Dez anos dez temas

O uso político da memória na ficção de José Cardoso Pires

Izabel Margato
PUC-Rio/ CNPq
Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses
 

é preciso criar esferas públicas de memória 'real' contra as

políticas de esquecimento, promovidas pelos regimes pós-ditatoriais.

Andreas Huyssen

 

1. É preciso lembrar...

Balada da praia dos Cães, de José Cardoso Pires, é o relato ficcional, publicado em 1982, sobre a investigação e a reconstituição de um crime ocorrido em 1960. A cena do "cadáver desconhecido, encontrado na praia do Mastro em 3-4-1960" [1] , que já se insinua na capa de algumas edições do livro, aparece logo na primeira página, isto é, antes da folha de rosto, com a transcrição de uma ficha necrológica. Essa transcrição é interrompida com asteriscos pela folha de rosto, e depois retomada, também com asteriscos, pela voz de um narrador que dá continuidade à descrição, mas já em um outro registro. Depois desta insólita apresentação, a narrativa propriamente dita se inicia com a primeira parte do romance, sob o título: "A Investigação - 7 de maio de 1960".

A estranha Balada que o romance se apresenta, vai retomar e investigar em 1982 a "perspectiva do céu baixo e lívido do fascismo" [2] que orientou na época a investigação do crime [3] do Major Dantas C. Trata-se de uma narrativa de "tipo policial" em busca dos diferentes fios com que se teceu a história desse crime. Com essa perspectiva, o Autor parte de um fato histórico para repor em cena os mecanismos de poder, produzidos pelo Estado Novo Português. Para usar os termos de Ricardo Piglia, poderíamos dizer que a Balada na praia dos Cães pode ser lida como um "duplo microscópico" [4] da sociedade portuguesa da época, com seus "núcleos paranóicos", suas deformações e relatos de terror.

Como narrar o terror engendrado pela ditadura e impedir que ele seja manipulado pelas "políticas do esquecimento"? A resposta a esta pergunta parece definir e delimitar o lugar escolhido por Cardoso Pires para exercer no limite o seu Ofício de escritor:

 

Podríamos decir que aquí se define un lugar para el escritor: establecer donde está la verdad, actuar como un detective, descubrir el secreto que el Estado manipula, revelar esa verdad que está escamoteada. [5]

 

Para "revelar essa verdade escamoteada", o Autor vai produzir um relato marcado pela tensão, pelo clima, e pela temperatura dos anos 60 em Portugal. Marcado também por uma sintaxe particular, por uma espécie de tom, ou pelo "cheiro de uma época" [6] .

        Em entrevista ao Diário de Lisboa, em 1983, o escritor nos apresenta uma imagem concentrada da sociedade portuguesa na época do crime do Major Dantas C.:

Naquele crime está o país todo, estamos todos nós. Está tudo em jaulas. Enjaulados em gabinetes, em quartos, em casas, em celas, com polícias por todos os lados, é o tempo da sociedade do terror burocrático. [7]

 

É o tempo das maquinações do poder ditatorial. Tempo de ameaças e de "ocupação" da cidade. Tempo do "terror burocrático", como nos diz o escritor, mas também um tempo marcado pelas tensões secretas entre a Pide e a Polícia Judiciária; pelas deturpações dos pontos de vista falseados que dão forma aos  "segredos de Estado". Para penetrar no interior desse aparato oficial, desse aparelho de Estado, o Autor vai investir-se no papel de "detetive por conta própria", vai examinar ficheiros, consultar a documentação dos processos-crime, reunir relatos dispersos, para os ouvir em segredo, e construir possíveis respostas para a pergunta tantas vezes proferida: a quem interessava essa morte ?

 

2. O papel do detetive

Crime, suspeita, ambigüidade são ingredientes caros aos textos de Cardoso Pires. Poder-se-ia dizer que o escritor chega a alimentar a impressão de que seus textos seriam do gênero policial. Muitos dos ingredientes desse gênero estão presentes em seus livros, a começar pelo narrador que, em muitos deles, veste ou toma emprestada a capa do detetive. Este é o caso do romance O Delfim e também é o caso de um dos personagens principais da Balada da praia dos Cães. No entanto, essa aproximação é enganosa, trata-se muito mais de um movimento da sua ficção, isto é: a tática de quem faz da escrita um modo de decifração. [8]

O movimento interrogativo que suscita a decifração é responsável por uma rede múltipla de sentidos que ora se aproximam, ora se opõem, ora se anulam, e depois voltam, como ecos, para compor as cenas que condensam e cristalizam os sentidos a serem decifrados. Há muito da prática do detetive nos mecanismos dessa ficção, mas não se trata de uma simples recuperação do gênero [9] ; trata-se antes de uma apropriação subvertida, uma prática que trabalha o mistério como isca, para depois investigar a própria ação do detetive e, a partir daí, deslocar o eixo de observação, pondo sob suspeita o ponto de vista que determina o conteúdo a ser investigado.

Nesse momento, a investigação se desdobra: há um crime a ser desvendado, mas há, principalmente, um cruzamento de leituras que põe sob suspeita a prática de investigação e de reconstituição do crime, efetuada pelo agente da Polícia Judiciária. Elias transforma-se num olhar marcado, isto é, num olhar circunscrito pela mutilação do corpo e pela ideologia do Estado Novo que o agente desdobra e faz prevalecer.

Nesta prática de investigação é preciso saber ler o que está visível, mas é preciso estar também atento ao que é desprezado como pouco relevante para a montagem do processo e, mais ainda, ao que ficou de fora e classificado como não verdade. Esta parte residual - o que foi desprezado - vai constituir um seguimento rasurado, a parte sombria disseminada no movimento do relato.

No corpo textual da Balada, os dados que Elias investiga - o que privilegia e seleciona; a maneira como recolhe, descarta e ajusta as pista - constitui um de relato subterrâneo, um subtexto emblemático da doença social que o romance põe em cena. Saber ler esse relato de sombras é saber ler a miopia de Elias. É saber ler as outras infinitas mutilações produzidas por um regime que se impõe pela força, pelo controle da censura e pela criação de "formas de mentalidade adaptadas ao Poder"

 

Portugal, com 420 anos de Censura em cinco séculos de imprensa, representa uma experiência cultural à taxa de repressão de 84 %. Ao longo de gerações e gerações, através de monarquias e impérios; de inquisições, ditaduras; arrastando silêncios, arrastando exílios, uma lenta procissão de mártires desfilou por esse incalculável corpus de naufrágio que são os milhares de quilômetros de textos lançados às fogueiras e aos arquivos. Todo esse percurso tem a grandeza de uma resistência que se tornou histórica e dia a dia renovada com ardis e exemplos de insubmissão. Mas dia a dia também, a Censura foi-se instituindo como uma tradição repressiva, cada vez mais apurada, que no regime de Salazar acabou por atingir uma coerência técnica bem definida.      
"Ce petit dictateur dont le nom m´echappe" [.] empenhou-se em fazer da Censura uma sintaxe do pensamento colectivo, uma autêntica profilaxia do Estado que não visava apenas a controlar mas a criar formas de mentalidade adaptadas ao Poder. [10]

 

A profilaxia do Estado Novo, essa sintaxe do pensamento coletivo está disseminada por todo o romance. Um dos trechos mais significativos dessa prática é a representação que o Escritor faz da Lisboa da época: uma cidade sitiada, um território minado com mil filamentos de controle:

 

Lisboa, esse vulto constelado de luzes frias do outro lado do rio é um animal sedentário que se estende a todo país. É cinzento e finge paz. Atenção, achtung. Mesmo abatido pela chuva, atenção porque circulam dentro dele mil filamentos vorazes, teias de brigadas de trânsito, esquadras da polícia, tocas de legionários, postos da GNR, e em cada estação dessas, caserna ou guichet, está a imagem oficial de Salazar e bem à vista também há filas de retratos de políticos que andam a monte. O perímetro da capital está todo minado por estes terminais, Lisboa é uma cidade contornada por um sibilar de antenas e por uma auréola de fotografias de malditos com o Mestre da Pátria a presidir. [11]

 

Esta descrição panorâmica de Lisboa é a leitura em relevo dos anos cinzentos que ocuparam por muito tempo a cidade de José Cardoso Pires. Como uma alegoria, este panorama condensa práticas e resultados da política salazarista que fazem de Lisboa o animal sedentário que é cinzento e finge paz. A ambivalência dessa imagem espalha-se pelo país, mas sob a forma de um segredo bem engendrado, isto é, a imagem de paz, cuidadosamente protegida e controlada pela fotografia do ditador e pelos discursos concertados das antenas sibilantes de suas polícias.

Essa visão panorâmica de Lisboa pode ser vista também como um mapa que se vai desdobrar em ecos; uma espécie de lição aprendida para ser continuamente repetida e ocupar a cidade, até transformá-la no "animal sedentário", ou melhor: um lugar que finge paz, mas onde a vida de todos já está traçada como um destino [12] .

 

3. Os crimes da Balada da praia dos Cães

Num primeiro momento, a trama que envolve a morte do Major Dantas C. parece não ter muitos fios. Trata-se de uma tentativa frustrada de ação política contra o regime do Estado Novo Português;

 

Trata-se do ex-major do Exército Luís Dantas Castro que em Dezembro passado se tinha evadido do Forte da Graça, em Elvas, onde aguardava julgamento por participação num abortado golpe militar; [13]

 

trata-se da história de quatro pessoas que, depois da fuga, se refugiam numa vivenda perto de Lisboa - A "Casa da Vereda" ou, o "Covil" - à espera de um possível apoio que nunca chega. Trata-se, enfim, de uma convivência dramática que se deteriora numa espécie de logro comum, que leva ao desespero, à solidão e à morte.

As polícias do governo de Salazar investigaram, reconstituíram e formularam as suas versões para os enredos desse crime. Versões produzidas e ajustadas para a elaboração de um processo-crime; versões marcadamente formuladas com precisão de datas, lugares, movimentos e toda a sorte de detalhes necessários ao tom de "veracidade" com que devem ser formulados os Autos. No entanto, essas versões oficiais não passam de desdobramentos de um modelo de realidade, isto é, elas formam um núcleo significativo que reproduz um sistema de poder. Depois de compostas, essas versões passam por um processo de difusão - por uma "máquina de fazer crer" [14] - que lhes vai garantir o estatuto de "verdade dos fatos". Ora, não é novidade para ninguém que todo poder impõe uma maneira de contar a realidade. O que também não é novidade - mas assusta - é que todo poder ditatorial produz as suas narrativas apaziguadoras que, estrategicamente, explicam os fatos e, por outro lado, o ocultam. Ocultam as suas outras possíveis versões; ocultam tudo aquilo que não se ajustar ao seu modelo cognitivo de "ler" e "contar" a realidade. Esta prática, afinal, já é o indício da existência de outros crimes.

Os dois processos-crime (Polícia Judiciária e PIDE) serão conhecidos após a Revolução dos Cravos, em 1974, quando os Arquivos Policiais do Estado Novo foram abertos à consulta pública. Esse material está na base da construção da Balada da praia dos Cães. É um dos relatos que o autor vai examinar - soletrar é a palavra que melhor se aplica - para proceder a uma outra investigação e reconstituição do crime; para examinar os seus diferentes desdobramentos e as correlações que definiram a cor do tempo: um tempo cinzento e arrastado. E, finalmente, para captar os "núcleos paranóicos" [15] de uma ditadura que fez da Censura "uma sintaxe do pensamento coletivo, uma autêntica profilaxia do Estado que não visava apenas a controlar mas a criar formas e mentalidade adaptadas ao Poder." [16]

 

O crime que aconteceu ali - a morte daquele homem - é um crime colectivo. Ali estão todos os nossos medos, as nossas impotências, os nossos fantasmas. É a cobardia geral que mata o indivíduo. Quis fazer uma narração muito transposta dos factos reais, com os condimentos da imaginação, tal como a imaginação popular transforma os acontecimentos, acrescenta pormenores, adultera o facto. [17]

 

A proposição transcrita no trecho acima aponta, antes de tudo, para a natureza ambivalente do romance [que aqui se apresenta]: um crime particular e coletivo; um fato real, mas com os condimentos da imaginação que acrescentam, transformam e adulteram o fato. Daí a natureza ambivalente que o subtítulo do romance encerra: "Dissertação sobre um crime"; daí também a duplicidade das indicações com que em "Nota final" o Autor encerra o romance:

 

De modo que entre o facto e a ficção há distanciamentos e aproximações a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo autónomo e numa confluência conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência. [18]

 

As proposições desta "Nota final" põem fim a qualquer ilusão interpretativa que se proponha identificar logo de saída os limites do texto da Balada. Os seus limites não são, por assim dizer, "geográficos" (ou genéricos) no sentido amplo da palavra, mas simbólicos com toda densidade significativa que essa categoria possa ter. Poder-se-ia dizer que estamos diante de um romance, mas também de uma dissertação que "oscila entre o fato e a ficção" e institui um movimento cambiante que dilui as fronteiras entre as "pessoas reais" envolvidas no crime, e as "personagens literárias dissertadas de figuras do real". Essa oscilação vai atingir também o testemunho dado por uma personagem ao Autor, pois, as suas palavras finais aniquilam os limites dessa possível referencialidade:

 

O medo, uma forma dramática, um limite de solidão. Foi ele quem o disse? São de facto as palavras dele ou do aqui designado arquitecto Fontenova? Ou doutro alguém, quem sabe? Não teria, até, sido eu que me achei a ouvi-lo dizer essa e outras coisas numa memória inventada para o tornar mais exacto e real? [19]

 

Este último direcionamento - memória inventada - parece ajustar-se mais concretamente aos "modos de interpretar" delineados pela escrita de José Cardoso Pires. O livro parece ser uma Balada de muitos crimes a investigar. A ambivalência que o caracteriza não é, portanto, uma categoria aleatória, ela faz parte da postura de resistência do autor contra as políticas de esquecimento -os crimes contra a memória coletiva -; contra as práticas do "terror burocrático" que entorpecem os sentidos ao "assassinar" as outras versões dos fatos. Aproximar a realidade da ficção não é aqui um simples procedimento rentável de escrita, é antes gesto de subversão, ou melhor, um traço estético de resistência contra a parcialidade das verdades assentes. Nesse sentido, trata-se de um procedimento de escrita que interroga e investiga a vasta rede de pequenos e grandes atentados que se interligam na produção de um crime, ou melhor, na produção de crimes.



[1] José Cardoso Pires, Balada da praia dos Cães, 5. ed., Lisboa, O Jornal, 1982, p. 5. A partir desta nota, os trechos destacados desta edição do romance terão como indicação apenas os números das páginas.

[2] Óscar Lopes, "O desejo da morte e o discurso da vida", Jornal de Letras, Artes e Ideias, n. 56, Lisboa, 12 de abril de 1983.

[3] O chamado Crime da vivenda de Verde Pinho, em Rio de Mouro, onde foi morto o capitão Almeida Santos, em 16 de março de 1960. Sobre este crime, ver reportagem de Rogério Rodrigues "A história por detrás do best-seller", O Jornal, n.. 436, Lisboa, 1º de julho de 1983.

[4] Esta expressão é trabalhada por Ricardo Piglia em Crítica y ficción, Buenos Aires, Seix Barral, 2000.

[5] Ricardo Piglia, Tres propuestas para el próximo milénio (y cinco dificultades), Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2001.

[6] José Cardoso Pires, "José Cardoso Pires: o cheiro de uma época", entrevista de Maria Antónia Fiadeiro, Diário de Lisboa, Lisboa, 14 de junho de 1983, p. 10-11.

[7] José Cardoso Pires, "José Cardoso Pires: o cheiro de uma época", op. cit.

[8] Sobre este aspecto, consultar o artigo de Eduardo Prado Coelho, "Cardoso Pires: o círculo dos círculos". In: A noite do mundo, Lisboa, INCM, 1988.

[9] Sobre esta questão ver: Vera Lúcia Follain Figueiredo, Os crimes do texto, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.

[10] José Cardoso Pires, "Técnica do golpe de censura". In: E agora, José?, Lisboa, Moraes, 1977, p. 199-200.

[11] Id., ibid., p. 49.

[12] Cf. Ricardo Piglia, Crítica y ficción, p. 44.

[13] Id., ibid., p. 16.

[14] Id., ibid.

[15] A expressão é de Ricardo Piglia.

[16] José Cardoso Pires, "Técnica do golpe de censura", op. cit., p.199-200.

[17] José Cardoso Pires, "José Cardoso Pires: o cheiro de uma época", op. cit.

[18] José Cardoso Pires, "Nota final". In: Balada da praia dos Cães, op. cit., p. 256.

[19] Id., ibid., p. 256. Grifo meu.