Sumário

Jacques Pedreira: melhor que ser é parecer ter

Giovanna Dealtry
PUC-Rio

A superfície era sua única profundidade
e sua única realidade possível - seu destino Patrice Bollon,
A moral da máscara

Em 1888, o Brasil defrontava-se com um sério problema: o que fazer com o enorme contingente de ex-escravos que vagava pelas ruas do Rio de Janeiro sem ter emprego ou moradia? Como controlar a ira das elites urbanas que queriam não somente apagar da memória o passado escravista, mas também expulsar das ruas do centro da cidade estas figuras maltrapilhas? Era necessário, portanto, tomar medidas enérgicas que afastassem desta cidade, que se desejava espelho de Paris, o fantasma da desordem.

•  Nesse mesmo ano, o ministro Ferreira Vianna apresenta à Câmara dos Deputados um projeto de repressão à ociosidade, com o claro objetivo de controlar os libertos e, assim, adaptá-los às novas regras de trabalho de uma futura sociedade capitalista. Desse ponto de vista, não era estranho que um dos parlamentares, o deputado Mac-Dowell, pronunciasse tais palavras em apoio ao citado projeto:

 

Votei pela utilidade do projeto, convencido [...] de que hoje, mais que nunca, é preciso reprimir a vadiação, a mendicidade desnecessária, [...] a lei produzirá os desejados efeitos compelindo­se a população ociosa ao trabalho honesto, minorando-se o efeito desastroso que fatalmente se prevê como conseqüência da libertação de uma massa enorme de escravos, atirada no meio da sociedade civilizada, escravos sem estímulos para o bem, sem educação, sem os sentimentos nobres que só pode adquirir uma população livre e finalmente será regulada a educação dos menores, que se tornarão [...] cidadãos morigerados, servindo de exemplo e edificação aos outros da mesma classe social. (Brandão et al., 1981, p. 259-60).

 

A partir desse breve discurso podemos aferir quais eram as novas diretrizes do país. Em primeiro lugar, era necessário criar uma nova "moral" para o trabalho; melhor, era preciso transformar a antiga máxima que regia nossos campos e cidades de que "o trabalho manual é pouco dignificante, em confronto com as atividades de espírito" (Hollanda, 1988, p. 83). Pelo menos, aparentemente, era preciso estabelecer uma nova equação em que o "trabalho honesto" - independentemente da remuneração ou das condições de tratamento - despertasse no recém-liberto o amor à pátria e à ordem. Na prática, a "educação" apregoada pelo nobre deputado traduz-se no uso da força e da coerção, medidas não muito diferentes das utilizadas pelos senhores de engenho. Assim, os ociosos eram levados a colônias de trabalho, preferencialmente colônias agrícolas, onde eram "internados com o objetivo de adquirir o hábito do trabalho" (Chalhoub, 1986, p. 44). O tempo de estadia variava, sendo que os reincidentes poderiam ficar internados por até três anos.

O mais interessante é notar quais eram as condições para identificar os ociosos realmente prejudiciais à sociedade. Para que o crime de vadiagem fosse caracterizado era necessário comprovar o hábito e o caráter indigente do indivíduo em questão.

 

Se um indivíduo é ocioso mas tem meios de garantir sua sobrevivência, ele não é obviamente perigoso à ordem social. Só a união da vadiagem com a indigência afeta o senso moral, deturpando o homem e engendrando o crime. Fica claro, portanto, que existe uma má ociosidade e uma boa ociosidade . (Id., p. 47.) (Grifos meus.)

 

Torna-se óbvio, a partir dessa definição de vadiagem, que o Brasil dos últimos dias do Segundo Reinado se quer um país dentro da ordem burguesa do capital, sem contudo abrir mão das diferenças sociais e do favorecimento dos poderosos. Essa medida disciplinadora dos ociosos revela apenas um dos múltiplos mecanismos de repressão - nesse caso o legislativo - pelos quais as elites políticas e intelectuais tentaram, a todo custo, apagar das ruas e da memória brasileira o mau ocioso .

Assim, a finalidade é praticamente a mesma no projeto de lei apresentado pelo ministro Ferreira Vianna em 1888; na proibição das fantasias de índios durante os carnavais da Belle Époque , ou nas crônicas de Olavo Bilac publicadas na Revista Kosmos e na Gazeta de Notícias : instaurar uma nação moderna só é possível com a exclusão física e simbólica do passado e do indivíduo degenerador da - suposta - ordem. A partir dessa perspectiva, é fácil entender os motivos que subitamente levam o índio romântico a desaparecer de cena e, em seu lugar, ser engendrado uma imagem pacificadora e inclusiva do ex-escravo.

 

É sempre em vão que os malucos ou os perversos procuram fazer vibrar, em nosso organismo, a corda que não possuímos, a corda áspera e gritadora da intolerância. Há no fundo do nosso caráter um rico depósito de bondade e de bom senso: a raça portuguesa, com a sua sensatez, com a sua prudência, com o seu fecundo amor do trabalho e da paz, aliou-se bem à raça negra, - à raça entre todas boa, resignada e mártir. A raça primitiva do Brasil quase não entrou nessa operação de química social, de que saiu nossa nacionalidade: nós temos muito pouco de sua malícia, de sua astúcia, de sua fria dissimulação. Somos lisos, confiantes, pacientes e bons (Bilac, Gazeta de Notícias , 13 dez.1903).

 

Na equação progressista traçada por Bilac deslocam-se interna­mente os elementos constituidores de cada signo. O índio romântico, valoroso e fiel para homens como José de Alencar, torna-se sinônimo de um país "atrasado" e de um brasileiro - vagabundo, preguiçoso, dissimulado - que é preciso eliminar do imaginário da nação. Em seu lugar, entra o negro liberto, que na ficção bilaquiana, ganha ares de herói da nação, posto anteriormente ocupado por índios como Peri.

Nesse sentido, o passado transforma-se numa narrativa não fixa, mas permeável pelos interesses do tempo presente. Ao (re)cons-truir o passado de determinado povo, Bilac "esquece" e "lembra" - conscientemente ou não - de determinadas informações, fatos e interpretações. Dessa forma, ajuda a dar voz a uma narrativa que se inscreve tanto no tempo histórico quanto no mítico (Cf. Dealtry, 2003, p. 191). Bilac utiliza-se aqui de um processo semelhante ao usado pelo historiador francês Ernest Renan ao ensaiar responder à questão "O que é uma nação?".

 

Ela supõe um passado; resume-se, porém, no presente, por um fato tangível: o consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a vida em comum. A existência de uma nação é (perdoem-me a metáfora) um plebiscito cotidiano, como a existência do indivíduo é uma perpétua afirmação da vida (Renan, 1997, p. 40).

 

A nação não seria algo natural , inerente ao homem, mas dependeria exclusivamente da vontade deste para se perpetuar. Nesse sentido de afirmação da vida, é preciso que a vontade pessoal torne-se coletiva e que se reescreva continuamente esse narrar. Como diz Homi Bhabha a respeito de Renan: "É a vontade que unifica a memória histórica e assegura o consentimento de cada dia. A vontade é de fato a articulação do povo-nação." (1998, p. 225) É na vontade do esquecer para elaborar uma nova memória narrada que se suprimem os atos de violência e instaura-se uma memória, no dizer de Bhabha, pedagógica, construtora de uma nação sem conflitos. Bilac ensaia a mesma vontade ao inverter os significantes do índio e do negro no imaginário da nação. Na construção da nação moderna, voltada para o futuro e o progresso, não é mais necessário buscar no passado uma fictícia aristocracia indígena fundada durante o Império. Pelo contrário, é necessário apagar as marcas deixadas pela colonização portuguesa e pelos românticos, se quisermos nos equiparar ao novo ideal de modernidade simbolizado pela Paris de Haussman e pelo mundo do trabalho.

Dessa forma, é possível compreender a posição que Olavo Bilac e outros jornalistas assumem diante desses "maus ociosos", sejam eles os míticos índios, os negros rebeldes ou simplesmente a turba ignorante que ensaia escapar a essa imagem de nação não contraditória para agir de maneira desviante em relação à norma estabelecida pelas elites dominantes. Seja durante a Festa da Penha, reduto de músicos negros e mestiços,

 

Devo confessar que a Festa da Penha nunca me pareceu tão bárbara como este ano. É que esses carros e carroções, enfeitados com colchas de chita [...] e cheios de gente ébria e vociferante [...]; esse alarido, esse tropel de povo desregrado - todo esse espetáculo de desvairada e bruta desordem ainda se podia compreender no velho Rio de Janeiro de ruas tortas, de becos sórdidos. Mas no Rio de Janeiro de hoje, o espetáculo choca e revolta como um disparate [...] (Bilac, apud Bandeira e Andrade, 1965, p. 74).

 

ou durante a Revolta da Vacina,

 

Quando cheguei à Avenida, ao meio dia, os operários, tendo em vão tentado resistir às ameaças das feras, recolhiam às pressas as suas ferramentas [...] Era o medo pânico do trabalho diante da calaçaria amotinada, era a fuga da civilização diante da barbárie vitoriosa. [...] a rapina vencia a indústria; a ferocidade triunfava do labor (Id., Gazeta de Notícias , 20 nov. 1904).

 

Em suma, qualquer manifestação do sujeito é imediatamente interpretada como resquícios de um passado vergonhoso ou como uma revolta localizada de uns poucos desocupados e vadios contra a "civilização", nunca como um reflexo das diferenças e contradições culturais da sociedade. Por outro lado, vemos que só é possível ao indivíduo destacar-se da entidade povo - e assim ganhar direito a uma certa visibilidade, que nem sempre é sinônimo de tolerância - pelo caráter marginal de seus gestos, aí incluindo o próprio ócio. Meio século antes da publicação das crônicas de Bilac, já era claro aos leitores dos jornais como o ócio dos homens livres torna-se, no Brasil, um problema a ser combatido igualmente pela polícia como mostra Memórias de um sargento de milícias . Levando uma vida de completo vadio, Leonardo é denunciado ao major Vidigal que o prende durante uma "patuscada". Diante da célebre pergunta: "mas que mal ele fez?", o Major é taxativo: " - Ele nem fez nem faz nada ; mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede." (Almeida, op. cit., p. 117 - ênfase no original.)

O ocioso que irá, em nossa literatura, ter seu caminho imbricado ao do malandro, constitui um meio de questionamento tanto para uma sociedade escravista como a de Memórias , como para a do início do século XX, que deseja transformar o trabalho com bases no capital em elemento controlador das massas livres. Não se opera no Brasil, como acontece nos Estados Unidos de Max Weber, a transformação do trabalho em ethos que alicerça o ascetismo calvinista, o puritanismo e a economia. (Cf. Chauí, 1999, p.13).

 

Esse ascetismo secular do protestantismo [...] opunha-se, assim, poderosamente, ao espontâneo usufruir das riquezas, e restringia o consumo, em especial o do luxo. Em compensação, libertava psicologicamente a aquisição de bens das inibições da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas a legalizou, como também a considerou (no sentido aqui exposto) como diretamente desejada por Deus (Weber, 2001, p. 93).

 

O trabalho, nesse modo de ver, surge como "um freio para as nobres paixões do homem", como nos fala Paul Lafargue. (1999, p. 70). A preguiça, tida como origem de todos os males, é fator a ser expiado. Na visão protestante, quanto mais se trabalha mais próximo de Deus e da verdadeira missão do homem se está. O ócio ganha então um aspecto ainda mais terrível, literalmente, diabólico. Desse quadro fazem parte "as figuras do índio preguiçoso e do negro indolente, construídas no final do século XIX, quando o capitalismo exigiu a abolição da escravatura e substituiu a mão-de-obra escrava pela do imigrante europeu, chamado trabalhador livre" (Chauí, 1999, p.10).

Contra esse trabalho exaustivo, massacrante, capaz de extinguir com a alegria de viver do homem, é que se levanta Paul Lafargue, para quem só o direito à preguiça é capaz de restituir a sanidade ao trabalhador europeu obcecado pela produção em série e incapaz de consumir o que produz.

 

Mas para que tenha consciência de sua força, é preciso que o proletariado pisoteie os preconceitos da moral cristã, econômica e livre-pensadora; é preciso que volte a seus instintos naturais, que proclame os Direitos à Preguiça, mil vezes mais nobres e mais sagrados que os tísicos Direitos do Homem, arquitetados pelos advogados metafísicos da revolução burguesa. É preciso que ele se obrigue a não trabalhar mais do que três horas por dia, não fazendo mais nada, só festejando, pelo resto do dia e da noite (Lafargue, op. cit., p. 84).

 

As imagens do Brasil estabelecidas no início do século XIX repousam entre essas duas acepções de trabalho e para cada uma delas surge uma nova concepção de brasileiro. Por um lado, é necessário comparecer à nova ordem mundial munido dos ditames civilizatórios do capitalismo, e um dos representantes desse pensar, sem dúvida, será Olavo Bilac que constrói nas páginas dos diários uma nova imagem para o brasileiro ligado ao progresso.

 

[....] o carioca de hoje, o carioca que está morrendo de coréia, o carioca festeiro e delirante, - fininho, pálido, inquieto, febril, trêmulo como uma figurinha de cinematógrafo, usando óculos de chauffer , calção e sapato de jogador de foot-ball , e tendo na mão direita um foguete comemorativo e na esquerda um carnet de baile [...] (Bilac, Gazeta de Notícias , 20 out.1907).

 

Por outro lado, temos uma elite dominante que vê no trabalho braçal uma atividade humilhante e, nos constantes festejos das classes populares, uma celebração perigosa da liberdade. E igualmente encontramos intelectuais, à semelhança de Lafargue, que vêem no modo de vida da sociedade burguesa uma constante exploração de nossas classes trabalhadoras. Aqui, Lima Barreto será o mestre.

 

Encarando a burguesia atual de todo o gênero os recursos e privilégios de que se dispõe como sendo unicamente meios de alcançar fáceis prazeres e baixas satisfações pessoais e não se compenetrando ela de ter para com os outros deveres de todas as espécies, falseia sua missão e provoca a sua morte. Não precisará de guilhotina [...] (Barreto, 1993, p. 108).

 

Interessante é perceber que, ao contrário do que acontece em nações de origem puritana, o crescimento da burguesia no Brasil não necessariamente implicará uma maior absorção dos vadios e vagabundos pelos meios de produção. Esse sujeito ocioso continuará a ter seu espaço na sociedade, seja devido à migração de trabalhadores estrangeiros, à inadequação dos ex-escravos aos novos ditames sociais ou à permanência desse "sintoma" de nossa cultura, para retomar Mário de Andrade e o mais lafarguiano dos nossos personagens: Macunaíma. É este último o aspecto que aqui mais me interessa. Esse "Ai, que preguiça!" que parece sair das páginas do modernismo paulista e espalhar-se, rompendo a linha temporal, por diversos momentos da nossa literatura; desde de Leonardo, de Memórias , até o personagem principal de Canoas e marolas , de João Gilberto Noll 1 .

Entretanto, o ócio não será apenas uma prerrogativa das classes populares. Interessa-me aqui investigar as relações entre ócio e malandragem na "gente de cima", como são nomeadas por João do Rio as nossas elites. Interessa-me aqueles personagens que se utilizam de enganos, chantagens, favorecimentos pessoais, mas que, por não pertencerem à esfera marginal carioca, raramente recebem a alcunha de "malandro". Ou que são vistos, como o malandro "que nunca se dá mal", representantes do capital, antagonistas do malandro oriundo das classes populares.

Entretanto, passados os anos de ditadura, em que era necessário recuperar a imagem do brasileiro malandro, explorando com malícia as frestas da censura e da opressão, não nos é possível voltar o olhar para nosso passado e ensaiar uma leitura que entenda a malandragem não apenas como um traço dominante de certa etnia ou classe social brasileira? Não é possível perceber certos comportamentos, estratégias de malandragem para além dos referidos sambistas ou dos revoltosos da Vacina? Até que ponto não estamos apenas referendando o local da malandragem como pertencente ao pobre e preto e deixando de vê-la como uma constante que, em alguns momentos, ultrapassa a fronteira das classes sociais e revela-se como um "sintoma de cultura nossa"?

É desse lugar que retomo a voz de João do Rio, para quem "Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e ausência de escrúpulos." 2 Como nos diz Renato Cordeiro Gomes:

 

Daí a face dupla de seus escritos, em que o foco ora se dirige para a vida "mundana" da gente de cima, ora para as figurações da miséria, a "canalha" com seus imprevistos, para encenar os escombros que as fachadas modernizantes tentavam esconder (Gomes, 1996, p. 64).

 

Sob o pseudônimo Joe, João do Rio aproxima-se da crítica de Bilac às tradições populares, como as festas juninas.

 

Na Av. Central - sim, na Av. Central, meus prezados amigos - soltaram balões como nos terreiros das fazendas, e havia armadas baterias de girândolas. A cidade virou uma grande aldeia sem policiamento, aldeia em que a gente grande tivesse o prazer de brincar como alguns hóspedes de enfermarias do hospício ("Cinematographo", Gazeta de Notícias , 3 jul.1910).

 

O interessante é notar que no dia seguinte à publicação desta coluna, Paulo Barreto, dessa vez sob seu pseudônimo mais famoso, dava seqüência ao folhetim A profissão de Jacques Pedreira (PJP). No mesmo jornal, enquanto Joe criticava os hábitos provincianos da população, João do Rio desfilava com ironia os tipos mais arrivistas e snobs da jeunesse dorée carioca, sem poupá-los, igualmente, de seu olhar irônico.

À nova cidade contraditória corresponde uma escrita igualmen­te paradoxal. Será o mesmo João do Rio quem melhor perceberá a impossibilidade de uma escrita "essencial", que represente em profundidade um único e recém-inaugurado Rio de Janeiro. Para as futilidades dos salões, a máscara do dândi; para os encontros com a malandragem nos becos e nas prisões, a do repórter- flâneur . O espaço da superfície, da máscara, torna-se portanto significativo justamente por nada esconder. Como diz Gomes - "Era preciso construir um palco ilusionista para representar os tempos modernos em todos seus aparatos." (1994, p.104).

"Havia mesmo na coisa muito de cenografia nessa nova cidade erigida às pressas."(Barreto, op. cit, p. 184). Porém, enquanto para Lima Barreto esse é um dado fundamentalmente negativo, para João do Rio é a constatação de que essa nova cidade só se sustenta devido à representação. Assim como o trabalho, que se torna mais uma das múltiplas figurações da cidade, João do Rio tem consciência de que ele próprio - seu corpo, suas máscaras - também são "lidos", também são personagens dessa cidade-palco. PJP será o romance por excelência dessa encenação; não apenas Jacques Pedreira, mas a maioria dos personagens aqui retratados, faz o jogo da mascarada sempre com o intuito de promover ganhos pessoais. Não escapa a esse procedimento Justino, o pai de Jacques, definido como um pai misto de "peça romântica com comédia moderna".

 

A vida é um palco onde cada um representa seu papel, disse Shakespeare. Depois do transformismo, moda passada em ciência e moda em voga em cena: a vida é palco, onde cada um representa seus papéis. Justino representava alguns - nem sempre gloriosos, é de convir, mas com tal elegância, um brilho tão particular, que só merecia aplausos (Rio, 1992, p.11).

 

Justino será a interseção entre a representação de uma ética romântica que já começa a desaparecer de nossas letras e a nova cidade especular. "O secreto e acovardado Justino íntimo tornara-se apenas o espectador de vários Justinos mundanos, e só raramente intervinha no drama [...]" (Id., ibid.). Nessa nova cidade há cada vez menos espaço para premissas que vigoraram durante o século XIX: a defesa da vocação pessoal, a valorização do amor romântico, o amor à pátria etc. A verdade desse "eu" romântico é aos poucos abandonada pela mentira da aparência. E, nesse sentido, o esteticismo de Oscar Wilde será o norte na composição da máscara de dândi de João do Rio.

 

Forçado à frivolidade, forçado à aparência, forçado à imagem, sua imagem de beleza pura inexplicada, o dândi não poderia ter uma "verdadeira" personalidade sob a máscara. Esta o define completamente. Só existe ela para ser vista, e nada mais por baixo. Nele, a essência é sistematicamente banida, rejeitada (Bollon, 1993, p. 185).

 

Deve-se ter em mente que Wilde lutava contra o naturalismo, que então reinava na literatura. Contra a verdade essencial do registro naturalista, Wilde oferece o primado da artificialidade. Não será, portanto, por acaso que o tradutor brasileiro para o célebre ensaio de Wilde, "A decadência da mentira - um protesto", seja João do Rio. É a artificialidade, a mentira que nos diferencia uns dos outros, que nos separa da natureza. A arte, assim, não tem como função descrever a vida, mas imaginá-la e pela imaginação ultrapassar a simples cópia da realidade. João do Rio se inscreve nesse cruzamento entre uma ânsia descritiva da realidade carioca e a superfície de uma escrita que em muito nos lembra o decadentismo de Wilde. Cria, como observa Marcos Veneu, uma individualidade sem subjetividade. "O progresso acelerado retirou dele essa 'substância' que estava presente no sentimento, no sonho e na fantasia do 'eu' romântico, e transferiu­a para a realidade exterior." (1987, p. 22).

E essa bem poderia ser uma definição para Jacques Pedreira. Se Justino ainda nos é apresentado como um advogado o qual a sociedade de frivolidades e negociatas obrigou ao fatal mascaramento, ele, Jacques, nos é mostrado como um indivíduo sem essência, sem comprometimento com nenhuma reflexão, pura superfície. A verdade , portanto, não pode mais ser buscada no que se diz, mas no que se aparenta ser. "Antes parecer do que ser.", afirma o narrador da PJP. Pois nessa nova sociedade ganha-se mais - e não somente dinheiro - quando se sabe utilizar os valores da aparência.

Essa superficialidade parece ser um traço não somente da Belle Époque , mas de toda uma linhagem da cultura carioca, da qual o grande mestre será sem dúvida Machado de Assis. É nessa clave, por exemplo, que podemos aproximar "A teoria do medalhão", de Machado de Assis, da lição que Justino, pai de Jacques Pedreira, dá ao filho. Ambos os pais ensinam aos respectivos filhos a melhor maneira de lucrar em sociedade sem precisar trabalhar. O pai machadiano, de maneira própria a seu tempo, inicia o jovem aspirante na "profissão" de medalhão nos meandros da retórica, da representação, da "metafísica da política" em que reina absoluta a ausência de idéias e opiniões. Profetiza assim o futuro do filho,

 

Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, ir­mandades; elas virão ter contigo, com o ar pesadão e cru de substantivos desajetivados, tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário (Assis, [s.d.], p. 36 - ênfases no original).

 

Contra a realidade substantivada, o pai oferece ao filho a doce mentira do adjetivo, cerne de uma retórica baseada apenas na aparência e no vazio dos significados. De maneira semelhante, podemos ver em Jacques um adjetivo da sociedade de seu tempo, um moço que tem por profissão ser apenas bonito, e, nesse novo cenário, até mesmo a retórica é dispensável. Justino, com maneiras próprias a seu tempo, vai direto ao ponto: "- A questão é ganhar. As sociedades fazem cada vez menos caso dos meios [...]." Para mais adiante completar: "- Oh, ganha-se dinheiro, mesmo não fazendo cousa alguma. Tudo é dinheiro." (Rio, op. cit, p. 13).

Curioso é perceber que, em nenhum momento, em João do Rio, esse "não fazer cousa alguma", essa ociosidade admitida e incentivada em certo círculo social é denominada de malandragem. Enquanto a lei de repressão à vadiagem termina por estabelecer um eixo opositivo entre a jeunesse dorée e os malandros da Cidade Nova, a ficção de Paulo Barreto aproxima esses dois grupos. Não pelo viés econômico ou mesmo pelo espaço físico que eles ocupam na cidade, mas pelo viés alegórico e cultural, revelado aqui como uma estratégia de posicionamento social. Uma estratégia da malandragem que se dá na superfície da cidade, do corpo, do indivíduo e, por que não, na superfície da própria escrita.

É compreensível, portanto, a omissão do termo supracitado de PJP, que, já naquele tempo, trazia a marca da marginalidade. Digo, da marginalidade dos tipos da zona portuária e do centro do Rio. O próprio João do Rio constrói uma escrita que se exime de valorar, ao contrário dos nossos políticos, o caráter da malandragem, pois, como vimos, o que interessa ao cronista - eternamente cindido entre a "aristocracia" carioca e a alma encantadora dos outros rios de janeiro - é a gente de cima e a canalha. A declaração do personagem/pseudônimo Godofredo Alencar não é à toa; suprimida a classe social, em última instância o que diferencia a "gente de cima" da "canalha", restam a prática das negociatas, o patronato, as pequenas chantagens, as trocas de favores, os meios ilícitos de conseguir dinheiro. Afinal, como aconselha Justino ao filho-"Com estes trunfos que tens em mão, um homem esperto talvez não se decidisse por nenhuma profissão, mas decerto teria meios de arranjar uma fortuna." (Id., p. 14). As pontas dos extremos voltam a se unir e surge uma nova cidade, caleidoscópica, Dissolve-se o antagonismo: no mesmo espaço metafórico dividem a cena - e a obscena - a cidade útil e a cidade fútil 3 .

 

A útil cidade fútil

 

Em a "Noção de despesa", Georges Bataille divide as atividades humanas em dois grupos: no primeiro, chamado de despesa produtiva , estariam os processos voltados exclusivamente para a conservação da vida humana e da continuidade da acumulação de bens. No segundo grupo, estariam inseridas as guerras, a arte, o luxo, o sexo sem fim procriativo, o luto etc. Em suma, toda e qualquer atividade que acarrete um fim em si mesma e com isso gere um "desperdício", uma despesa improdutiva .

Ao analisar as classes ricas, entretanto, o autor relativiza o uso dessa categoria. Para ele, existe uma função na "perda ostentatória" dessas camadas, isto é, " le rang social est lié à la possession d'une fortune, mais c'est encore à la condition que la fortune soit pareillement sacrifiée à des dépenses sociales improductives telles que les fêtes, les spectacles et les jeux ". 4 (Bataille, 1967, p. 36)

Ao observarmos o Rio de Jacques Pedreira, as atitudes que a princípio seriam definidas como despesa improdutiva, acabam revelando-se de fato uma despesa funcional. O que a princípio era fútil - a preocupação com a aparência, o gosto pelas frivolidades da civilização etc. - torna-se, diante de um olhar atento, útil. O ócio torna-se produtivo. Como bem sintetiza Justino ao filho: "Aqui estou eu, [...] obrigado a viver com desperdício, exatamente porque desse desperdício vem a possibilidade de negócios grandes. E sem vintém. Sim, meu caro Jacques, sem vintém." (Rio, op. cit, p. 12). Para Jacques, isso não é uma grande novidade. "Estava farto de saber a situação econômica do pai. Era a de três quartas partes da sua sociedade, um triste bluff que se tornara norma angustiosa" (Id., p. 14).

Como diz Flora Süssekind em seu ensaio "O cronista e o secreta amador", Jacques espelha à perfeição o cotidiano daquela época em que se constata

 

o aumento do número de desempregados, desocupados ou de gente sem profissão definida (mais da metade da população em 1906), como o próprio Jacques - "profissão: moço bonito"-; a cosmopolitização compulsória (e excludente das camadas citadinas) tendo por modelo Paris [...]; o esvaziamento político da Capital por parte do poder executivo em prol de grupos do interior [...]; o arrivismo, os enriquecimentos e empobrecimentos rápidos, a expansão do clientelismo [...] (Süssekind. In: Rio, 1992, p. X).

 

Mas Jacques não é apenas fruto de uma sociedade sem ofertas de trabalho. Há uma repugnância em Jacques ao trabalho, um dandismo deslocado que em muito se assemelha aos nossos "barões da ralé". Na gente de cima e na canalha encontramos a mesma aversão ao modelo do trabalho organizado. Em homens como Jacques trabalhar significa ser igual aos outros, ter sua individualidade usurpada pelo capital. O que lhe constitui como sujeito é a aparência, a frivolidade, as amantes, festas e sports . Uma "sociedade assaz misturada de mulheres, michés 5 ,jogadores, gigolos ", um meio não muito diferente, portanto, daquele de jogadores e exploradores encontrados em outras áreas menos nobres da cidade (Rio, op. cit, p. 18).

Esta parece ser mesmo a grande diferença entre as duas pontas dessa sociedade. Interessa à sociedade carioca manter o bom ocioso , capaz de valer-se das brechas produzidas na lei a seu favor.

No entanto, essas mesmas benesses das leis e das regras que regem a sociedade também são aproveitadas pelos maus ociosos . Por isso, cada vez torna-se maior a necessidade de especificar qual o tipo de ócio proveitoso à sociedade, capaz de tornar-se neg ócio para moços como Jacques.

 

Agora já poderia dar uma explicação aos gastos dos conhecidos, as flexões de espinha inexplicáveis até o momento. Era o negócio, o jogo das influências, um tremendo jogo certo de consciências, que o vendedor devia ser o maior ganhador. No fundo, devia ser muito aborrecido fazer como Jorge, de assaltante diário, ou como Godofredo e seu pai entre o assaltado que deixa assaltar, mediante condições e o assaltante que reparte. Ele faria com rapidez, uns duzentos contos... (Id., p. 26).

 

Como explica Raul Antelo "A profissão dos intermediários adandinados como Jacques Pedreira não é ofício que defina social-mente seus praticantes, mas um meio para o tráfico de interesses, uma carreira que concede dignidade ao ócio." (In: Rio, op. cit, p. 154). Ocorre, no Brasil, em especial na formação de classes do Rio de Janeiro, uma trajetória diferente da retratada por Lafargue. Na Europa, há claramente uma lei de divisão do trabalho e de papéis fixos na formação das classes sociais. Proletários produzem, burgueses consomem. Segundo Lafargue, a inclusão desse novo ideário capitalista do século XIX acaba por criar duas transformações: de um lado, os burgueses desempenham uma dupla função social de não produtor e de superconsumidor, por outro, surge uma nova ética defendida por "padres, economistas e moralistas que sacrossantificam o trabalho". O resultado é uma classe operária apossada de uma estranha loucura, o amor pelo trabalho transformado em credo divino. "Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista." (Lafargue, op. cit, p. 79). Nos textos que dedica aos miseráveis do Rio de Janeiro, João do Rio parece fazer ecoar as palavras de Lafargue.

 

Não surpreende assim, que ao mesmo tempo em que revela o absurdo da honestidade do miserável que revira o lixo, o repórter acabe levantando a revolta anônima dos que se esfolam para manter a prosperidade do outro. Num caso como noutro, a sua preferência pelos que brigam e se rebelam vai sempre paralela à exaltação para que se amotinem contra os abastados, pois no conflito desigual "quem não tem o que perder, tem sempre o que ganhar". (Prado, 1983, p. 72) 6 .

 

Nessa sociedade desigual, se encontramos uma classe nascente de superconsumidores não encontramos, no entanto, nem dinheiro suficiente que a sustente nem uma classe formada por proletários que primam pelo amor ao trabalho. Não se trata de repetir aqui Schwarz em seu célebre ensaio e concluir que as idéias em terras brasileiras estarão sempre fora do lugar (1988, p.13-25). Mas, sim, tentar compreender como uma nova moral do trabalho encontra aqui uma cultura voltada para o ócio, seja entre as elites que exploram, primeiramente, o trabalho escravo e depois o trabalhador livre, seja entre certos homens, nem tão livres assim, que equacionam o menor esforço braçal ao maior ganho, seja ainda entre nossos literatos modernistas, que elegeram para norte do Matriarcado de Pindorama, a "sábia preguiça solar" (Andrade, 1990, p. 66). De qualquer forma, essa preguiça se apresenta como um desajuste, uma revolta não violenta e talvez, por isso mesmo, mais perturbadora, da ordem estabelecida.

Em PJP, esse desajuste entre uma ética do capital e uma cultura do ócio se explica por diversas formas: em primeiro lugar, o consumo volta-se para bens produzidos na Europa. "Jóias compram-se em Paris" - afirma Jacques Pedreira, que traz no sobrenome a marca da ironia de João do Rio. Na ausência de uma burguesia que gerencie os meios de produção, o dinheiro, quando há, vem do Estado e, não muito diferente de hoje, esses investimentos levam em consideração as ligações pessoais e os possíveis superfaturamentos. É assim que Jorge, engenheiro amigo de Jacques, enriquece construindo casas na recém-inaugurada avenida Central e passa a ser o símbolo maior de uma modernidade cujo epíteto, estampado em seu carro, é: "Esmago todo mundo e ninguém me vê." (Rio, op. cit, p. 18). Por outro lado, persiste no Rio de Janeiro uma rede de negociações em que o dinheiro é substituído por uma série de outros ganhos pessoais igualmente necessários para a mantença do status social. Assim, não interessa ter dinheiro se você nunca teve uma amante senhora casada ou se não sabe com que camisa combinar o fraque debruado.

Nesse sentido, a despesa funcional da sociedade (f)útil termina por "empregar" muita gente. É assim que Carlos Chagas, companheiro de Jacques, incapaz de empregar-se em "nada de confessável, resolvera ter gosto. Ter gosto pode ser uma profissão, dada a raridade do gosto" (Id., p. 40). Frente aos inúmeros políticos do interior do país que inundam a capital com seus bolsos cheios e excelentes relações com os poderosos, resta aos ociosos de luxo tornarem-se necessários. Jacques segue pelo mesmo caminho, trocando a toda hora de "profissão": de amante sustentado por uma cocotte a "cavador" de empenhos; de rapaz decorativo a ladrão do próprio "sócio", o cronista Godofredo de Alencar, numa negociata. Nessa troca de profissões é até possível a Jacques representar que trabalha: "É que na sua fraca vontade irritada contra o trabalho comum, descobrira que esse trabalho, mesmo comum, seria um título de elegância no meio por onde andava. Um título superior" (Id., p. 23).

A Frívola City 7 torna-se símbolo da cidade como um todo e, conseqüentemente, de uma nação de excessos. A ordem do dia no governo é gastar. E entre os expoentes das elites é aparentar que se gasta. Essa representação aparece constantemente na obra de João do Rio, sendo que a metáfora do teatro é usualmente empregada como registro da nova vida na capital federal. Se em A alma encantadora das ruas , as esquinas e becos servem como palco para o drama cotidiano, em PJP, são as recepções, a câmara dos deputados e os jardins públicos que funcionam como espaço de encenação. Por um sutil movimento de inversão, a vida privada torna-se pública. De que adianta um amante novo, um vestido caro, um automóvel importado se o restante dos "atores" não o invejam? Mesmo golpistas e ladrões são tolerados, quando não admirados, desde que o estreito círculo social, ritualisticamente, os aprove.

 

O Dr. Justino Pedreira aparecia a conversar com dois cavalheiros que pareciam ricos e influentes. Charlot tinha um grande respeito por quem parecesse rico ou influente. E de um deles lera nos jornais de oposição que ficara com trezentos contos de uma tremenda roubalheira aos cofres do Estado. Era um homem digno de atenções. Não só dele. De toda gente (Id., p. 5).

 

Como afirma Michel Misse, esses criminosos ricos diferem por, aparentemente, não romperem inteiramente com "as regras do jogo da sociabilidade", apenas excedem-se na aposta na esfera dos interesses. São preferentemente tratados como corruptos (1999, p. 178). O limite da comédia moderna parece ser o escândalo que quebra o pacto de acobertamento das fronteiras protetoras da classe e expõe seus bastidores ao público. É assim que Jacques vê sua vida de dandismo provinciano chegar ao fim quando seu nome aparece nos jornais, envolvido na morte de um chauffeur . "Pela primeira vez sentiu a necessidade de opinião da imprensa" (Rio, op. cit., p. 126). O jornal serve como espelho para Jacques, um espelho bisauté , no qual ele por certo não se reconhece. A hierarquia entre imprensa e elite é quebrada porque os moços da sociedade infringem as regras da representação, cruzam a tênue fronteira que faz de um refinado malandro um criminoso. A partir daí, recebem dos jornalistas os mesmos adjetivos destinados aos revoltosos da Vacina. São uns "indolentes", "aqueles que acreditam a vida dos outros nada", "uns pândegos sem alma" (Id., p. 137). O "castigo" por tal escândalo não tarda. Só que em vez de ser deportado para o Acre como os desordeiros de 1904, Jacques é "exilado" na Europa. Torna-se um diplomata.

O que separa, portanto, esses tipos dos Pratas Pretas da Gamboa a não ser o meio em que vivem e a maneira pela qual são absorvidos pela cidade? Ambos valem-se dos interstícios da sociedade, para uns considerados caminhos de ascensão, para outros, rotas certas para a cadeia. Por quais motivos a ociosidade, acompanhada de certa roubalheira estatal, é bem-vista nos círculos de cima e, imediatamente, reprimida nos círculos de baixo? Se seguirmos o raciocínio de Paul Lafargue veremos que o ócio entre a canalha será o meio ideal de desestabilização da gente de cima. Ambas, igualmente sem escrúpulos.

 

Daí a simpatia que (João do Rio) dedica ao malandro e ao vagabundo que desafiam a polícia e desprezam as leis. Porém essa habilidade para driblar o mundo e cavar o destino, se faz parte da vida, transcende sua ficção, em livros como A mulher e os espelhos , Dentro da noite, Correspondência de uma estação de cura . Aí, se ninguém trabalha, também não sofre ou passa fome, prova de que o bom grã-fino é quase sempre um bom malandro. E João do Rio, como poucos, soube ver no parasitismo da grã­finagem, do patrão e dos picaretas os sinais da nova moral que a ética burguesa imprimia à função transformadora do capital no Brasil da Primeira República (Prado, op. cit., p. 73).

 

Entretanto, para além da hierarquia social estabelecida entre classes é interessante perceber como às margens da cidade útil, base de sustentação da gente de cima, surgem indivíduos igualmente fúteis. Com suas "calças-balão" e "casacos-sacos", eles vivem da superfície e sob o signo de uma aparente despesa improdutiva. O olhar usual do intelectual sobre estes tipos assegura que os malandros dos anos 1930 portam ternos brancos na tentativa de se aproximar dos mocinhos das classes abastadas (Cf. Matos, 1982, p. 56). No entanto, penso ser essa resposta mais uma forma de aprisionamento dos indivíduos marginalizados, condenados a sempre imitarem o mais poderoso ou o mais rico.

Muito antes dos sambistas estabelecerem um estilo próprio, autores como João do Rio e Manuel Antônio de Almeida já aten­tavam para a ligação entre marginalidade e aparência. Chico-Juca, o primeiro capoeira de nossas letras, aparece assim descrito em Memórias de um sargento de milícias:

 

Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos aver­melhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vício da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vício da valentia; mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas e só depois que dava pancada a fartar é que ficava satisfeito; com isto muito lucrava: não havia taberneiro que não fiasse e não o tratasse muito bem (Almeida, op. cit., p.57-8).

Aqui, já estão as marcas que povoam nosso imaginário malan­dro: as calças largas para aplicar melhor os golpes de capoeira, o chapéu de lado, a personalidade ao mesmo tempo gozadora, bem-humo-rada e, quando necessário, a prática da valentia que, mesmo não assegurando dinheiro, garante fama, indispensável ao lucro cotidiano. Ou como bem sintetiza Oswald de Andrade no poema "O capoeira" (Andrade, op. cit., p. 87):

 

- Qué apanhá sordado?

- O quê?

- Qué apanhá?

Pernas e cabeças na calçada.

É assegurando suas marcas de individualidade que o capoeira adquire respeito do meio que vive, à maneira do malandro. Dife-renciar-se é, ao mesmo tempo, atrair seus inimigos e criar uma individualidade própria.

 

A capoeira era um símbolo da cultura africana ostentado orgulhosamente pelos escravos, nas ruas do Rio de Janeiro. Os negros eram presos em pleno dia por assobiarem como capoeira, usarem um casquete com fitas amarelas e encarnadas - símbolos do capoeira-e por carregarem instrumentos musicais utilizados em seus encontros (Algranti, 1988, p. 169).

Obviamente, a cada época corresponderá uma imagem diferenciada de malandro em que estarão envolvidos novos fatores conjunturais. No entanto, não é lícito perceber um continuum na maneira em que esses indivíduos marginalizados anseiam por se diferenciar da massa anônima? Não viveriam eles também, à semelhança de Jacques Pedreira, às expensas de uma despesa funcional em que o jogo da aparência, da mascarada, é igualmente necessário? Não poderíamos, como o narrador de PJP, afirmar que para tais malandros parecer ter é melhor do que ser? Trata-se, aqui, mais uma vez, de encontrar o sutil equilíbrio entre possuir um estilo próprio e não deixar esse estilo se fixar.

 

Pois se esses movimentos que afetam as aparências nascem e vivem na espontaneidade, morrem também por se tornarem conscientes demais. Ironia da sorte, é o sucesso que provoca sua decadência. É porque eles se tornam normas, até uniformes; porque de um protesto individual fluido e contraditório, plástico e maleável, eles se transformam em ditames unívocos e determinados, sem mais a intervenção da sensibilidade individual; em resumo, porque eles se institucionalizam, porque perdem, ao mesmo tempo que suas almas, seu valor como modo de expressão (Bollon, op. cit., p. 13).

 

Se para homens como Jacques Pedreira, pertencentes a um grupo que intermedeia as últimas novidades de Paris e os ditames da conduta tropical, a única preocupação é estar sempre atualizado em relação ao mundo da elegância, para os malandros da cidade obscena a aparência torna-se uma navalha pela qual ele é obrigado a transitar; ora sendo alvo de fácil perseguição, ora garantindo sua condição diferencial.

A partir dessa constatação, torna-se clara a impossibilidade de lidar com esses grupos - "bons ociosos e maus ociosos" - de uma maneira excludente. Ainda que diferenças no aproveitamento final do estilo e da aparência os afastem, eles fazem parte do mesmo jogo de máscaras em que, sem medo de me repetir, parecer é mais importante do que ser .

No início do século, qualquer identificação com a malan­dragem só poderia levar à exclusão do indivíduo, tendo em vista que a figura do "malandro" era a antítese do novo homem do povo que se desejava como exemplo: o trabalhador submisso e dócil. Daí, as perseguições policiais, muitas vezes incitadas pela imprensa, contra os símbolos de uma aparente "revolta" contra o trabalho e o progresso, entre eles o violão e a boêmia. Como nos diz Nicolau Sevcenko - "O violão passou a significar por si só, um sinônimo de vadiagem" (1983, p. 32).

Entretanto, da mesma forma que o processo histórico e ideológico na Belle Époque carioca expulsava para a "obscena" - "para não manchar o cenário", conforme Gomes nos fala - esses tipos, certas brechas entre a cultura popular e certa parte da intelectualidade carioca começam a ser construídas, demonstrando mais uma vez que as fronteiras não são tão rígidas quanto se pensava.

A perseguição ao "mau ocioso" não iria limitar-se aos indiví­duos das chamadas classes populares. A repressão à boêmia e o desaparecimento dos antigos cafés e casas de pasto do centro da cidade contribuíram igualmente para uma tentativa de incorporação à sociedade capitalista dos chamados intelectuais boêmios do início do século. Os rápidos avanços tecnológicos, a nova organização da divisão do trabalho e a imposição por uma vida em que produtivi­dade traduz-se em lucro, vai de encontro ao espírito desse tipo de intelectual carioca que recusa a dividir sua rotina entre espaço público e privado, tempo de lazer e tempo de trabalho (Velloso, 1996, p. 53). A solução para esse impasse, mais uma vez, vem das ruas.

 

Assim, a assimilação do literato à sociedade em que se encontrava se consumou no bulevar. Era no bulevar que ele tinha à dispo­sição o primeiro incidente, chiste ou boato. No bulevar, desdo­brava os ornamentos de suas relações com colegas e boas-vidas [...] No bulevar, passava suas horas ociosas, exibindo-as às pessoas como parcela de seu horário de trabalho (Benjamin, 1995, p. 25).

 

Se a vida das ruas faz parte do "horário de trabalho" dos jornalistas e escritores, o café, certamente, funciona como escritório. Na cidade remodelada, os novos cafés, nos moldes parisienses, ocupam a avenida Central e os arredores. Nas mesas, discute-se desde política até o figurino das passantes, e fundam-se a todo momento novos jornais e revistas. Para um dos mais assíduos freqüentadores do famoso café Papagaio, esses lugares são indispensáveis "à revelação dos obscuros, à troca de idéias, ao entrelaçamento das inteligências, enfim, formadores de uma sociedade para os que não têm uma à sua altura, já pela origem, já pelas condições de fortuna, ou para os que não se sentem bem em nenhuma" (Barreto, [s.d.], p. 107-8).

Nas palavras de Lima Barreto, o café surge como um território de pensamento livre onde, independentemente da situação econô­mica, da cor da pele ou da posição social, ainda é possível repensar o país fora dos parâmetros da cultura oficial. Entretanto, se na literatura de Lima Barreto encontramos ainda a preocupação em reformar o Brasil a partir de um projeto nacional - mesmo que fadado ao fracasso como o de Policarpo Quaresma -, em outros artistas, o que vemos, é a reocupação em retratar essa sociedade em fragmentos.

A crônica e a caricatura revelam-se os veículos por excelência para retratar a vertiginosa transformação de cenários e hábitos do Rio de Janeiro. São os "pintores do circunstancial, e de tudo que este sugere de eterno", que irão oferecer o retrato mais preciso da nova cidade (Baudelaire, 1996, p. 13). Em meio aos artistas da pena e do pincel encontramos nomes como os de João do Rio, Lima Barreto, Bastos Tigres e Emílio de Menezes e dos caricaturistas Raul Pederneiras, J. Carlos e Kalixto. Apesar da feroz repressão policial, a obscena começa pouco a pouco a criar fronteiras, zonas de tensão, com a cidade oficial. É, principalmente, por meio de escritores como João do Rio e dos "humoristas boêmios" 8 que as duas cidades voltam a se encontrar. É na rua que os encontros acontecem, é nas crônicas e ilustrações que eles ficam registrados.

O "Bota-Abaixo" e leis, como a de 1888, buscaram delimitar

o raio de ação desses malandros, mas não arranharam a superfície da estratégia da malandragem que percorre toda a sociedade, e com a qual muitos dos políticos e outros representantes das elites sempre lucraram. Os malandros que João do Rio conhece em suas visitas à cadeia representam apenas uma faceta da malandragem. A outra está solta pelas ruas e salões porque, como afirma o cronista, malandros há em todas as profissões, inclusive na profissão de Jacques Pedreira (Rio, 1995, p. 28).

Em "O feitiço contra o feiticeiro" ( Careta , 1915), vemos como J. Carlos aproxima esses dois mundos aparentemente tão distantes. Em tempos de enriquecimentos ilícitos e arrivismo desenfreado, "surge a figura distinta, mas não muito edificante do "ladrão de casaca" (Sevcenko, op. cit., p. 39). Em uma esquina carioca, dois ladrões barbados e malvestidos, conversam de olho em uma suposta vítima: "- Está vendo, ó Comepregos... Aquele sujeito deve ter ao menos um bom relógio. - Com esses eu não me meto. O último transeunte de casaca a quem eu assaltei deu-me uma dúzia de murros e levou-me os 3$500 que eu tinha em prata." A ironia está em que os distintos senhores, muita das vezes freqüentadores dos melhores salões cariocas, no fundo, partilham de um ambiente em muito semelhante ao da cidade excluída. Como nos informa o jovem smart Jacques Pedreira, o seu meio era "composto afinal de elementos desencontrados da sociedade, desde o jogador titular ao explorador sem escrúpulos, meio de que conhecia as histórias desagradáveis, era o único tolerável e o único possível. O resto não passava de poeira." (Rio, 1992, p. 54-5).

Ao encenar, em uma esquina, o encontro entre a "poeira" e os "elementos desencontrados da sociedade", J. Carlos está colocando frente a frente classes que, para as elites aburguesadas e certos jornalistas, deveriam ser sempre mantidas em lados opostos da cidade. O cômico da sátira está no confronto e na súbita inversão de papéis entre os personagens. Quem é o perigoso agora? J. Carlos é capaz de observar por novos ângulos, novas esquinas, narrativizando assim a cidade.

Ao levar para os periódicos e revistas a crítica ao cotidiano das elites, os "humoristas boêmios", na verdade, estão construindo um novo espaço simbólico, que estreita as diferenças entre as duas cidades Nas charges de Kalixto, J. Carlos, Raul Pederneiras e outros a jeunesse dorée é retratada sem piedade na prática do ofício do ócio ou das negociatas. Nos salões ou nas avenidas são sempre atores, preocupados excessivamente com as aparências, em busca do melhor ângulo que lhes possibilite obter algum lucro. Isolados dos moradores da cidade periférica, transformam-se, pelo relato oficial, no símbolo do tão desejado brasileiro moderno. Contra a monocórdia moderni­zadora, os caricaturistas registram uma cidade em fragmentos, fraturada em sua geografia e em seus diversos "tempos" históricos.

Imaginando ser possível traçar um paralelo entre a crônica e a caricatura, podemos sugerir que J. Carlos manteria com seus desenhos o diálogo ideal com os textos de João do Rio. Não por acaso, o cronista assim preconizava o futuro do jovem caricaturista, em sua coluna "Cinematographo": "Há também novos que dentro em pouco ocuparão um lugar na nossa arte e está nesse caso o Sr. J. Carlos. Há um traço novo, uma maneira especial e ácida, o imprevisto da legenda [...]" ( Gazeta de Notícias , 25 ago. 1907).

Semelhantes no estilo, passeiam entre as elites, sem entretanto abrir mão do poder corrosivo da crítica. Denunciam a futilidade dos salões com seus janotas, que ganharão forma tanto na figura de Jacques Pedreira como no "almofadinha" imortalizado por J. Carlos. Criando imagens durante 48 anos, de 1902 até 1950, é possível acompanhar pelos desenhos de J. Carlos as transformações da cidade; ao mesmo tempo em que podemos analisar como o próprio estilo do caricaturista passa a influenciar os modismos cariocas. O caricaturista, assim como o cronista adandinado, não faz de seu ofício cópia da cidade concreta, mas, à maneira de Oscar Wilde, recria uma cidade erigida no cruzamento da artificialidade e do real. Como questiona Zuenir Ventura: "até que ponto as melindrosas foram um tipo de mulher que estava surgindo, ou estava surgindo um novo tipo de mulher em conseqüência das melindrosas de J. Carlos ?" (1998, p. 16).

Assim como João do Rio faz da cidade seu lugar de perten­cimento, J. Carlos imprime igualmente à sua assinatura a imagem da capital. Aristocrata do traço, ele no entanto não abre mão das marcas da cidade. Como bem observa o cartunista Alvarus, ainda que o leitor tentasse decifrar a assinatura do caricaturista, o máximo que poderia encontrar era a palavra "rios" nela (1985, p. 90).

Torna-se, à semelhança do cronista, Carlos do Rio. E, como o cronista, constrói diversos "rios de janeiro". Nessa perspectiva, não podemos analisar a obra de J. Carlos como mero reflexo das transformações da cidade. Ele registra, pela sutileza de seu humor, os políticos e tipos da capital, mas também os ficcionaliza e devolve-os à cena. Habita as áreas abandonadas da cidade, narrativizando-as.

 

Este é também o "trabalho" dos relatos urbanos. [...] Acrescen­tam à cidade visível as "cidades invisíveis" de que fala Calvino. Com o vocabulário dos objetos e das palavras bem conhecidas, eles criam uma outra dimensão, sempre mais fantástica e delinqüente, terrível ou legitimante. Por isso, tornam a cidade "confiável", atribuindo-lhe uma profundidade ignorada a inventariar e abrindo-a a viagens (Certeau, 1997, p. 200).

 

Na cidade/nação imaginada, esses homens transitam livre-mente e nos revelam a todo instante que o riso pode ser uma ferramenta tão reformadora quanto as picaretas de um governo. Para esses jornalistas e caricaturistas, a vida marginal acaba por exercer um fascínio que não se restringe às páginas dos jornais. Mesmo na cidade geograficamente partida, a cultura popular constrói novos espaços de identificação com certos grupos das elites intelectuais. Notadamente aqueles que redimensionam a tradição boêmia iniciada em meados do século XIX com jornalistas como Paula Nei e José do Patrocínio e poetas ultra-românticos como Álvares de Azevedo. Era comum, ao final dos anos 1910, encontrar Bastos Tigre, Emílio de Menezes, Hermes Fontes e Afonso Arinos de Mello Franco visitando os compositores Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres.

 

O grupo costumava fazer programas musicais na Praça da Cruz Vermelha, depois num bar da rua Gomes Freire. Lá se encontravam os literatos que apreciavam música e os músicos que apreciavam poesia . Provavelmente Bastos Tigres e Emílio de Menezes também freqüentaram a famosa Casa de Tia Ciata, dada a estreita relação que mantinham com esse grupo de compositores sambistas (Velloso, op. cit., p. 43) (grifo meu).

 

Nessa leitura, é possível perceber que as afinidades entre grupos de origem cultural e social diversa iam além de um simples encontro casual pelos bares da cidade. Ambos tentavam resistir, cada um a sua maneira, à "lei da divisão do trabalho" - criticada pelo narrador de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá - e a certos ditames civilizatórios impostos pelos governantes à cidade. (Barreto, op. cit., p. 27). O encontro nos bares, as visitas à Casa de Tia Ciata e às festas populares são evidências que, nos bastidores da nação, cresce uma cultura paralela à oficial que incorpora, igualmente, certos traços da modernidade e da tradição negra.

Essa abordagem aproxima-se do conceito de "contra-narra-tivas da nação", defendido por Homi Bhabha como uma forma de rasurar as "fronteiras totalizadoras - tanto reais quanto con­ceituais". As contra-narrativas "perturbam aquelas manobras ideo­lógicas por meio das quais 'comunidades imaginadas' recebem identidades essencialistas." (Bhabha, op. cit., p. 211). Alguns de nossos romances, caricaturas e sambas das primeiras décadas do século narrativizam uma outra nação não-linear e una, mas plural, fronteiriça e - para utilizar um termo que remete tanto à música como a certas construções ficcionais - polifônica.

Em alguns momentos, o encontro dessas vozes transforma-se em confronto, como ocorre na destruição dos cortiços do centro e da Revolta da Vacina. Mas, para desespero das elites dos salões, ao longo das primeiras décadas desse século, as culturas negra e branca e seus respectivos espaços de domínio terminaram por sofrer um duplo processo de contaminação. "Os literatos que apreciavam música e os músicos que apreciavam poesia" formam apenas um dos aspectos dos diversos níveis de troca que rondam a cidade.

 

A Festa da Penha foi tomada do controle branco e português por negros, ex-escravos, boêmios; as religiões africanas passaram a ser freqüentadas por políticos famosos como, pasmem, J. Murtinho; o samba foi aos poucos encampado pelos brancos; o futebol foi tomado aos brancos pelos negros. Movimentos de baixo e de cima iam minando velhas barreiras e derrotando as novas, que se tentavam impor com a reforma urbana (Carvalho, 1987, p. 156).

 

Nesse cenário de fronteiras móveis e porosas, a malandragem adquire novas feições na produção literária. Por um lado, há, por parte de alguns dos nossos cronistas, um forte interesse por esses tipos tão cambiantes. Em João do Rio, por exemplo, fica clara a dificuldade de lidar com a ambigüidade desse personagem. Em alguns momentos, as descrições do cronista tornam o malandro um simples fruto do determinismo social e econômico: "aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice, que é sempre a pior das misérias" (Rio, op. cit., p. 24). Em outras passagens, porém, nota-se a preocupação em capturar as imagens da malandragem das ruas e das prisões por meio de um olhar que ensaia abarcar os seus múltiplos aspectos, tais como as particularidades dos trajes, do andar, do linguajar e dos hábitos, e aproximar os malandros da área portuária aos seus "correspondentes" em outras partes da cidade. Segue assim a máxima: "A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social." (Id., p. 12). Assim, ele encontrará, em cada um dos bairros e ruas cariocas, tipos de "idênticas posições" que se correspondem, ainda que em tudo se diferenciem na aparência.

 

Todos nós conhecemos o tipo do rapaz do Largo do Machado: cabelo à americana, roupas amplas à inglesa, lencinho minús­culo no punho largo, bengala de volta, pretensões às línguas estrangeiras, calças dobradas como Eduardo VII e toda a s nobo­polis do universo. Esse mesmo rapaz, dadas idênticas posições, é no Largo do Estácio inteiramente diverso. As botas são de bico fino, os fatos em geral justos, o lenço no bolso de dentro do casaco, o cabelo à meia cabeleira com muito óleo. Se formos ao Largo do Depósito 9 , esse mesmo rapaz usará lenço de seda preta, forro na gola do paletot , casaquinho curto e calças obedecendo ao molde corrente da navegação aérea - calças à balão. (Id., ibid.)

 

E aí temos, nesse último tipo, o retrato do malandro da Cidade Nova, provavelmente em trajes semelhantes aos usados pelos camaradas de Prata Preta. Ainda que episódico, o malandro, retratado por João do Rio, adquire certos contornos de indivíduo, ao contrário do que acontece em outros textos da época que o vêm como mero sinônimo de bandido: "Os companheiros do Prata Preta, pessoal da Saúde, são naturalmente repentistas, tocadores de violão, cabras de serestas e, antes de tudo, garotos mesmo aos quarenta anos." (Id., p. 156.)

Por certo, os companheiros de Jacques Pedreira não partilha­vam desses hábitos. Mas, no entanto, esses mesmos snobs trouxeram para os salões da burguesia os ritmos que antes ficavam restritos a certas áreas do Rio. J. Carlos, na charge "Próximo... bem próximo" ( Careta , 1914), já retrata essa mistura, senão das classes sociais, dos hábitos culturais da cidade. Diz o elegante senhor vendo os jovens dançarem de forma amaxixada: "Reparem, não há razão para condenarem nossa dança nacional. Nos seus requebros há qualquer coisa de altruísmo. Nota-se flagrantemente um acentuado amor ao... próximo." Parodiando Noel Rosa, a dança que o morro produziu bem cedo a cidade aceitou e usou.

As comemorações da Penha, inclusive, atraíam "a moderna burguesia urbana já em busca de algo exótico, forte, para quem o festeiro popular mesmo estigmatizado já desperta um interesse eventual, desequilibrando agradavelmente a vida civilizada das elites" (Moura, 1983, p. 73). O segredo dessa particular formação sociocultural carioca parece ser esse: um eventual agradável desequi­líbrio entre estes diversos Rios; de Carlos, de João, de Olavo, dos snobs , dos anônimos dançarinos e músicos da Cidade Nova. Desequilíbrio que permite que, por ora, esses espaços nem ao menos se visualizem e, que, em outros momentos, esses mesmos espaços se interpenetrem, seja por força de uma violência esmagadora, seja pela sedução dos ritmos e ritos. O ocioso que beira à criminalidade, atendendo pelo nome de malandro, vadio, vagabundo, numa ponta, ou smart , snob , janota, na outra, será o ponto de agradável tensão em uma sociedade que não abre mão nem das marcadas fronteiras sociais nem dos maleáveis limites do cotidiano.

 

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Notas de Rodapé

 

1 A respeito da preguiça em Mário de Andrade e Canoas e marolas ver Eneida Maria de Souza, "A preguiça - mal de origem", Alceu -Revista de Comunicação, Cultura e Política , vol. 1, nº 2, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2001.

2 Paulo Barreto sob o pseudônimo Godofredo de Alencar, apud Renato Cordeiro Gomes, in: João do Rio : vielas do vício, ruas da graça, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1996, p. 63.

3 Os termos "cena" e "obscena" são de Renato Cordeiro Gomes. A cidade obscena é a que está fora da "ordem" civilizatória e, conseqüentemente, tem que ser expulsa da "cena" da modernidade. Ver a propósito "A cena e a obscena", in: Todas as cidades, a cidade : literatura e experiência urbana, Rio de Janeiro, Rocco, 1994.

4 "A hierarquia social está ligada à possessão de uma fortuna, contudo sob a condição que essa fortuna seja parcialmente sacrificada às despesas sociais improdutivas, tais como festas, espetáculos e jogos." (Trad. livre.)

5 Miché, na época, designava cafetão. Segundo nota 23 ao capítulo II de A profissão de Jacques Pedreira .

6 A citação entre aspas é da crônica "Os mendigos" de João do Rio, in: No tempo de Wenceslau , Rio de Janeiro, Villas-Boas, 1917.

7 O termo, cunhado por João do Rio, refere-se ao lado fútil da sociedade abastada. Ver a respeito o capítulo de mesmo nome em Renato Cordeiro Gomes, João do Rio : vielas do vício, ruas da graça, op.cit.

8 A expressão é de Monica Pimenta Velloso e faz referência aos caricaturistas do período e jornalistas boêmios como Emílio de Menezes e Bastos Tigres.

9 O largo do Depósito é hoje conhecido como praça dos Estivadores e se situa perto da rua Camerino, na zona portuária do Rio.