Dez anos dez temas

Modernismo brasileiro: que retrato do Brasil?

Madalena Vaz Pinto*
Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses

E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma independência , um direito às suas inquietações e pesquisas que não tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana, ele nem pode imaginar que conquista enorme representa.

Mário de Andrade, "O movimento modernista"

É que a Antropofagia salvava o sentido do modernismo e pagava o tributo político de ter caminhado decididamente para o futuro.

Oswald de Andrade, "O caminho percorrido"

Pelo óbvio
Pelo incesto
Vamos comer Caetano
Pela frente
Pelo verso
Vamos comê-lo cru

Adriana Calcanhoto, "Vamos comer Caetano"

 

Em novembro de 2002, em entrevista ao programa Espaço Aberto da Globo News, o escritor angolano José Eduardo Agualusa afirmava que um dos aspectos mais chocantes para um africano ou afro-americano à chegada ao Brasil era constatar que a classe negra estava ausente dos centros decisivos do poder e não constituía mais que uma ínfima parte da classe média brasileira.

Este aspecto, somado a outros como expectativa de vida, nível educacional e renda per capita contribuem para que o Brasil seja um dos países de maior desigualdade social do mundo. Cabe então perguntar: por que será que o Brasil se modernizou sem levar adiante o projeto de inclusão social? Onde ficou o sonho de tolerância étnica de Oswald de Andrade?

Estas indagações fazem sentido ao pensarmos no modernismo brasileiro, movimento que desejou "mudar o Brasil". De alguma forma permitem-nos observar que o projeto modernista falhou. Mas como justificar tal afirmação ao constatar uma cultura de tão grande dinamismo e criatividade, com recepção e reconhecimento internacionais?

Analisar a modernidade hoje implica, por um lado uma postura crítica frente à sua mitificação, por outro, atenção para não cair nas simplificações do discurso pós-moderno [1] . Se a pós-modernidade se caracteriza pela incredulidade nas metanarrativas, ao legitimar infinitas subjetividades coincide com a explosão das minorias e reivindicação de suas especificidades e direitos. Acaso pode ser considerada minoria a grande maioria de excluídos da população brasileira?

Claro que soa demasiado utópico pensar que a massa alguma vez seria consumidora de "biscoito fino", como brincava Oswald de Andrade, mas utopias são por definição irrealizáveis e sua força está na capacidade de contagiar com seu sonho. A realidade brasileira justifica e legitima o sonho de mudança. Mais do que nunca faz sentido ser utópico.

O contraste entre o insucesso no projeto de inclusão social e o florescimento de uma cultura nacional remetem-nos para a tensão entre o estético e o ideológico existente no movimento modernista brasileiro. A nossa proposta consiste em analisar esta questão a partir de dois textos: O movimento modernista de Mário de Andrade e O caminho percorrido de Oswald de Andrade. A conferência de Mário é realizada em 1942, vinte anos depois da Semana; a conferência de Oswald em 1944, 20 anos passados da viagem dos modernistas a Minas, que marcaria a "guinada nacionalista" [2] do movimento. Datas e títulos são os primeiros indícios das diferenças de atitude frente aos respectivos balanços. De acordo com Silviano Santiago:

 

Mário de Andrade coloca como padrão de aferição o ideal não alcançado pelos participantes da Semana de Arte Moderna e, por isso, o tom geral do balanço histórico traz as cores negras do mais profundo pessimismo. Já Oswald de Andrade, colocando como parâmetro exemplos do atraso da cultura brasileira varridos pelo empenho modernista, sai sorridente e feliz das suas reminiscências históricas. [3]

 

No momento em proferiram sua conferências, Mário e Oswald tinham já passado pela experiência de um maior engajamento político: Mário como chefe da Divisão de Expansão Cultural e líder do Partido Democrático; Oswald como membro do partido comunista e escrevendo sobre política. Isto não impede que ambos se penalizem por suas ações não terem alcançado o efeito desejado: mudar os rumos do Brasil, não só no campo da estética como no campo da política.

O que se depreende da leitura destes testemunhos é que, teoricamente, as propostas estavam corretas, que o projeto modernista falhou em sua aplicação por problemas relacionados com uma linguagem radicalmente inovadora que impossibilitou a sua recepção. Quem podia "ler" o Manifesto Antropófago, os poemas Pau Brasil ou entender a mensagem subjacente a Macunaíma e seu herói "sem nenhum caráter"?

 

Comparada com a escrita popular de um Lima Barreto, a escrita modernista é áspera e por demais enigmática para o leitor comum. Isso se deve ao fato de o texto apoiar-se em técnicas de composição orientadas pela uso da elipse, rechaçando o escritor como inadequado todo e qualquer recurso à redundância na confecção do texto. Arte da elipse, o poema e a prosa modernistas nasceram de um antagonismo ao gosto do público, dando sempre ao valor artístico a condição de categoria inquestionável. Ao leitor é que cabe a tarefa de aprimorar-se, para que chegue - um dia - à fruição da obra de arte modernista. [4]

 

O gap entre programa e aplicação reflete o caráter elitista e explica em grande parte o seu "falhanço", principalmente se pensarmos na sociedade brasileira na década de 20 no que toca a programas educacionais, taxas de analfabetismo, preços de livro.

Identificada a tensão, tentemos explicá-la a partir do contexto em que se deram os "anos heróicos" do movimento. As realizações dos artistas que deles fizeram parte contaram com a conivência e apoio de uma burguesia ascendente constituída por uma aristocracia rural em mutação e um contingente de emigrantes que começava a adquirir posições de poder na sociedade. A estes grupos a ruptura estética proposta pelo modernismo paulista interessava, já que contribuía para modificar hábitos de um Brasil arcaico e deste modo abrir caminho para os que iam surgindo, resultado das transformações no campo da indústria e da técnica. A 1a. geração modernista estava assim em sintonia com o desenvolvimento de uma economia capitalista, responsável pela passagem de um Brasil rural para um Brasil industrial. Como lembra João Luís Lafetá [5] , não se encontra, nos primeiros anos do movimento modernista, a aspiração de agir fora dos quadros da burguesia. Se existe a denúncia das más condições de vida do povo, não existe a consciência da revolução necessária para alterar esse quadro. É esta "falha" que será apontada aos modernistas da primeira geração pela geração de 30:

 

A "politização" dos anos trinta descobre ângulos diferentes: preocupa-se mais diretamente com os problemas sociais e produz os ensaios históricos e sociológicos, o romance de denúncia, a poesia militante e de combate. Não se trata, nesse instante, de "ajustar" o quadro cultural do país a uma realidade mais moderna; trata-se de reformar ou revolucionar essa realidade, de modificá-la profundamente [...]. [6]

 

Se levarmos em consideração a definição de modernização dada por Charles Harrison [7] , de fato o projeto modernista no Brasil ficou incompleto já que, dentro dos processos que o constituem - políticos, econômicos e tecnológicos - o país aderiu a um projeto de modernização sem o desenvolvimento de uma base de sustentação política. É aqui que o conceito de "modernidades tardias" nos é útil, por permitir "observar a superposição de temporalidades distintas" [8] e deste modo escapar de um lugar de menos-valia na análise das especificidades do Brasil, país periférico que tentou com o movimento modernista resolver um "bloco de questões em que se imbricavam modernidade, brasilidade, tradição e origens populares" [9] :

 

Diferentemente do que ocorre em outros modernismos, onde a idéia de revolução ou de descrédito do passado se situa no centro das indagações, no caso brasileiro a modernização vem caracterizada como atualização, onde não está afastado o compromisso com a tradição. [10]

 

O modernismo brasileiro, ao contrário das vanguardas européias fundadas no princípio da ruptura, defende a idéia de evolução e a necessidade de respeitar o passado. Por essa razão, proceder à sua leitura somente pelo signo da ruptura significa deixar de lado um aspecto essencial do seu projeto: o desejo de se constituir como discurso fundador da identidade brasileira, o que não poderia concretizar-se sem um corpus que lhe desse legitimidade histórica. Este desejo, por sua vez, criava nos integrantes do movimento modernista um conflito de difícil resolução: como criar uma nova identidade a partir de uma tradição imposta? Como nos modernizarmos se essa mesma tradição "complica nosso acesso à modernidade"? [11]

Se é possível inferir dos comentários acima uma mesma oposição frente à "versão canônica veiculada pelas instituições literárias, que privilegia a interpretação do modernismo pelo viés da destruição, da vanguarda e da ruptura, em detrimento dos valores legados pela tradição" [12] , o mesmo não acontece na forma de interpretar o conceito de tradição no modernismo brasileiro. Enquanto Renato Cordeiro Gomes se refere a tradição como a totalidade das heranças recebidas, Eduardo Jardim distingue nessa tradição duas heranças: uma entendida como conjunto de manifestações populares, "intocadas" pela aculturação, que é importante preservar; outra que se manifesta na cultura passadista, herança anacrônica que persiste nas formas culturais importadas, de que o Brasil tem de se desfazer.

O projeto modernista, segundo Mário de Andrade em O movimento modernista, define-se pela conjugação de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Se reconhecia na literatura brasileira a dificuldade em assumir as características próprias do português do Brasil, Mário percebia na pintura e na música um avanço na conquista de "um direito às suas inquietações e pesquisas", sinal de que o projeto tinha resultado na instauração do direito à liberdade de pesquisa e na estabilização de uma consciência criadora nacional. No entanto a arte não se resume às formas e técnicas usadas pelo artista, a arte "é muito mais larga e complexa que isso e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma força interessada da vida" [13] , o que o leva a reconhecer, paralelamente ao "sucesso" do projeto estético, o "fracasso" do projeto ideológico:

 

Mas a inteligência estética se manifesta por intermédio de uma expressão interessada da sociedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana imediatista e maior que a criação hedonística da beleza. E dentro desta funcionalidade humana da arte é que o assunto adquire um valor primordial e representa uma mensagem imprescindível. Ora, como atualização da inteligência artística é que o movimento modernista representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário. [14] (grifo nosso)

 

O que se aproxima das conclusões de Oswald:

 

Já se foi o tempo em que, sorrindo dos que lutavam sem tréguas e muitas vezes sem esperança, os estetas se divertiam dizendo aos católicos que eram comunistas e a estes que eram católicos. O papel do intelectual e do artista é tão importante hoje como o guerreiro de primeira linha. Tomai lugar em vossos tanques, em vossos aviões, intelectuais de Minas. Trocai a serenata pela metralhadora. [...] Defini vossa posição! [15]

 

Os dois "balanços" falam da necessidade em transformar uma postura essencialmente estética em uma atitude mais eficaz do ponto de vista da participação no projeto de mudança social. A tensão entre o estético e o ideológico se traduz nestes textos em termos da trajetória individual, na tensão entre o artista e o intelectual que, no caso de Mário de Andrade, um maior envolvimento nas questões sociais não pode resolver:

 

Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem de estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a beleza divina. Mas eis que chego a este paradoxo irrespirável: Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável! [16]

 

Sua autocrítica é impiedosa, aponta para conflitos pessoais indissolúveis e deixa uma ferida aberta: a de não ter contribuído para a efetiva mudança da sociedade: "si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea." [17] Já a de Oswald é menos autocentrada, e talvez por isso mais abrangente e otimista. Além do paralelo que estabelece entre Inconfidência mineira e Semana de 22, como movimentos que queriam "acertar o passo com o mundo", Oswald entende os desdobramentos políticos posteriores, o tenentismo, a Coluna Prestes e a Revolução de 30 como decorrência direta do caminho aberto pelos "semáforos de 22". Esta visão positiva está longe da que defende em 1933, no prefácio a Memórias sentimentais de João Miramar. Cito comentário de Benedio Nunes:

 

Oswald diz que, como tantos outros de sua geração, passara pela experiência vanguardista por efeito de uma inquietude mal compreendida, que ignorava a origem social e o fundo político de seus anseios. Em tais condições, a bandeira rebelde, nem preta nem vermelha, do primitivismo nativo por ele sustentada a doses de sarcasmo, fora como uma doença infantil - o "sarampão antropofágico", que atingira indistintamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista. [18] (grifo nosso)

 

Ironicamente, como veremos, nenhum outro conceito se mostrou tão produtivo como o conceito de Antropofagia por resolver tão bem, ao invertê-la, a questão do colonizador e do colonizado. O próprio Oswald, em 1945, um ano depois de O caminho percorrido, volta à Antropofagia como oposição crítica ao marxismo e interesse crescente pela filosofia.

Se Oswald e Mário de Andrade aparecem nestas "confissões" como "homens partidos", em que chama a atenção o tom culposo das declarações, não quer dizer que compartilhem das mesmas idéias no que toca à "solução" do conflito existente entre o estético e o ideológico.

Em relação a Mário de Andrade parece mais correto falar de oposição entre estético e função social. Isto porque, para Mário, a arte tem sim uma função social, mas isto não o leva a admiti-la como arma de combate político. A arte não deve ser contaminada por nenhum a priori e é nesse sentido que defende a "atitude estética" em oposição à "atitude social".

Na verdade, para Mário, "atitude estética" remete para o interior do próprio fazer-artístico. A função social estaria na capacidade da arte em promover a re-ligação e congregação entre os homens, conceitos que Mário de Andrade traz de suas pesquisas nos campos da antropologia e da sociologia. Daí o interesse pelo folclore, o que o levaria ao estudo e ao inventário da tradição e à defesa das "coisas brasileiras".

Neste contexto, nacionalismo e cosmopolitismo não são termos antagônicos mas completares. Fazia-se necessário descobrir o próprio país para então produzir uma cultura made in Brasil passível de ser exportada e assim acertar o passo com as nações cultas. Vistas sob este ângulo, as ações de Mário e de Oswald se completavam: inventariar para preservar; re-escrever para se tornar sujeito da própria história.

A re-escrita levada a cabo por Oswald de Andrade tem início com o Manifesto Pau Brasil (1924) e continua na coletânea de versos do mesmo nome (1925). Daí resultaria o primitivismo nativo, o "único achado de 22" [19] , segundo Oswald. Já "descoberto" pelas vanguardas européias, traduzia um afastamento em relação à tradição ocidental calcada nos valores da lógica e do racional, e, ao mesmo tempo, uma tentativa de buscar os elementos da arte nos sentimentos e emoções. Por outro lado significava para as correntes artísticas européias uma virada em direção à arte primitiva que traduzia um "pensamento selvagem" ligado à lógica do imaginário em oposição ao utilitário e cultivado. Segundo a análise de Benedito Nunes, o Manifesto Pau Brasil situa-se na convergência entre os dois: o pensamento selvagem ("ver com olhos livres"), que participa da lógica do imaginário; em oposição ao pensamento cultivado, ("a prática culta da vida") utilitário e domesticado. Desta forma propõe um "programa de reeducação da sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira" [20] :

 

O ideal do Manifesto da Poesia Pau-Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, o "melhor da nossa tradição lírica" com o "melhor da nossa demonstração moderna". [21]

 

A ousadia de anunciar os poemas com o aviso "Por ocasião da descoberta do Brasil", revela a intenção de remeter para a História e dela fazer uma crítica radical. Era preciso "tomar as coisas pela raiz", embora poucos estivessem preparados para entender essa atitude. Em primeiro lugar porque a percepção desse atraso só fora possível olhando o Brasil "de fora"; em segundo porque esta se concretizaria através de uma linguagem que resultara desse contato com o exterior. Era de esperar que o leitor comum não estivesse habilitado a tamanha solicitação: um texto que pressupunha conhecimentos prévios que possibilitassem o preenchimento das lacunas que a linguagem elíptica requeria. Além disso, a impossibilidade de uma recepção imediata tinha a ver com a inexistência de uma teoria "nova" que, como nota Henri Lefebvre, não pode ser compreendida se é julgada por teorias antigas [22] . Daí tais propostas não terem sido acolhidas no meio intelectual brasileiro.

Se o Manifesto Pau Brasil e o Manifesto Antropófago podem ser entendidos como partes de uma mesma peça, é possível perceber entre os dois textos um percurso: O Manifesto Pau Brasil, em seu tom de constatação, é um manifesto pelo direito à diferença; o Manifesto Antropófago busca a inclusão das diferenças ao constatar que a pureza não passa de mito e assim aponta para um projeto futuro. Enquanto Pau Brasil procede a uma "apreciação da realidade sociocultural brasileira" [23] , o Manifesto Antropófago traz "um diagnóstico dessa mesma realidade" [24] .

Por essa razão seria considerado o "divisor de águas" do modernismo, ao pretender a virada do movimento até então preocupado com questões essencialmente estéticas, em direção a uma postura mais cultural e ética. Acontece que o manifesto não só mantém as características duma linguagem elíptica, como as radicaliza, a começar pela provocação contida no título, mantendo assim as mesmas questões quanto à possibilidade da assimilação das propostas aí contidas.

Não se tratava de um convite à regressão a estados pré-civilizatórios, como à primeira vista pode parecer; na verdade constituía antes um convite ao avanço rumo ao futuro baseado na aceitação da pluralidade dos elementos constitutivos da cultura brasileira. Devoração das suas figuras emblemáticas (Vieira, Anchieta, a corte de D. João VI); em oposição aos símbolos míticos contidos no imaginário coletivo mas até então reprimidos, que, em oposição aos primeiros, realizariam a cerimônia antropofágica, agora não só aceita mas recomendada.

Apesar da tentativa, o entendimento da proposta só aconteceria anos mais tarde, quando se dá a recuperação da figura de Oswald de Andrade no cenário cultural brasileiro:

 

[...] apesar de propor um modelo cultural sem chauvinismos ou exclusões étnicas, centrado na atitude criadora e não em uma ontologia da nacionalidade, a Antropofagia não foi de imediato vitoriosa [...]. Na verdade, o interesse despertado pelo modelo antropófago é mais recente. Ele ressurge na atenção dos poetas concretos Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e do artista Hélio Oiticica, difunde-se entre os tropicalistas nos anos 60, e consolida-se nos numerosos estudos feitos nas universidades, a partir do cinqüentenário da Semana, de 1972. [25]

 

Se a Antropofagia não buscava, como o Romantismo, uma "ontologia da nacionalidade", seu modelo cultural sem chauvinismos ou exclusões étnicas vingou se o analisarmos do ponto de vista da atitude criadora.

Ao incentivar o "destemor da influência como autonomia do influenciado", a Antropofagia constitui um "processo de assimilação de intrínsecas possibilidades", uma "saída por cima", ao legitimar a comilança do que do outro interessa, transformando o antes interdito numa festa consciente pela deglutição do pai, incorporando sua força. Se "a Antropofagia salvava o sentido do modernismo e pagava o tributo político de ter caminhado decididamente para o futuro" [26] , a sua concretização deu-se essencialmente em termos de inserção cultural, o que é possível perceber pela adoção de seu conceito por outras narrativas, entre elas a psicanálise:

Trazemos a marca de uma certa facilidade para nos desfazer das figuras vigentes, e com elas das identidades e gêneros, sempre que necessário. Nossa fundação e nossa história é pontuada por mestiçagens. Habituados a nascer e renascer das misturas, somos constitutivamente híbridos; borram-se em nós desde o início as fronteiras entre figuras. Um dos movimentos do Modernismo brasileiro colheu esta marca da nossa cultura e decidiu afirmá-la positivamente, chamando-a de "Antropofagia". [27] (grifo nosso)

 

A questão é discutir se de fato se efetivou, socialmente, essa mestiçagem e esse hibridismo, se este sonho não ficou bloqueado por uma estratificação social que o inibe.

Se a atuação política da primeira geração modernista tinha deixado a desejar, o posicionamento da geração seguinte, assumidamente politizada, impedira por seu lado a continuação do projeto de desenvolvimento da arte brasileira que só se daria com a volta das questões estéticas ao campo específico da arte:

 

Não seria impróprio dizer que a politização e conseqüente desestetização do debate sobre a arte brasileira foi um fator que adiou até ao fim da década de 1940, sua efetiva modernização estética, pois a invenção formal e a pesquisa de linguagem que caracterizavam as vanguardas deveriam florescer sobretudo no campo especifico da arte, e não no território deslocado do discurso social. [28]

 

Quer então dizer que criatividade artística e engajamento político são incompatíveis? A discussão faz sentido em se tratando da primeira geração modernista. Suas ações, como nos revelam os textos lidos, pretendiam ir além das realizações artísticas e suas obras são disso evidência: manifestos, poesia e romances estão impregnados de propostas e leituras críticas que transbordam o campo restrito da arte.

Mário de Andrade, assim como Oswald, sentiam que o projeto modernista ficara aquém do que tinham idealizado. Seus textos apontam para algo que não se concretizara, sobretudo se analisado como discurso que se pretendia fundador da identidade brasileira, ao qual seria coerente exigir maior abrangência.

O balanço positivo contido no conceito de Antropofagia, se tem a grande vantagem de retirar o brasileiro de um lugar de subordinação, tem também, e é essencialmente o que persiste até hoje, o problema de amenizar conflitos, mascarando-os com a aparência da harmonia. Conceito dinâmico do ponto de vista estético, pouco rentável do ponto de vista social, a antropofagia tem esta dupla carga, que faz com que à sua luz, movimentos sociais reivindicativos nos pareçam anacrônicos. Se a arte brasileira contínua sua trajetória brilhante, que dizer do retrato do Brasil?

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* Doutoranda em Estudos de Literatura Portuguesa na PUC-Rio, bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

[1] Annateresa Fabris, "Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro". In: Modernidade e modernismo no Brasil, Campinas, Mercado das Letras, 1994, p. 9.

[2] Silviano Santiago, Sobre plataformas e testamentos, São Paulo, Globo, 1991, p.10.

[3] Id., ibid., p.10.

[4] Silviano Santiago, "Calidoscópio de questões". In: Tolipan et alii, Sete ensaios sobre o modernismo, Rio de Janeiro, Funarte, Caderno de Textos, n. 3, 1983, p. 27.

[5] João Luís Lafetá, "Os pressupostos básicos". In: A crítica e o modernismo. São Paulo, Duas Cidades, 1974, p.17.

[6] João Luís Lafetá, op. cit., p. 17.

[7] Charles Harrison, "Modernism", apud Paulo Herkenhoff, Arte brasileira na coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2002, p. 17.

[8] Eneida Maria de Souza, "Imagens da modernidade". In: Modernidades tardias, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1998, p. 30.

[9] Eduardo Jardim de Moraes, "Modernismo revisitado", Estudos Históricos, v. 1, n. 2, 1998, p. 221.

[10] Eduardo Jardim de Moraes, op. cit., p. 224.

[11] Renato Cordeiro Gomes, "Que faremos com esta tradição? Ou: Relíquias da casa velha". In: Izabel Margato (org.), Figuras da Lusofonia, Lisboa, Instituto Camões, 2002, p 2.

[12] Renato Cordeiro Gomes, op. cit., p. 6.

[13] Mário de Andrade, "O movimento modernista". In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo, Martins Fontes, [s.d.], p. 252.

[14] Mário de Andrade, op. cit., p. 252.

[15] Oswald de Andrade, "O caminho percorrido". In: Ponta de lança, São Paulo, Globo, 1991, p. 116.

[16] Mário de Andrade, op. cit., p. 254.

[17] Id., ibid., p. 252.

[18] Benedito Nunes, "Antropofagia ao alcance de todos". In: Oswald Andrade, A utopia antropofágica, 3.ed. São Paulo, Globo, 2001, p. 7.

[19] Oswald de Andrade, "O caminho percorrido", op. cit., p. 111.

[20] Benedito Nunes, "Antropofagia ao alcance de todos", op. cit., p.10.

[21] Id., ibid., p.13.

[22] Henri Lefebvre, "Le marxisme", apud Haroldo de Campos, "Uma poética da radicalidade". In: Oswald de Andrade, Pau-Brasil, Pau-Brasil, 8.ed., São Paulo, Globo, 2002, p. 15.

[23] Benedito Nunes, op. cit., p. 6.

[24] Benedito Nunes, op. cit., p. 6.

[25] Fernando Cocchiarale, "Da antropofagia ao experimentalismo: a construção de um projeto para a arte brasileira". In: Olhar o Brasil - Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 29, Rio de Janeiro, 2001, p. 232.

[26] Oswald de Andrade, "O caminho percorrido", op. cit., p. 112.

[27] Suely Rolnik, "Guerra dos gêneros. Guerra aos gêneros", ITEM-4 - Revista de Arte, Rio de Janeiro, 1996, p. 19.

[28] Fernando Cocchiarale, "Da antropofagia ao experimentalismo: a construção de um projeto para a arte brasileira", op. cit., p. 233.

 

 

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