Vieira

Padre António Vieira: dizer é agir

Nelson Rodrigues Filho
PUC-Rio

“…sou homem do tempo; com ele vivo, com ele morro,
com ele adoeço, com ele saro”

António Vieira[*]

1. Nenhum dos sermões do padre António Vieira oferece, provavelmente, melhor orientação para a leitura do discurso vieiriano do que o Sermão da Sexagésima. Poder-se-ia mesmo dizer que ele constitui verdadeiro paradigma teórico, de base aristotélica, do procedimento discursivo do orador jesuíta. Lá se evidencia, independentemente da motivação ditada pela questão temporal com os dominicanos, a concepção do discurso como expressão e, principalmente, como evento, cujo ponto de chegada o ultrapassa, em vista do propósito persuatório.

Não é sem conseqüência a citação de Matheus, XXXIII, 3, “Ecce exiit qui seminat, seminare”, que o orador desenvolve, estabelecendo a diferença entre os semeadores “que saem a semear” e os “outros que semeiam sem sair”, os primeiros “com mais passos” e os segundos, “com mais Paço”.

Desenvolve, então, Vieira a argumentação, utilizando, no plano estilístico-semântico, o recurso — tradicional na prática do texto cristão, desde a Bíblia — da alegoria, fiel à concepção de Santo Agostinho, segundo a qual, a verdade está na alma e o entendimento, nos sentidos.

Vieira exercita com mestria o discurso como espetáculo, na melhor tradição do engenho barroco. Serve-se da metáfora, enquanto “predicação impertinente”[1], sustentada na similaridade, por via da interpretação que expressa a semelhança na diferença — para revelar “o aparecimento de um parentesco onde a visão ordinária não percebe qualquer relação”[2].

Assim, para tratar da questão do Maranhão e da sua divergência com os dominicanos, torna próprio o que é do outro (um sentido possível de apropriar-se). Reescreve, com a tinta da alegoria, o discurso clássico (Aristóteles é explicitamente citado, juntamente com Cícero, Quintiliano, ao lado dos oradores da Igreja, São João Crisóstomo, S. Basílio Magno, S. Bernardo e S. Cipriano, entre outros) e empreende, por via do tratamento dialético da interpretação metafórica, uma nova retórica, uma passagem da oratio civilis para a oratio religiosa, em original exercício da acutezza, enquanto “ato de entendimento que exprime a correspondência que se acha entre os objetos”[3], um processo discursivo que, mais do que um pensamento, é uma dicção, que reúne “as margens que se afastam”, o qual não abandona Vieira, mesmo ao tratar de questões civis.

A propósito de buscar as causas do anunciado fracasso na semeadura do trigo (a palavra de Deus) no terreno da colônia (leve-se em conta a visão etnocêntrica do aborígene como ser natural, a partir do campo semântico de imagens ligadas à natureza, vinculada à concepção agostiniana, diferente da tomista, da absorção do natural no sobrenatural), afirma Vieira que “fazer pouco fruto a palavra de Deus, pode preceder de um dos três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus”. Está ele conferindo sentido próprio, no âmbito de sua intenção retórica, aos três elementos necessários que, para Aristóteles, o discurso comporta: a pessoa que fala, a pessoa com quem se fala, o assunto de que se fala, para creditar o fracasso da semeadura ao primeiro elemento. Igualmente se revela a presença do estagirita na consideração das cinco circunstâncias exigidas ao pregador, “a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz”, destacada a credibilidade do orador, manifestamente garantida pela ciência que tem, hermeneuta que é das Escrituras e dos textos da Igreja, como também pelo exemplo e pela ação que desenvolve (para apenas não ter o nome de pregador ou ser pregador de nome), além da matéria (o assunto) e a elocutio, envolvendo o estilo e a voz, para atingir a conversão/transformação pelo persuadir:

“E posto que nestes mesmos padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermões e homilias, uma coisa é expor e outra é pregar; uma é ensinar e outra persuadir. É desta última que falo, com a qual tanto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer”.

 

2. Arte de persuadir, o semear para converter “é — diz Vieira — uma arte que tem mais de natureza do que arte”, porque no pregar, “hão de cair as coisas e hão de nascer, tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo”.

Concebido o discurso, nas bases aristotélicas, como arte da persuasão, acentuada a distinção entre expor e persuadir, observa-se em Vieira a consciência de uma diferença, retomada nos estudos da Nova Retórica ou Teoria da Argumentação, entre demonstração e argumentação.

Expor é, primacialmente, demonstrar, transmitir um conhecimento. E demonstrar pressupõe um tipo de discurso de raciocínio sistemático, a partir da determinação e combinação de signos, implicando a decisão dos axiomas (proposições que se admitem verdadeiras porque delas se podem deduzir as proposições de uma teoria ou de um sistema lógico-matemático) que possam ser considerados válidos para o sistema. Das expressões válidas (os axiomas), busca-se deduzir outras expressões válidas que se possam, do ponto de vista referencial, submeter ao valor de verdade.

Pregar é argumentar. E argumentar é induzir outrem a uma ação ou decisão através de argumentos, ou, em outras palavras, tematizar a pretensão de validade que se tornou duvidosa, com vista a uma ação ou deliberação.

Tal diferença põe em relevo uma outra: entre convencer e persuadir. Convencer é levar outrem à aceitação de uma evidência; persuadir é induzir outrem a uma ação ou decisão. À convicção basta o entendimento; à persuasão, é necessária a emoção e a vontade.

A demonstração é analítica, a argumentação é dialética.

O discurso demonstrativo é pertinente ao mundo que Habermas[4] chamou objetivo, de natureza teórico-cognitiva, lógico-dedutivo, das relações entre o sujeito e o objeto. O discurso argumentativo é pertinente ao mundo social, de natureza ético-política, lógico-indutivo, das relações entre sujeitos, submetidas a normas. E, na sua própria formulação, o discurso, enquanto expressão de um ato de fala, deixa revelar-se a sua intenção e, com esta, a sua própria validade. Uma validade analítica, em que verdade se vincula a evidência, acentuada a questão da verdade ou falsidade, no universo do conhecimento; ou uma validade dialética, em que possível e verossímil se vinculam a uma relação propósito-fim, acentuada a questão de êxito ou fracasso, no universo da ação.

 

3. Permito-me, aqui, uma referência, mais ou menos longa, a Paul Ricoeur[5], relativamente à distinção que estamos tentando fazer. No fundo, queremos afirmar que o discurso de Vieira, como, de resto, todo discurso retórico ou argumentativo, é um discurso de ação, submetendo a instância proposicional à ilocucional. Comparados o plano do conhecimento ao plano da ação, pode-se dizer, na esteira do pensador citado, que, no plano do conhecimento, “S conhece que c, se três condições forem satisfeitas: S crê que c (condição representativa); c é verdadeiro (condição semântica); S tem prova material e (condição explicativa); no plano da ação, num paralelismo com o modelo cognitivo, S tem a intenção de que A aconteça (condição representativa); A acontece (condição semântica); ao fazer B, B é adequado para A (condição explicativa)”.

O paralelismo possível entre conhecimento e ação, a partir do que se tentou formular, tem a sua expressão no vocabulário e na sintaxe proposicionais, figurada a diferença no par porque/através de; de um lado, “crer que c, porque outra coisa é verdadeira”; de outro, “ter a intenção de que A aconteça, A acontece porque outra coisa se fez”.

A “crença racional” e a “ação racional” entretêm uma diferença de base, que é a inversão do paralelismo, uma vez que a primeira se explica pela evidência, enquanto a segunda explica o acontecimento pela intenção, diferença que não é sem conseqüência; no primeiro caso, liga-se a representação à coisa; no segundo, a coisa à representação. Em outros termos, trata-se, no primeiro caso, de “ser verdadeiro”, e, no segundo, de “tornar verdadeiro”.

Assim — no dizer de Paul Ricoeur — “as intenções implicam uma concepção da História, não só segundo a qual tudo o que vier a ser verdadeiro não é já verdadeiro, mas segundo a qual se é capaz de dar forma efetiva a acontecimentos em conformidade com as suas próprias representações”, o que, de certa forma, põe sob suspeita o absolutismo do racionalismo cartesiano e, não menos suspeita, o empirismo, ao mesmo tempo que atualiza uma visão da praxis retórica e, com ela, do procedimento discursivo de Vieira.

O discurso de Vieira, como discurso de ação, põe em relevo uma estrutura invariante, um sistema, uma gramática, que se confirma em seu vastíssimo desempenho, como missionário, visionário e político. Nas variadas manifestações, observa-se uma indiscutível obediência ao cânone cristão, a partir do qual pensa o orador a sua contemporaneidade. E, em tudo isso, se revela permanente e inquieta intenção, não só de converter e solidificar o saber cristão, mas sobretudo de converter para um saber que possa determinar transformação histórica.

A faceta política é a que nos chama atenção maior neste trabalho. Especialmente no período chamado de Restauração, sob o reinado de D. João IV, de quem, como sabemos, Vieira foi conselheiro importante e importante agente político.

Na quase totalidade dos sermões dessa época, entre os quais o de Santo Antônio (1642), o de São Roque (1644), o da Primeira Dominga do Advento (1650), o da Quinta Dominga da Quaresma (1650), para citar apenas alguns, todos trazem subjacentes ao significante alegórico e parabólico, uma conotação política e a intenção de transformação do universo social português. E isso se faz, de um lado, pela apropriação do pensamento de base medieval, como não poderia deixar de ser, em qualquer situação ou intenção do discurso barroco, e, por outro lado, pela consciência do orador de sua legitimidade de intermediário entre o divino e o humano, como leitor credenciado, cujo discurso se faz a expressão dessa leitura, e, como tal, instrumento da condição de saber que pode levar à decisão e à transformação.

 

4. Segundo F. Jameson[6], o sistema medieval teocêntrico tem uma função prática, a missão ideológica como estratégia para a incorporação do Velho ao Novo Testamento, possibilitando uma reescritura textual e cultural do judaísmo, de forma a ser utilizada pelo gentio, num sistema alegórico que preserva a literalidade dos textos originais.

O Velho Testamento é tomado como fato histórico (a História como livro de Deus). A história coletiva(do povo de Israel) transita em direção à história individual, reduzindo-se, assim, a dimensão transindividual da primeira narrativa à segunda, esta com um perfil biográfico — a vida de Jesus Cristo.

A redução da história coletiva estrangeira à biografia individual valorizada possibilitará o surgimento de dois outros níveis interpretativos, em que o crente é capaz de encontrar-se, adquirindo o discurso de interpretação um valor moral e um valor anagógico. Sustentado pelo processo analógico, o discurso oferece um perfil aurático, para usar um termo de Walter Benjamin, apontando, sempre, para a presença de uma superioridade sacralizadora.

O fato literal e histórico do cativeiro do povo de Israel no Egito (a vida regalada no Egito) é uma servidão de que livrará a conversão pessoal. Sendo a alma individual insuficiente para atingir a liberdade, o texto sofre uma reescritura final, em termos do destino da raça humana em sua totalidade, vindo o Egito a prefigurar o longo sofrimento no purgatório da história terrena, do qual o homem se libertará numa redenção definitiva, com a segunda vinda de Cristo e o Juízo Final.

O caráter alegórico da interpretação medieval se abre, no plano conotativo, a múltiplos interpretantes em sucessivas reescrituras, produzindo diversas interpretações suplementares. Desse modo, vai ser objeto de reescrituras estratégicas, durante os séculos dezesseis e dezessete, consoante os objetivos da Contra-Reforma, no seu esforço de promover a recuperação da unidade perdida em face da ação cismática da Reforma.

O espetáculo barroco expressa esse esforço e essa intenção, através do jogo de contrários que procuram a identidade, da assimetria em busca da simetria, da analogia que sustenta a metáfora e a alegoria, a disseminação em busca da integração, manifestados em comportamentos retóricos como a antítese, o oxímoro, o paralelismo, o quiasma e a disposição do discurso na forma conhecida como disseminação/recolha.

O tratamento alegorizante do discurso barroco favorece a ocorrência de um estilo visualista e dinâmico, como expressão espácio-temporal que acolhe o movimento em errância em busca de direção e relaciona o limite da ruína terrena, na efemeridade do destino humano (a morte), ao absoluto do tempo divino.

O discurso barroco implica, na leitura, uma exigência e um pacto ilocucional. A leitura deve ultrapassar o limite do estético e do elocucional para produzir interpretantes morais, anagógicos e políticos, numa ação intencionalmente sedutora com fins perlocucionais.

Nesse quadro importa considerar que a ação discursiva não se dá para estabelecer uma verdade através da evidência, mas tornar ocorrências, verdadeiras, através de uma verdade que não se põe em discussão, da qual se faz hermeneuta legítimo e autorizado o enunciador (herança da Escolástica), como mediador entre o sagrado e o humano, num exercício do docere, que tem necessariamente a complementaridade do movere e do delectare como estratégia.

 

5. O discurso político de Vieira, especialmente os sermões do período de D. João IV, lança, como estratégia da ação persuasiva, uma operação de deslocamento, em que, sob a forma alegórica de superfície vinculada a uma temática de natureza religiosa (e, portanto, atemporal, doutrinária e axiomática), habita a questão política temporal como tema do discurso, em busca da adesão e ação do ouvinte.

O Sermão de São Roque, de 1644, é, neste particular, paradigmático. Pronunciado na Capela Real, na presença do rei, relaciona-se à Festa do Dia de São Roque, coincidente com as comemorações do primeiro aniversário do príncipe D. Afonso, cujo nascimento considera o sermão fruto da providência divina, passados sessenta anos da noite castelhana, desde o desaparecimento de D. Sebastião, que, como D. Henrique, não teve descendentes que pudessem ocupar o trono português e garantir uma continuidade dinástica e, com ela, a autonomia portuguesa.

De certa forma, Vieira retoma aí a crença e a tradição, que vem do sonho de D. Afonso Henriques, concretizado na derrota de D. Sebastião e o que se seguiu, marcando o reinado de D. João a continuação da profecia.

O antecedente exemplar está no Livro de Esdras, como História, a liberação dos judeus do cativeiro e a autorização para a reconstrução do templo de Jerusalém, e na profecia de Daniel, que Portugal não interpretava de maneira diferente do resto da Europa, desde a Idade Média, e que Vieira viu como predestinação de Portugal: a interpretação do sonho de Nabucodonosor, rei da Babilônia, feita pelo profeta Daniel, segundo a qual a história do mundo teria conhecido quatro monarquias (babilônico-assíria, persa, grega e romana), que precediam a vinda de um “reino que quebraria e aniquilaria todos os outros reinos e subsistiria eternamente”. Na interpretação cristã, as monarquias pagãs seriam seguidas de um reinado de unidade religiosa, de paz universal e perfeição. Na interpretação de Vieira, como sabemos, o escolhido seria Portugal (o quinto império de mil anos), o messias, D. João IV — reescritura do sebastianismo —, para o que não faltava nem mesmo o profeta adequado, o sapateiro e trovador de Trancoso, Gomes Anes Bandarra. Não anunciavam as suas trovas o nascimento de um príncipe que restabeleceria a justiça e o direito, realizaria a conquista dos lugares santos e a conquista do mundo, que submeteria a uma única fé?

 

6. O motivo do Sermão de São Roque é, como já se disse, a comemoração do dia do santo e do aniversário do príncipe. Mas a intenção retórica está em outro lugar. Está centrada numa questão política temporal e atual, em face da situação crítica do reino, hostilizado por Castela em seu território, e pela Holanda, em suas conquistas, e atrasado em relação ao mundo burguês-capitalista, de perfil protestante, que construía uma nova ordem econômica, sustentada no capital privado de base judaica. Vieira pensa a contemporaneidade de Portugal em termos de fundação de companhias e está certo, pela evidência, da necessidade da presença dos judeus e cristãos-novos, expropriados e expulsos de Portugal, por obra da Inquisição.

A biografia de São Roque e a situação por que passara em sua terra, primeiro rejeitado, depois ungido, é o exemplo. O evangelho fornece a legitimação e o fim é a eficácia do jogo de xadrez da persuasão, através da analogia e da alusão, que serão os elementos da estratégia manifestada na metáfora e na alegoria, como formas de indução retórica, e no entimema como base do entendimento.

Roques a reis, peças que se ajudam. A este intento procurarei encaminhar todo o sermão. O evangelho nos dará os documentos, o Santo nos dará exemplos: queira Deus que não resistam os corações.

A analogia é um comportamento semântico persistente no discurso engenhoso de Vieira. Uma de suas manifestações constantes é o jogo de palavras, a denunciar uma concepção do signo (e da linguagem) como expressão, mais para a concepção anagramática de Saussure do que para a significação do signo saussureano da Lingüística Geral, ao quebrar os limites entre significante e significado e promover um trânsito livre entre eles, antecipando, de certa forma, a noção moderna de signo como circulação de significantes.

Neste particular, pode-se dizer que, como hermeneuta, Vieira situa sua fala como ato em que se revela um evento semiótico integrador, pela ação enunciadora, do ato proposicional (referência/predicado) e o ato ilocucional (intenção de persuadir, agir sobre “os corações”), com vista a um fim perlocucional (adesão ao tema polêmico).

Como leitor, cuja escrita é também a mostra do movimento de leitura, o discurso constitui uma interpretação e decifração de uma linguagem essencial que transcende a linguagem humana verbal, um universo simbólico que faz falar um sentido que estão em interpretantes, cujos significantes se situam in absentia, numa dimensão paradigmática que subsiste ao eixo sintagmático da linguagem, a exigir um decifrador qualificado, que, no movimento de escrita-leitura, tenha condições de jogar o jogo de provas e exemplos (o jogo de xadrez) com a ciência que o legitima.

Aristóteles fala em provas que dependem da arte de persuadir e noutras que dela não dependem. As últimas, provas independentes, as que “não foram fornecidas por nós, mas que já preexistiam” ao discurso, como testemunhos, confissões e convenções escritas; as primeiras, provas dependentes, “todas as que foram fornecidas pelo método e por nossos próprios meios”, interiores ao discurso (“o caráter moral do orador, disposições que se criam no ouvinte e o que o discurso demonstra ou parece demonstrar”, neste último caso por meio do entimema). Ainda segundo Aristóteles, funcionam os exemplos por indução, sendo, por isso, o exemplo, uma “indução oratória”, enquanto o entimema é um “silogismo oratório”. Isso seriam estratégias utilizadas por “todos os oradores que procuram que as provas sejam aceitas pela demonstração com exclusão de qualquer outro meio”.

Sabemos também que considerar o entimema como um silogismo incompleto ou reduzido é dirigir a atenção para a sua forma, não se podendo deixar de considerar que a redução se verifica por zeugma, uma vez que a relação ilocucional abriga a pressuposição do orador quanto ao conhecimento do ouvinte de uma proposição implícita que é da opinião comum de falante e ouvinte, no caso do sermão de Vieira, a crença na História coletiva e individual reunida nas Escrituras.

No exordium do Sermão de São Roque, e especificamente na citação que fizemos, deixa-se revelar um procedimento invariante do discurso barroco de Vieira, que representa, em linhas gerais, a apropriação da retórica clássica pelo discurso cristão, que é posto a serviço do poder português, ao mesmo tempo que propõe as transformações exigidas pela contemporaneidade européia.

Assim, no Evangelho está o documento legitimador da opinião, no Santo, ou melhor, no testemunho de santos e sábios da Igreja, a prova independente, incluído na prova dependente, o entimema, omitida, por pressuposição, “a premissa imediatamente evidente, admitida como universalmente verdadeira sem exigência de demonstração”, articulados por meio do processo indutivo. Em outros termos, rememora a ocorrência bíblico-cristã absorvida no teocentrismo da hermenêutica medieval e, por analogia, põe a serviço do interesse português a metafísica cristã, atualizada nas necessidades contemporâneas do reino, a buscar um difícil consenso (a importância para Portugal do retorno dos judeus e cristãos-novos, sem perseguição).

 

7. Uma contradição e, ao mesmo tempo, uma tentativa de buscar uma unidade se revelam na própria configuração do discurso oratório de Vieira. Como discurso de celebração de um dia sagrado e de comemoração de uma data real, o Sermão de São Roque se incluiria, classicamente, no gênero epidítico, cuja atitude de recepção é a contemplação, a situação de comunicação é a da festa ou da representação teatral, e a intenção do ato de fala é a censura ou o elogio. É o discurso que não busca produzir um novo saber que possa a vir transformar uma situação, mas, em geral, serve para reiterar um saber e, por conseqüência, preservar uma situação.

Numa primeira leitura, o discurso de Vieira atenderia à exigência do gênero, no que celebra o santo francês e comemora o primeiro aniversário do príncipe. Seria, entretanto, uma leitura insuficiente, porque estaria elidindo uma dimensão temática consubstancial (de natureza histórico-social) da intenção retórica de Vieira de influir nos “corações” dos ouvintes: a exclusão dos judeus e a necessidade de seu retorno para a modernização de Portugal.

O discurso, dessa forma, põe, através do jogo metafórico-alegórico, o comportamento epidítico a serviço do gênero deliberativo, que, dialética e retoricamente, busca uma transformação da opinião em dissenso, em favor de um saber que possa construir um consenso de transformação.

O discurso epidítico, do orador da festa ou do ritual, está em acordo com os ouvintes e, portanto, não há dúvida quanto ao saber que une os interlocutores na situação de comunicação. Não é o caso do discurso deliberativo ou judiciário, cujo orador não pode ter certeza de que os ouvintes lhe darão o que ele busca com o seu discurso — a adesão, a decisão de validar o tema polêmico apresentado pelo discurso —, o que o obriga a promover um saber que deve servir de motivação para a validação da tese defendida e a realização da ação conseqüente.

A convivência do epidítico e do deliberativo no universo discursivo de Vieira se dá por um processo de disseminação e fusão, refletindo o comportamento barroco de expor a oposição, a assimetria, a disseminação, para buscar a identidade, a simetria e a unidade. Essa obsessão espetacular e especular, que busca na refração o encontro reflexo da imagem, desliza, incessantemente, por todo o texto, num movimento circular, cujo eixo se projeta, ao mesmo tempo, para a tradição e a urgência da transformação.

Pela estratégia do deslocamento, o discurso, como ação e instrumento de ação, atualiza o modelo teórico da ação racional: S (Vieira e o pensamento modernizador) tem a intenção de que A aconteça, ou seja, judeus e cristãos-novos portugueses retornem ao reino para a atualização da economia portuguesa (condição representativa); A acontece, ou seja, o retorno dos judeus e cristãos-novos (condição semântica); ao fazer B — discurso que remete à História, coletiva do povo judeu e individual de Cristo, como testemunho (provas) e à vida do Santo como exemplo, considera B adequado para A (condição explicativa). Sendo a fala retórica um ato ilocucional de persuasão em busca do ato perlocucional centrado no efeito produzido no receptor, fica pressuposto que o êxito ou fracasso da ação passa a ser objeto da leitura da História.

De qualquer forma, fica evidente a aguda consciência política de Vieira, a de que o discurso oratório é um ato de fala que funde o ato proposicional ao ato ilocucional, a serviço de um propósito perlocucional, seja na ação evangelizadora, seja na ação política; e que, sobre esta última, como quer Jacques Ranciére, “a política não é o reino do inevitável ou da necessidade, mas sim do possível, da escolha e, às vezes, da transformação”[7].

 

Notas

  • (*) Carta a D. Rodrigo de Meneses, 17.11.1664.
  • 1 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 1987.
  • 2 ibidem
  • 3 SARAIVA, A.J. O discurso engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
  • 4 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa. v1. Madrid: Taurus, 1987.
  • 5 RICOEUR, Paul. O discurso da acção. Lisboa: Edições 70, 1988.
  • 6 JAMESON, Frederic. O inconsciente político. São Paulo: Ática, 1992.
  • 7 RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento; política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.