia”, como se dizia, aliás com todo o rigor.

Os textos proféticos pertencem a um modo de emprego da linguagem, próprio do discurso oral e oratório, onde há vestígios das mais antigas funções do verbo. São empregos egocêntricos e existenciais, que resultam do apego à situação concreta, presente e única de cada fala, e que implicam a referência sistemática a realidades colocadas no espaço imediato e no horizonte emocional do locutor e dos ouvintes, espaço onde aquele se encontra vitalmente envolvido e sobre o qual pretende agir. É assim que as profecias do Bandarra, no escrito Esperanças de Portugal, são lidas em função dos mais recentes sucessos das batalhas travadas entre Portugal e Espanha (1658-1659).

Da mesma forma que num discurso oratório o verossímil prevalece sobre a verdade e a intenção de movere sobre a de docere, nos tratados proféticos de Vieira há menos declaração de convicções e mais utilização suasória das idéias expostas e também do modo de as expor. Juntamente com o gesto verbal exibe-se o modus faciendi, porque, como se sabe, a engenhosidade valia então mais do que a razão.

 

4. O ENGENHO do orador no desempenho acrobático que competia aos panegíricos — sermões-oferendas — assemelha-se ao do intérprete das profecias. Trata-se, afinal, de antiqüíssimos hábitos literários: os da laudatio de uma estirpe, pela oferta de discursos de ostentação com prognósticos difíceis de provar, com alarde de comparações, metáforas e anagramas poéticos, ou então com uma ousada interpretação de passos obscuros das escrituras[24].

É do conhecimento geral que a oratória sacra prolongou, em plenos séculos XVII e XVIII, e não só na Península, o pensamento analógico da exegese medieval e patrística, descrito por Henri de Lubac, apesar da contestação de espíritos como Espinosa ou Verney. Ora nesse modelo de significação, a relação entre as palavras escritas e aquilo que referiam era a do enigma, da ocultação, da profecia, da metáfora, da figuração — relação dificultosa, a exigir um intérprete mediador, por um lado, e a reduzir o “ser figura de” ou o significar isto e aquilo ao “ser” isto e aquilo. A decifração, concordância e aplicação das profecias recorreu sempre a esse modelo de significação-interpretação, andando então a par, como António Sérgio evidenciou, a semiose conceptista e o profetismo.

A vontade de descobrir e trazer à luz o que adrede se propõe obscuro e difícil tornou-se na época barroca uma atitude parenética. Um sermão era então um discurso que prosseguia de cabeça voltada para trás, comentando-se a si próprio: o que vem depois decifra, prova, esclarece o que vinha antes. Ora não é preciso demonstrar que os tratados ou as composições proféticas de Vieira se governam pela mesma lógica.

Esta necessidade do comentário, proporcionada pelo discurso obscuro que, para adquirir ou atualizar o sentido, precisa de um decifrador, e onde o pregador profeta encontra a justificação da sua atividade, torna-se um fator de engenhosidade. Deus terá sido mesmo o primeiro engenhoso, pois a sua eloqüência confundiu de modo artificioso e sutil as mensagens enviadas aos homens, por meio de metáforas e enigmas. O italiano Tesauro propôs que se dividissem os aplausos entre Deus e o pregador: aquele por ter criado os conceitos e o pregador por os haver mostrado ao mundo[25]. Por outro lado, o modo discursivo de Deus terá sido igualmente o oratório, pois usou estratégias da arte retórica com intenções persuasivas. Era comum a seguinte convicção, relativa a sinais e avisos, que Vieira formula deste modo: “O primeiro motivo e mui principal porque Deus costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens que todas vêm dispensadas por sua mão”[26]. Foi como orador ou pregador que Deus se exprimiu enquanto profeta.

Convencido da força da palavra profética, interessa menos ao pregador — e ao público — o que diz, do que quem diz e como diz. A autoridade de quem dizia provinha do seu estatuto de locutor sacro, pois tanto na eloqüência como no tratado profético a palavra do pregador se colava a enunciações anteriores, sagradas e rituais. Quanto ao como diz, o modo de Vieira não era oracular e sibilino, mas sempre exegético e argumentativo: o que valia eram os textos sagrados trazidos como prova e o ritualismo do desempenho da sua interpretação. Note-se que era freqüente nos colégios jesuíticos a prática do antilogos, própria da educação dos sofistas gregos. Nas controvérsias áulicas, o que estava em apreço — e aquilo que conselheiros, ministros e governantes poderiam vir a “comprar”, na expressão de Vieira, que tentou vender a sua História do Futuro ou, pelo menos, arranjar para ela um mecenas e protetor — era a qualidade do discurso, não a tese ou a idéia defendida. O mesmo orador podia, aliás, advogar teses opostas e medir a consistência e os efeitos de cada um dos respectivos discursos. Os temas exercitados integravam as mais importantes e momentosas questões públicas, como a da identidade do verdadeiro Encoberto, ou seja, a da legitimidade do rei, ou as relativas à estratégia militar, discutidas em Coimbra em 1664[27], mas também as mais fúteis e acadêmicas causas.

Todos notaram já a aliança, bizarra hoje para nós, entre os artificiosos malabarismos retóricos ou argumentativos e o pragmatismo político de Vieira. Mas a verdade é que, quanto maior fosse a dificuldade no desempenho da acomodação do texto bíblico à proposição sustentada e quanto mais prodigiosa esta fosse, tanto mais valor teria o discurso. Daí a engenhosidade ser comum ao orador sagrado e ao redator de futuros. Aliás, a política, como a retórica, concebia-se como arte, com a sua exigência de engenho e de apuramento técnico.

Porque era difícil e ousado demonstrar que D. João IV ressuscitaria, Vieira intentou-o nas Esperanças. Para quê? Para oferecer um discurso imbatível contra os ideólogos sebastianistas de 1659. E quanto à História do Futuro, é levado a declará-la a “mais certa e mais verdadeira” de todas as histórias escritas do passado. Para quê? Apenas para, com uma história do futuro, credível, fabricar a história do presente, necessária, dando ânimo aos governantes portugueses e desenganando os espanhóis. No Livro Anteprimeiro utiliza ostensivamente todo o arsenal de recursos do seu requintado métier retórico: pinturas, descrições, exclamações, protestos veementes, encarecimentos, performativos vários, prodígios, apóstrofes, espantos, imagens e esquemas fortemente simbólicos.

Por outro lado, e ainda no capítulo do engenho retórico, lembro que o discurso da pregação, mesmo nas mais formais figuras da elocutio, como o paralelismo, as correlações, o quiasmo, ou seja, aquilo a que Baltazar Gracián chamou proporções, contribuiu para organizar uma mente como a de Vieira de um modo geométrico, com a adoção sistemática de construções simétricas, binárias, numéricas e espacializantes. Esses esquemas moldam imagens proféticas como a dos dois hemisférios do tempo, ou paradoxos como o da fórmula “cronista do futuro” e “profeta do passado”. A ordem genesíaca, a separação e o simbolismo diairético[28], a obsessão pelos conjuntos e totalidades divisíveis em partes, a fixação nas imagens cósmicas da “máquina do mundo”, do “edifício do universo”, do “mapa”, do corpo gigante, do número quatro, da árvore com raízes e frutos, da estátua e do arquiteto — ocasionam as “petrified forms”[29], já que são arquétipos de uma concepção estratificada do tempo e da história, segundo a lógica totalizante do Quinto Império. Este tipo espacializante de organização mental e de estruturação imaginativa era próprio do pregador enquanto orador, servindo sobretudo como chave e alicerce da sua indispensável memória. E, tal como aconteceu com outros traços discursivos já evidenciados, passou do orador para o profeta.

 

Notas

  • 1 Prophétisme et messianisme dans l’oeuvre d’António Vieira. Paris: Ed. Hispano-Americanas, 1960.
  • 2 António Vieira: História do Futuro (Livro Anteprimeiro), 2 vols. Münster: Aschendorff, 1976.
  • 3 MENDES, Margarida Vieira. A Oratória Barroca de Vieira. Lisboa: Caminho, 1989.
  • 4 “Salada de conjecturas a propósito de dois jesuítas”, in Ensaios V.
  • 5 Também a França se atribuía a eleição providencial para árbitro da Europa e ruína dos turcos. Reis Torgal (Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, 2 vols. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981, vol. I, p.316) indica um tratado apologético dedicado a Richelieu, onde se afirma “Dieu prépare la voie à sa Majesté pour les conquêtes des mondes entiers” e cujo título é L’ordre militaire pour l’accomplissement des prédictions de la monarchie française, ruine de l’Empire Otoman (1663).
  • 6 Em Espanha, Juan de la Puente (Tomo Primeiro de la Conveniencia de las Monarquias Católicas, de la Iglesia Romana, y la del Imperio Español, y Defensa de la Precedencia de los Reyes Católicos de España a Todos los Reyes del Mundo, Madri, 1612, II, p.112) descobre uma etimologia equivalente para a Espanha: “His” + “Pania”, do grego “pan” = todas as coisas.
  • 7 Vd. “A utopia do Quinto Império nos pregadores da Restauração”, in Roma, Lisbona, Brasilia tra Antichità e futuro — diritto e profezia nel pensiero di Antonio Vieira, Consiglio Nazionale delle Ricerche, Celebrazioni Colombiane, 1988, pp. 51-84, e A Parenética Portuguesa e a Restauração, 1640-1688. A Revolta e a Mentalidade, 2 vols., Porto, INIC, 1989, IV Parte.
  • 8 Notem-se as oscilações e aparentes contradições nas idéias declaradas por Vieira, só porque formulou cada uma a partir de diferentes necessidades argumentativas. Por exemplo, é papista no tempo de D. Pedro e regalista no de D. João IV, dados os combates políticos em que se envolveu; e tanto pode dizer que os reinos se conservam pela força das armas como pela vontade de Deus, ou então preferir, ou não, a bondade dos fins à dos meios.
  • 9 Embora não intente referir-me à fecunda relação que Vieira estabeleceu entre o missionário e o profeta, relação que deu um sentido à sua biografia, lembro que foi ao interpretar como profeta um passo de Isaías que o resolveu como missionário, e o “acomodou” às Índias Ocidentais e, de modo mais particular, ao local do universo onde desempenhou o seu labor catequético: o Maranhão. Veja-se a “Segunda razão” no capítulo XII do Livro Anteprimeiro.
  • 10 J.A. Veiga mostrou nas obras de dois jesuítas de começos do século XVII, Sebastião Gonçalves e Brás Viegas, que alguns padres da Companhia estavam convencidos de que pertenciam à ordem religiosa predestinada — a nova ordem que, segundo Joaquim de Fiore, desempenharia um papel decisivo na restauração da Igreja e na sexta idade do mundo. Cf. Fonction et signification sociologique du messianisme sebastianiste dans la societé portugaise (dissertação datilografada), 3 vols. Université de Paris III, 1979, v. II, pp. 288-289.
  • 11 Hospital das Letras, edição de Jean Colomès, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, p. 122: aí aconselha o príncipe a possuir “indústria e bondade para moderar o conselho, o alvitre e o mexerico do vassalo”.
  • 12 Cf. Livro Anteprimeiro da História do Futuro, ed. J. van den Besselaar. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, pp. 30, 49, 77, 91, passim.
  • 13 Vd. DETIENNE, Marcel. Les maîtres de verité dans la Grèce archaïque. Paris: Maspero, 1981.
  • 14 Cf. CURTO, Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal, 1600-1650. Lisboa: Projecto Universidade Aberta, 1988, pp. 133-142.
  • 15 Cf. capítulo VIII do Livro Anteprimeiro.
  • 16 Livro Anteprimeiro, op. cit. na nota 12, p. 27.
  • 17 Em Il cannocchiale aristotelico, Emanuel Tesauro descreveu mais de 80 espécies desses gestos ou inscrições da emoção (edição de 1655, Veneza, pp. 221-242).
  • 18 A descontinuidade dos projetos de Vieira levou Cantel a levantar a dúvida sobre a unidade das convicções messiânicas do jesuíta, embora afirme, ao mesmo tempo, que esse messianismo forma “um sistema coerente, preciso e claro, perfeitamente articulado segundo a lógica da sua época” (op. cit. na nota 1, p.45). A contradição pode resolver-se: entendidas como tópica, as idéias e fundamentos de Vieira formam um sistema que passa de obra para obra; entendida como gesto, cada obra realiza um diferente.
  • 19 São constantes nas cartas de 1663-1665 a D. Rodrigo de Meneses as referências aos livros de que necessitava, que pedia lhe mandassem ou que dizia ter encontrado em Coimbra: vd. Cartas II, passim.
  • 20 Outras obras foram escritas nos anos mais árduos da guerra da Restauração, veiculando igual proposta de paz: Vieira refere-se a uma delas, dirigida ao Papa (cf. Cartas II, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, pp. 85-86); Reis Torgal, op. cit. na nota 5, refere obras restauracionistas — de Sousa de Macedo e dum tal que se assina Lucindo Lusitano — endereçadas diretamente a Filipe IV; Duarte Ribeiro de Macedo escreveu o Juízo Histórico, Jurídico, Político, sobre a Paz… Lisboa, 1666; etc.
  • 21 Nos anos mais quentes da guerra da Independência multiplicaram-se as disputas e controvérsias públicas de prognósticos: os que vinham de Castela e os que a eles respondiam, sobretudo quando sobreveio um cometa; João Nunes da Cunha, amigo de Vieira, escreveu alguns (vd. Cartas II, 1926, pp. 125, 128, 132, 134).
  • 22 Veja-se a correspondência de então (Cartas II, 1926, pp. 143, 145, 160).
  • 23 Como observou Fidelino de Figueiredo, “os seus mais pacientes esforços tenderam a conquistar o valimento; as suas mais cruciantes amarguras provieram da perda disso, que tinha pelo maior bem” (História da Literatura Clássica, 3ª edição revista. São Paulo: Anchieta Ltda., 1946, p. 71). Pode-se dizer que redigir tratados proféticos e oferecê-los pertence ao grupo desses “pacientes esforços”. Hernâni Cidade também se apercebeu de que “os excitantes principais da sua obra” se encontravam “nos estímulos das circunstâncias” em que envolvia a sua vida múltipla e agitada (VIEIRA, António. Obras Escolhidas, VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1953, p. viii).
  • 24 O missionário teatino Ardizone Spinola ofereceu prognósticos a D. João IV, “o encoberto de Portugal”, em sermões restauracionistas, tal como Vieira, havendo o rei favorecido as missões dessa ordem italiana na Índia (vejam-se os sermões contidos no Cordel Triplicado, de 1680).
  • 25 Il cannocchiale aristotelico, 1655, p. 68.
  • 26 Livro Anteprimeiro, op. cit. na nota 12, p. 40.
  • 27 Vd. Cartas II, Coimbra, 1926, pp. 38, 61.
  • 28 Gilbert Duran estudou arsenais simbólicos que designou e classificou como “símbolos diairéticos” (vd. Les structures anthropologiques de l’imaginaire, Paris, Bordas, 1969, livre I).
  • 29 Expressão usada por GOTAAS, Mary C. Bossuet and Vieira. A Study in National, Epocham and Individual Style. Washington: The Catholic University of American Press, 1953.