Sumário

Trevas na utopia: de Ensaio sobre a cegueira a A caverna em José Saramago

Carla Gago
Universidade de Leipzig

Após um romance de charneira como O Evangelho segundo Jesus Cristo , dá-se uma clara viragem na produção ficcional de José Saramago com Ensaio sobre a cegueira , Todos os nomes e, ainda mais nitidamente, A caverna .

Já não estamos nesta trilogia 1 numa fase como a anterior, de reescrita e de paródia da história canónica, tal como em Memorial do convento ou História do cerco de Lisboa , em que a história é revisitada e reelaborada a partir de um outro ponto de vista, nomeadamente a perspectiva das margens, em oposição a um "centro" hegemónico detentor da versão oficial 2 . Estes três romances já não se reportam a épocas concretas, a partir das quais se efectua a re-criação, pois encontramo-nos numa acronia e atopia, que contribuem para a construção de alegorias e a transposição para o nosso tempo e espaço 3 , permitindo o "salto" para temáticas mais universais, numa indagação e reflexão saramaguianas sobre a condição humana finissecular.

Hannah Arendt, na sua leitura da história da humanidade, The human condition , refere que a condição humana já não é sinónimo de natureza humana, uma vez que o que nasce para o mundo a partir do esforço humano, torna-se também ele parte da condição humana, condicionando-a simultaneamente 4 . Também Saramago, neste retrato tripartido do nosso Dasein -a "democracia" que, numa situação-limite como a epidemia da cegueira branca, se movimenta em direcção a um sistema totalitário em Ensaio sobre a cegueira 5 , as feições ditatoriais da nossa sociedade tecnocrata, em Todos os nomes , e o neoliberalismo centralista em A caverna - analisa o nosso estatuto de agrilhoados (imagem final em A caverna ) do avanço civili­zacional, esse "progresso" trazido ao mundo pela mão do homem, mas que o aprisionou por sua vez e o transformou há muito num ser condicionado 6 .

Enquanto que em Memorial do convento as figuras de resistência constroem o sonho feito passarola, mostrando ainda crer nas capacidades do ser humano, ou seja, na racionalidade humana que conduzirá ao progresso, esta confiança parece diluir-se totalmente no Saramago de uma última fase. Há uma desconfiança quanto à razão, que não demonstra ser base para humanidade (muito pelo contrário), que se agudiza e as imagens, adjuvante crucial da racionalidade, são uma visão enganadora num mundo de simulações e simulacros, pelo que são propostas outras coordenadas epistemológicas. Após o José de Todos os nomes constatar a pouca fiabilidade dos olhos quando, no cemitério, o pastor lhe conta como trocou todas as tabuletas com os nomes dos mortos, e em Ensaio sobre a cegueira se ter afirmado que "as mãos são os olhos dos cegos", em A caverna declara-se a supremacia das mãos como detentoras da verdade:

 

O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos [...]. É certo que [o cérebro] consegue ver mais ou menos claramente o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. [...] imediatamente [o cérebro] se perde, perplexo, duvidoso, quando tenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo que toca o inefável, de algo que roça o indizível, aquela cor ainda de todo não nascida que, com o assentimento, a cumplicidade, e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão criando e que provavelmente nunca chegará a receber o seu justo nome. Ou talvez já o tenha, mas esse só as mãos o conhecem. A caverna , 2000: 83-84.

 

Apesar dos novos caminhos ficcionais nesse tríptico, as coordenadas axiológicas em Saramago mantêm-se: a relação das personagens que representam um trabalho de resistência com a esfera do poder e a utopia, o outro mundo possível. O que se pretende identificar aqui são, nomeadamente, os outros contornos que, nesta última fase da escrita saramaguiana, esses pilares assumem e, a um outro nível da tessitura textual, onde e como se inicia uma viagem progressiva da luz para as trevas.

A perspectiva nesses três romances continua a ser, assim, a das margens, a lupa através da qual se busca a verdade e os seus sentidos ocultos, tal como acontece com a figura de resistência em A caverna :

 

[...] devia andar nas suas explorações de criança curiosa, à procura dos sentidos das coisas e com astúcia suficiente para os encontrar por mais escondidos que estivessem. A caverna , 2000: 318.

 

O gérmen da rebelião, no género utópico, indicia a oposição entre a tirania reinante e a nostalgia de um mundo melhor. As figuras nesse tríptico revelam-se, assim, transgressoras e violadoras para edificarem as suas próprias normas e moral. Em A caverna , o oleiro abre portas proibidas, descobrindo a gruta com os mortos agrilhoados, em Todos os nomes , após se encontrar uma pista no labirinto da Conservatória relativo ao "outro" (uma mulher que não se conhece), este anti-herói inicial transforma-se ele também numa figura de resistência, cometendo abusos, falsificações e irregulari­dades, de modo semelhante ao que acontece com a figura da mulher do médico de Ensaio sobre a cegueira , que assassina o violador e afirma "já matei, e tornarei a matar se for preciso".

Os universos desses romances estão repletos de muros (os do manicómio em Ensaio sobre a cegueira , as paredes do Centro em A caverna que a figura de resistência refere que parecem muros) e de portas. A metáfora da porta ocupa um papel privilegiado na ficção saramaguiana: tem uma função semelhante à do muro, privilegiando atmosferas de huis clos (em A caverna as portas do Centro fazem com que este se assemelhe a um forte, em Ensaio sobre a cegueira são as portas que dificultam a fuga dos cegos-prisioneiros do manicómio), mas é sobretudo a entrada na esfera do poder (o incipit de Todos os nomes é uma descrição da porta da Conservatória Geral e a figura de resistência de O conto da ilha desconhecida nunca transpõe as portas) ou a saída desse espaço (como a "misteriosa porta secreta" em A caverna , que conduz o oleiro à verdade, sendo por isso vigiada pelo poder).

É sobretudo a análise dos traços da luta entre as margens e o poder autorizado que interessa a Saramago 7 . Contrariamente às figuras afins à esfera do poder, essas personagens marginais (também no sentido de periféricas), compreendem a sua "humanidade" em termos de solidariedade - não estando muito aquém deste conceito na filosofia cristã. Apesar de não existir um pensamento dessacrali­zado na ficção saramaguiana 8 , a "salvação" não chegará, no entanto, de nenhuma transcendência, como é salientado num comentário do narrador de A caverna :

 

[...] na verdade, por mais que historicamente se tenha exagerado em afirmações contrárias, o céu nunca foi muito de fiar. A caverna , 2000: 44.

 

Em Ensaio sobre a cegueira , quando o grupo de cegos entra na Igreja, depara com as figuras dos santos com os olhos vendados. Só por uma falta de acompanhamento do homem por Deus, e pela racionalidade humana, se poderia ter atingido o grau de barbárie como a descrita neste romance. Em A caverna , a verdade reside não nos assentos etéreos junto aos deuses, tal como fomos habituados desde a Antiguidade, mas sim nas profundezas da gruta descoberta pela figura de resistência. Não será dos céus que provirá a ajuda, pois Deus não pode ou não quer olhar para o homem: no final de Ensaio sobre a cegueira o céu está branco, como se o espaço divino tivesse sido ele próprio igualmente atingido pela cegueira branca e já não oferecesse nenhum olhar aos homens:

 

A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco [...] Ensaio sobre a cegueira , 1995: 310.

 

Se a transcendência se desresponsabiliza do destino do homem, quem chama a si as funções espirituais é a esfera do poder. Em A caverna , o "Centro", um não-lugar, na acepção de Marc Augé, espaço transitório de circulação acelerada de pessoas e bens, pretende chamar a si o valor simbólico de "centro", enquanto lugar do sagrado e da realidade absoluta. A cidade mostra-se aqui plástica e fascinantemente transitória (espaço da reprodução permanente) 9 e é o "Centro" que acumula em si os valores da civilização - espiritualidade, poder, dinheiro, mercadoria e a palavra - que Roland Barthes apontou em " Centre-ville, Centre vide " como afins ao centro da cidade 10 . O "Centro" aparece grafado com maiúscula, não só de forma a distinguir-se do vulgo centro comercial e do centro da cidade, mas por ser capital, não só enquanto edifício de acumulação de capital e entidade imprescindível, mas sobretudo porque surge como o novo "Deus" da já não tão nova religião do consumismo, ícone e figura totalitária, cuja imagem é necessário cultivar com propaganda. O seu discurso hegemónico denuncia, através de uma retórica oficial oca dos seus colaboradores, a sua vontade de assumir significação em termos espirituais, como se denota em uma das "informações" dadas por um empregado do Centro ao oleiro Cipriano Algor:

 

[...] o Centro, como perfeito distribuidor de bens materiais e espirituais que é, [...] participa da natureza do divino [...] a vida pôde ganhar um novo sentido para milhões e milhões de pessoas que andavam por aí infelizes, frustadas, desamparadas, e isto, quer se queira ou não, [...] não foi obra de matéria vil, mas de espírito sublime [...] A caverna , 2000: 292.

 

Em Ensaio sobre a cegueira , com a situação-limite de epidemia, é imposta uma quarentena pelas autoridades que, à semelhança da anti-utopia de Orwell ( 1984 ), permanecem veladas, provindo as indicações de um altifalante. Se neste romance a voz do poder ainda se encontra presente e em Todos os nomes a face do poder executivo ainda é visível, em A caverna o poder já se encontra muito mais disseminado, mas nem por isso é menos efectivo. Semelhantemente a Memorial do convento , em que as relações hierárquicas da época setecentista são parodiadas na deificação do clero e da nobreza (Ornelas, 1996: 120), em A caverna , os anúncios publicitários, as novas iconografias do poder, cultivam a imagem e o mito do Centro, reforçando a esfera do poder, semelhantemente à imagem do Big Brother de Orwell.

Num dos espaços do poder em Ensaio sobre a cegueira - o manicómio (para onde os cegos são transportados por decisão das autoridades), forma-se um grupo liderado pela mulher do médico que o guia pela mão, tornando-se para os outros o fio de Ariadne no labirinto caótico em que o mundo se transformou após o aparecimento do "mal branco". O caminho da salvação - no sentido de iniciação mas também no literal do termo - para as figuras de resistência passa imprescindivelmente pela solidariedade no grupo.

Em Todos os nomes, após a personagem do José "sair de si" e iniciar o seu percurso, há o encontro consigo próprio. O reconheci­mento do caos chega quando encontra o pastor no cemitério e compreende a troca das tabuletas. Em Ensaio sobre a cegueira ainda se queria a ordem de ter "os mortos no seu lugar de mortos e os vivos no seu lugar de vivos", mas em Todos os nomes a Conservatória Geral do Registo Civil é tão-só a outra face do Cemitério Geral, porque este já aglutinou os outros espaços: a Conservatória, a escola, a cidade e a própria vida 11 .

É nesses ambientes claustrofóbicos e labirínticos, que as figuras de resistência, numa ânsia de liberdade, encetam a "viagem" iniciática até chegarem ao reconhecimento, condição sine qua non para inaugurarem a sua viagem "real" utópica, que ainda não acontece em Ensaio sobre a cegueira .

O topos da viagem que se prepara ou se enceta (e que nos conduz para a esfera da utopia), continua a ser recorrente em Saramago, adquirindo nesta trilogia, todavia, outras feições. Em Ensaio sobre a cegueira , a viagem do grupo em quarentena até ao manicómio e a posterior peregrinação pela cidade funcionam como uma iniciação para as personagens. É durante a viagem pela cidade que as figuras se encontram a si próprias, após percorrerem o doloroso caminho do autoconhecimento e reconhecimento posterior: "Penso que não cegámos, penso que estamos cegos". Em Todos os nomes a caminhada faz-se palmilhando a Conservatória Geral, a escola que a "mulher" frequentou e o Cemitério Geral , antes do reconhecimento pela figura, condição indispensável para encetar a viagem em direcção à utopia:

 

[...] abriu a gaveta onde o esperavam a lanterna e o fio de Ariadne. Atou uma ponta do fio ao tornozelo e avançou para a escuridão.

Todos os nomes , 1997: 279.

 

O último painel do tríptico - A caverna - é uma peça di­ferente. O topos da viagem abre logo o romance: Cipriano Algor efectua o trajecto do povoado, onde tem uma olaria familiar, até ao Centro. Aqui já não é uma viagem com o sentido de iniciação dos outros romances, pois trata-se de um trajecto quotidiano e o oleiro parece não ter nada mais a descobrir nestas paragens. É, aliás, a voz do narrador quem nos introduz aos espaços vários: Cintura Agrícola, Cintura Industrial, barracas, terra de ninguém, periferia da cidade, cidade e por fim o Centro.

O oleiro, personagem representativa da "verdade" 12 , é a única figura de resistência desse tríptico que, para chegar ao reconhecimen­to, não passa por uma iniciação (apesar de se espantar com a rapidez com que o Centro devora a cidade), mas por um esforço de se integrar na realidade do simulacro. Quando o Centro lhe comunica que já não necessita dos seus produtos, tenta, não criar, mas produzir novos artigos. Com a ajuda da filha faz bonecos de barro - algo na intersecção entre os seus produtos de barro originais e o simulacro do Centro. Uma segunda tentativa acontece quando o genro é pro­movido a guarda residente, passando a família Algor - Cipriano, filha e genro - a viver num apartamento dentro do Centro. O reconhecimento dar-se-á contudo pouco depois com a "descoberta": no piso -5 do Centro é encontrada uma gruta similar à descrita por Platão na sua alegoria da caverna. Mas, contrariamente à narrativa platónica, a entrada da gruta saramaguiana já não está aberta à luz, os prisioneiros estão mortos e a fogueira apagada.

Nos três romances da trilogia, assim como em O conto da ilha desconhecida , há um afunilamento gradual do projecto utópico: enquanto em Ensaio sobre a cegueira o gérmen da utopia ainda passa por um grupo coeso e solidário, a tónica é colocada, a partir de O conto da ilha desconhecida , na unidade mais ínfima da sociedade, ou seja, o afecto que liga um homem e uma mulher. A solidariedade parece corresponder à experiência humana do amor em células de dimensões reduzidas, o que representa um projecto muito mais modesto do que em outras fases da ficção de Saramago. A estrutura privilegiada em A caverna mantém-se entre personagem feminina/ masculina mas, para além da célula conjugal, releva-se a relação pai/filha. O lugar privilegiado da família é compreensível, pois é esta estrutura que irá estar em directa oposição ao Centro - enquanto simulacro da cidade -, uma vez que a fundação da polis veio destruir todas as unidades organizadas numa base de parentesco.

Em O conto da ilha desconhecida , apesar de haver inicialmente um projecto utópico megalómano de encontrar a ilha desconhecida por parte da figura de resistência (que provém de um espaço fora da esfera do poder), aquele reduzir-se-á no final a um projecto de indivíduos. Será unicamente no pequeno grupo coeso e solidário, composto por ele e pela mulher da limpeza, que a personagem conseguirá efectivamente encontrar algo, após sair de si ("se não sais de ti, não chegas a saber quem és") e da "viagem" com o outro (a mulher), e consequente encontro com o amor: o reconhecimento da possibilidade de concretização da utopia em pequenos moldes, após constatada a impossibilidade de realização de uma utopia mais englobalizante (encontrar a ilha desconhecida munido de uma grande equipa e de um barco de grandes dimensões como a caravela): viajar com o "outro" em um barco que se baptizou de Ilha Desconhecida .

O afunilamento do projecto utópico não passa unicamente pela redução do número de personagens de resistência, mas principal-mente pela viabilidade da utopia. A entrada de José na escuridão em Todos os nomes e a entrada da família Algor na viagem em direcção ao outro lugar em A caverna , conferem outros contornos à trilogia. Aqui já não existem passarolas que voam como em Memorial do convento , nem unicamente uma viagem iniciática com reconheci­mento posterior, como em Ensaio sobre a cegueira .

A utopia, que na realidade ficcional saramaguiana surgia como um espaço possível, parece agora só existir no domínio do textual-mente possível em Todos os nomes e A caverna . A vontade humana continua a mover as personagens, a probabilidade daquele espaço se tornar real, porém, é cada vez mais inverosímil. Em A caverna , o grupo familiar prepara a viagem mesmo tendo consciência da im­portância da descoberta na gruta e de que a expansão da esfera do poder é incontrolável:

 

[.] o Centro cresce todos os dias mesmo quando não se dá por isso, se não é para os lados, é para cima, se não é para cima, é para baixo [.]
A caverna , 2000: 281.

Apesar de só a primeira peça ser designada cabalmente de ensaio ( Ensaio sobre a cegueira ), todos os romances da trilogia podem ser entendidos como um estudo sobre a matéria humana neste tempo. Neste momento, é a natureza humana que mais parece interessar a José Saramago:

 

[...]já não é a estátua que me interessa, mas a pedra que a fez [...]. Estes três últimos livros são tentativas de ir além da superfície, ver o que está lá dentro e, provavelmente, perder-me no seu interior [...] 13

 

Ou seja, invertendo a ordem natural da escultura, passar da estátua lapidada e da sua descrição para incisões violentas a cinzel na pedra até lhe olhar para dentro e chegar à verdade. "Cavar" a pedra pressupõe uma busca que não poderá ser feita à superfície, pois terá que acontecer a um outro nível. Em A caverna , o exercício de escavação não se restringe à actividade das máquinas que levará à descoberta da gruta no piso - 5 do Centro, pois este trabalho está presente a um outro nível do texto: no da própria memória literária. Nessas alegorias moralizantes e didácticas coabitam não só palimpsestos de familiares universos platónicos, kafkianos, borgianos e camusianos, com seus labirintos e huis clos , mas também outras fases da produção ficcional saramaguiana. Desde Manual de pintura e caligrafia , romance no qual a pintura dá gradualmente lugar à escrita na aprendizagem do pintor, como que num regresso à ideia horaciana de uma irmandade entre a pintura e a escrita 14 , que o entrosamento desses dois ofícios é um fio condutor na narrativa de Saramago. A forte visualidade das descrições saramaguianas faz o leitor imaginar-se por vezes diante de uma tela: focalizam­se os pormenores antes do alargamento da imagem, como numa necessidade de clareza de pormenores no estudo. O incipit de Todos os nomes é, ilustradoramente, a descrição da porta da Conservatória Geral do Registo Civil:

 

Por cima da moldura da porta há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registo Civil. O esmalte está rachado e esboicelado em alguns pontos. A porta é antiga, a última camada de pintura castanha está a descascar-se, os veios de madeira, à vista, lembram uma pele estriada. Todos os nomes , 1997: 11.

 

Na imagem inicial de Ensaio sobre a cegueira dos carros que, como "cavalos nervosos", esperam pela cor certa nos semáforos, para além da ideia do desenfreamento da nossa sociedade actual, é accionada no leitor a associação cores/imagens, com o vermelho para parar, verde para andar ou amarelo para acelerar. Neste "quadro" surge o primeiro caso de cegueira, o "mar de leite", num mundo regido pela visão. O branco, cor privilegiada em Ensaio sobre a cegueira é o dos ritos de passagem, do renascimento para uma nova vida, em que, depois do reconhecimento, se utilizariam os olhos pela primeira vez. Mas branca também é a luz que guia o José de Todos os nomes ou o Cipriano de A caverna , quando estes mais necessitam de claridade para abrir o caminho no escuro do labirinto ou da caverna. Nessa trilogia há um afastamento progressivo do branco (apesar de o próprio branco não ser mais do que uma forma luminosa do nada) e um caminhar para o negro. Esta leitura a um outro nível do tecido textual confirma que as imagens da morte vencem gradativamente as da utopia na escrita saramaguiana. Enquanto em Ensaio sobre a cegueira ainda se afirma "Ainda estamos meio vivos" e enterrando o cadáver carcomido de uma mulher, o grupo assegura a ordem "que quer os mortos no seu lugar de mortos e os vivos no seu lugar de vivos", em Todos os nomes a morte já se confunde com a vida, pois a própria vida conflui para o Cemitério Geral 15 :

 

Com tempo e paciência cá virão parar todos, a Conservatória do Registo Civil, bem vistas as coisas, não passa de um afluente do Cemitério Geral. [...] as relações entre os funcionários da Conser­vatória e do Cemitério são claramente amistosas, (de mútuo respeito, porque, no fundo, além da colaboração institucional a que estão obrigados pela comunidade formal e contiguidade objectiva dos seus respectivos estatutos) sabem que andam a cavar nos dois extremos da mesma vinha, esta que se chama vida e está situada entre o nada e o nada. Todos os nomes , 1997: 218.

 

Depois de em Ensaio sobre a cegueira , Todos os nomes e O conto da ilha desconhecida , as peregrinações, nas quais se efectua uma espécie de maiêutica, conduzirem as figuras de resistência ao reconhecimento, as trevas parecem ser finalmente radiografadas em A caverna com a descoberta dos três homens e três mulheres mortos na gruta.

Em " Des espaces autres ", Foucault introduz o conceito de hete­rotopia em oposição ao de utopia, como um contra-lugar a partir do qual se questiona e subverte o presente, e refere como função da heterotopia, o criar um espaço que denunciaria ainda como mais ilusório o espaço real, isto é, todos os espaços onde a vida humana se encontra encarcerada 16 . A caverna, se não dá às figuras de resistência

o acesso à "verdade" (segundo a interpretação de Hans Blumenberg da alegoria, ela já é uma construção plástica relativamente à esfera do natural), possibilita-lhes pelo menos verem a sua imagem no espelho (apesar de continuarem sem saber onde estão), para utilizar mais um termo foucaultiano. A caverna denuncia duplamente o espaço da polis e, ainda mais gritantemente, o próprio Centro, o espaço do simulacro.

Se na trilogia a luz cede gradualmente o lugar às trevas e se abdica cada vez mais de utopias em favor de heterotopias, o que parece ainda restar é a esperança do outro lugar, concretizável na literatura. Em Saramago, as figuras de resistência poderão, através da viagem "real" utópica encetada, viver a sua individualidade em pleno, ainda que no simulacro 17 . A capacidade de o ser humano transformar e renovar o mundo já não é verossímil, mas acredita-se que o homem ainda possa crer no outro espaço e daí talvez nascer algo. A esperança que restou no fundo da caixa de Pandora, que dá asas ao sonho e à utopia, continua a ser a impulsionadora do homem, mesmo se este já constatou a verdade que receava - a inexistência do espaço utópico. Mas enquanto o outro lugar existir como possibilidade de nomeação, a busca fará sempre parte da natureza humana em todos os espaços.

 

Referências bibliográficas

1. Obra

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira . Lisboa: Caminho, 1995.
---. Todos os nomes . Lisboa: Caminho, 1997.
---. O conto da ilha desconhecida . Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
---. A caverna . Lisboa: Caminho, 2000.
---. O homem duplicado . Lisboa: Caminho, 2002.

2. Crítica

ARENDT, Hannah. The human condition . Chicago: Chicago University Press, 1958.

____________ . A condição humana . Lisboa: Relógio D'Água, 2001.

AUGE, Marc. Non-lieux : introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Éditions du Seuil, 1992.

BARTHES, Roland. "Centre-ville, Centre vide". In: L'empire des signes . Paris: Flammarion, 1970.

BLUMENBERG, Hans. Licht als Metapher der Wahrheit. In Vorfeld der philosophischen Begriffsbildung. Studium Generale . Zeitschrift für interdisziplinäre Studien, n° 10, 1957, p. 432-47.

BRECHT, Bertolt. Von Bertolt Brecht . Gedichte. vol. III. Berlin: Aufbau Verlag, 1973.

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits . vol. IV (1980-1988). Paris: Gallimard, 1994.

GAGO, Carla. A "banalidade do mal" em Ensaio sobre a cegueira de José Saramago. In: Briesemeister/ Schönberger (ed.). Von José Saramago, Fiama Hasse Pais Brandão und dem Sexameron : zur Literatur der neunziger Jahre in Portugal und Brasilien . Frankfurt am Main: TFM, 1999, p. 39-50.

GAUDEMAR, Antoine de. Saramago concede um prémio ao Nobel. "Camões". Revista de Letras e Culturas Lusófonas , n° 3 (Out.- Dez. 1998), p. 42-4.

LUÍS, Sara Belo. O centro comercial é a nova Universidade. Visão , 26.10.2000, p. 19-22.

ORNELAS, José. Resistência, espaço e utopia em Memorial do convento de José Saramago. Discursos - Estudos de língua e cultura portuguesa, n° 13 (Out. 1996), p. 115-33.

PIRES DE LIMA, Isabel. Dos "anjos da História" em dois romances de Saramago ( Ensaio sobre a cegueira e Todos os nomes ). Colóquio/Letras 151/ 152 (Jan.-Jun. 1999), p. 415-26.

SEIXO, Maria Alzira: O essencial sobre José Saramago . Lisboa: Imprensa Nacional, 1987. VIEGAS, Francisco José. Uma biografia de Jesus, segundo José Saramago. Ler , n° 16 (Outono 1991), p. 26-34.

 

Notas de Rodapé

1 O próprio autor define os três romances como uma trilogia: "Dou-me conta que, com este romance [ A caverna ], fecho a trilogia iniciada com Ensaio sobre a cegueira e Todos os nomes . Aparentemente, os temas dos três livros não têm nada em comum: no primeiro, é a cegueira da razão; no seguinte, é a procura do outro, e o último insiste sobre a imobilidade do espírito num mundo onde a única mobilidade é de ordem tecnológica. Mas no fundo, há algo comum: que maneira é esta de viver? O que estamos nós a fazer?" in Gaudemar, 1998: 44.

2 Quando recupera a memória da perspectiva periférica, José Saramago dá continuidade a um filão brechtiano, no qual se navega contra a maré dos grandes que constam da História. No poema "Fragen eines lesenden Arbeiter" (Perguntas de um trabalhador que lê) de 1935, questiona-se quem é que realmente construiu a Tebas das sete portas, a Babilónia várias vezes destruida, se foi César sozinho que venceu os gauleses e se Filipe de Espanha chorou solitariamente aquando da derrota da Invencível Armada: " Wer baute das siebentorige Theben?/ In den Büchern stehen die Namen von Königen./ Haben die Könige die Felsbrocken herbeigeschleppt?/ Und das mehrmals zerstörte Babylon -/ Wer baute es so viele Male auf? [...] Cäsar schlug die Gallier./ Hatte er nicht wenigstens einen Koch bei sich?/ Philipp von Spanien weinte, als seine Flotte/ Untergangen war. Weinte sonst niemand?/ Friedrich der Zweite siegte im Siebenjähigen Krieg. Wer/ siegte außer ihm?/ Jede Seite ein Sieg./ Wer kochte den Siegesschmaus?/ Alle zehn Jahre ein großer Mann./ Wer bezahlte die Spesen?/ So viele Berichte./ So viele Fragen ." in Brecht, 1973: 251-252.

3 Pires de Lima, 1999: 416.

4 Arendt, 1958: 10.

5 Gago 1999: 46.

6 Hanna Arendt cita ilustrativamente Kafka quanto a esta questão: " Er hat den archimedischen Punkt gefunden, hat ihn aber gegen sich ausgenutzt, offenbar hat er ihn nur unter dieser Bedingung finden dürfen ." (ele encontrou o ponto arquimediano mas empregou-o contra si mesmo; ao que parece, esta era a condição para que ele o encontrasse) in Arendt, 2001: 311.

7 Ornelas, 1996: 116.

8 A este respeito, Saramago refere numa entrevista que "para se ser ateu como eu sou, deve ser preciso um alto grau de religiosidade" in Viegas, 1991: 32.

9 A luta pelo poder é sempre uma disputa entre a memória e o esquecimento. Num mundo que anula constantemente o passado com reproduções, a memória não é possível: "Olhou para os prédios que estavam a ser arrasados.[...] Quando daqui a dez dias vier recolher o genro não haverá qualquer vestígio destes prédios, terá assentado a poeira [...] Depois levantar-se-ão as três paredes, uma que lindará com a rua por onde Cipriano Algor terá de dar a volta daqui a pouco, duas que cerrarão de um lado e do outro o terreno ganho à custa da rua intermédia e da demolição dos prédios [...] não serão precisos muitos dias para que nem a pessoa mais perspicaz seja capaz de distinguir, olhando de fora, e muito menos o perceberá se estiver no interior do edifício, entre a construção recente e a construção anterior" in A caverna, 2000: 18-19.

10 Roland Barthes, 1970: 43.

11 Pires de Lima, 1999: 424.

12 Em oposição à cópia e ao simulacro do espaço do Centro, na medida em que o material que trabalha, a argila, é a imagem do "natural, que lhe veio da natureza".

13 Luís, 2000: 21.

14 Maria Alzira Seixo classifica sintomaticamente Manual de pintura e caligrafia de "cadinho de elaboração de todas as tendências pré-ficcionais de José Saramago". in Seixo, 1987: 28.

15 Pires de Lima, 199: 424.

16 Foucault, 1994: 363.

17 O novo romance de José Saramago, O homem duplicado , parece vir confirmar esta questão quando apresenta, na tradição literária do duplo, um professor de história e seus simulacros. A "cópia" morre num acidente juntamente com a namorada do "original" e este assume o casamento do seu duplo com o consentimento da mulher deste. Quando, no final do romance, entra um novo duplo em cena, a personagem parece partir para a viagem real "utópica", que implicaria o assassínio de novos duplos para defender o seu "outro espaço".