Sumário

Antonio Pedro e a condição acefálica

Raul Antelo
UFSC

Antônio Pedro é um rapagão louro e forte, um ilhéu de olhos claros e tranqüilos, reservado nas suas atitudes discretas e ilumi­nado por uma dedicação confiante e tenaz à sua obra. Faz versos desde que se entende por gente, e aos dezesseis anos publicou o seu primeiro livro Os meus 7 pecados capitais (Coimbra, 1926). A êste seguira-se: Ledo Encanto (Lisboa, 1927); Distância (Lis­boa, 1928); Devagar (Lisboa, 1929); Máquina de Vidro (Lisboa, 1931). Todos estes, mais Quasi Canções e Solilóquio Mostrado , foram reunidos em Primeiro Volume (Lisboa, 1936). Publicara em prosa Diário (Praia, 1929) e A Cidade (Lisboa, 1931). Em 1935 publicara em Paris 15 poèmes au hasard , onde não se pode falar própria e puramente de poesia, pois que os seus poemas dimensionais participam das emoções visuais. E aqui tocamos num ponto capital da obra de Antônio Pedro: o dimensionismo.

Wagner queria que o drama musical fôsse uma síntese das artes, que em profundidade são irmãs e devem concorrer para a emo­ção simultânea. O dimensionismo, isto é, Antônio Pedro, o seu criador, vai mais longe. As artes não são apenas manifestações di­ferentes da mesma realidade profunda. As artes são, em realida­de, a Arte, una e indivisível. Portanto, a síntese no próprio ato criador, de modo que o resultado seja a formação de uma só Arte, que é a expressão da poesia de tôdas as coisas. Daí as experiênci­as que são os "poemas dimensionais" de Antônio Pedro, onde a côr da página, a disposição gráfica, as imagens, são fundidas com as palavras - formando tôdas elas o poema. A idéia da unidade da Arte foi aplicada simultaneamente por artistas de vários países, o que deu um caráter de "constatação" à teoria, e provocou o Manifesto Dimensionista , de 1936. 1

Como Antonio Candido deixa claro nessa apresentação da re-vista Clima , Antonio Pedro da Costa (Praia, Cabo Verde, 1909 - Moledo do Minho, 1966) vem de uma conseqüente produção vanguardista 2 . Considerado o introdutor do surrealismo em Portu­gal, além de organizar a primeira exposição lisboeta de Maria Hele­na Vieira da Silva em 1935, lança, um ano depois, o Manifesto dimensionista com Marcel Duchamp, de quem era íntimo amigo, assinando-o junto a Picabia, Kandinsky, Delaunay, Hans Arp, Miró e Calder. Foi, mais tarde, membro do colégio patafísico de Londres, mas talvez fosse o caso de sublinhar que sua contribuição vanguardista mais conseqüente será mesmo seu nome que, imitando a estratégia da razão diante do monstruoso, irá sobreviver como rótulo vazio de uma radical experiência acefálica. Refiro-me à Da Costa. Le mémento universel (1948), enciclopédia impulsionada, entre outros, pelo já citado Duchamp, no seio do grupo Surrealist Diversity (Londres, 1945), do qual, por sinal, participa o próprio Antonio Pedro. A en­ciclopédia acefálica é uma ilustração do princípio nietzschiano da obra de arte sem artista, entendida como corpo, como organização militar (a tropa prussiana) ou religiosa (a ordem jesuítica) mas, em todo caso, como uma realização em que o artista é tão-somente uma etapa preliminar.

Mas bem antes dessa experiência londrina, em Máquina de vidro , por exemplo, certos poemas de Antonio Pedro, como a "Can­ção quebrada a certa luz violenta", já apelam a esse uso maquínico do corpo que, mesmo descerebrado, consegue realizar funções vitais de significação funesta, em que o mecânico e o satânico se associam mutuamente a ponto de transformar o próprio poeta em máquina transparente:

 

Também me sinto oficina,
Se se anima
Em claridade,
A menina
Agilidade
Do meu sentido
De Artista,
Num sentido
Dinamista
da Verdade...

Pois uma das telas exposta no Rio e em São Paulo, " Refoulement ", ilustra bem essa experiência: um seio aciona uma polia que surge da palma de uma mão celibatária. Um pênis, à direita, parece estar unido, não só à mão, mas também a um olho imenso, que se encon­tra acima, à direita 3 . Estamos, mesmo que de maneira amadora, no espírito do Grande vidro duchampiano. Aliás, um dos poemas pu­blicados em São Paulo, "Invocação para um poema marítimo", par­te integrante de uma obra que ficaria inédita, Quandojá não se engana o coração com música , encerra-se com uma nótula, posterior à reda­ção do poema, que é uma sorte de escritura-leitura circular da este­reoscopia marítima de Antonio Pedro:

 

Ao princípio era o Verbo, e o Verbo em Água

Sua essência translúcida volveu.

Do caos originário o espelho inútil
Que apenas sua imagem não tomava,
(E outras imagens não havia) era,
Como os deuses presentes e cientes
Da sua eternidade sem passado,
O Tédio virgem e sem tempo. Monstros
Mortais nasceram, p'ra que o gesto
De tomarem-se os corpos e fazerem
Durar além da Morte, pelo sexo,
Sua existência, fosse reflectido.
E, a par da divina estabilidade
Do mar sem fim, estéril e pasmado,
Um'outra eternidade se creasse
Dolorosa nos partos e ansiosa,
Parcelada por vidas, entre a cópula
O nascimento e a morte.

Foi para que nem tudo fosse estéril
Vazio reflector - só água fria...

Dir-se-ia que o poema marítimo de Antonio Pedro, de óbvias reminiscências pessoanas, ilustra a experiência de vazio ou deflação sustentada pelo dimensionismo do autor. Com efeito, em seu Ma­nifesto de 1936, lemos que

 

Primeiramente a escultura cheia (escultura clássica) desventrou­se, e introduzindo em si própria o "vazio" esculpido e calculado do espaço interior - e depois o movimento - transformou-se em:

Escultura vazia

Escultura aberta

Escultura móvel

Objectos motorizados.

Seguidamente deve chegar a criação duma arte absolutamente nova:

A Arte Cósmica:

Vaporização da escultura. Teatro "Synos-sens". (Denominações provisórias). A conquista total pela arte do espaço a quatro di­mensões, uma "Vaccum Artis" até aqui. A matéria rígida abolida e substituída por materiais gasificados. O homem em lugar de olhar as obras de arte transforma-se ele mesmo no centro e no sujeito da criação e a criação consiste nos efeitos sensoriais diri­gidos num espaço cósmico fechado. 4

 

Essa idéia da vaporização da escultura, a Vaccum Artis, evoca imediatamente a ampola duchampiana de Air de Paris (1919), feita em sintonia com as estereoscopias do Pequeno vidro, da mesma for­ma que, um texto anterior de Antonio Pedro, o Manifeste planiste , já teorizava aquilo que será o âmago do projeto do Grande vidro , a quarta dimensão da arte. Diz, com efeito, o Manifesto de 1935:

 

Ce qui est donné comme mouvement, comme événement dans un espace d'un nombre quelconque de dimension (n), peut être représenté comme forme dans un espace ayant une dimension de plus (n+1) La littérature comme expression dans la ligne a "n" dimension. Le planisme comme expression dans le plan a "n+1" dimension (un de plus).

 

Partindo de Bergson, fonte aliás compartilhada com Duchamp, o planismo de Antonio Pedro apropria-se de duas observações do filósofo a respeito do transformismo de Minkovski e considera, en­tão, que o autor de Matière et mémoire

 

Il trouve que celui-ci contient d'une part plus - d'autre moins que la formation à laquelle il a été appliqué. Il le croit ainsi contenir une double source d'inexactitude. Si ces remarques formant une accusation contre l'opération mathé­matique - elles ne pouvent être maintenues en face du planisme. En effect, nous n'avonsjamais prétendu que la littérature se transpose inchangée dans le planisme. Tout au contraire. [...] L´"art à "n" dimension" (la littérature) partait de l'individu. C'était le sort de quelques-uns qui se débobinait dans les romans. L'"art à n+1 dimension" (le planisme) se soucie peu de la destinée individuelle. Parce que la signification de la vie individuelle s'efface et perd le privilège de la véritable existence par suite de la libre association du temps et de l'espace. D'autre part, parce que les lignes des destinées individualles composent la texture du plan de la destinée de l'humanité. Et voici ce qui préoccupe principalement le planiste: la destinée de l'humanité.

 

Apollinaire disse, em Os pintores cubistas , que Duchamp recon­ciliara a Arte com o Povo e o fizera, em grande parte, por essa busca de uma arte de quatro dimensões. Coincidentemente, também o planismo, " accaparant ces véhicules éléctriques de la transmission, a la possibilité de parler aux foules ", e para isso não desdenha nem o mau gosto nem mesmo a insignificância, visando achar uma linguagem característica à arte na era da reprodução mecânica e anônima. Daí que o planismo esteja interessado em desdobrar sua intervenção em um dispositivo desconstrutor da metafísica, um aparelho de medi­tação que, à maneira da máquina de Raimundo Lullio, abstraia tempo e espaço.

O exemplo que nos fornece o poeta é claro. Ele parte da frase Deus fez o homem e nos diz que ela pode ser lida de três modos su­cessivos: a) Deus fez o homem, b) Fez o homem Deus e c) O ho­mem Deus fez, o que equivale a afirmar, no primeiro caso, que o homem é obra de Deus; no segundo, que Deus fez-se homem, as-sim como o homem fez-se Deus e, no último enunciado, que Deus não passa de uma invenção do homem. Abrem-se, portanto, quatro variantes, a da criação, a da identificação humana de Deus e divina do homem e, por último, a da invenção humana do divino, alterna­tivas que Antonio Pedro espacializa dizendo que essa máquina de vidro alcança um sentido dinamista da verdade que outra coisa não é senão o sonho derridiano de plus d´une langue, mostrando, por­tanto, que "todos os pontos de especulação teológica ou antiteológica se invalidam mutuamente, mercê da simples redução de um concei­to abstrato (metafísico) a uma forma abstrata (neste caso o círculo) que lhe é correspondente" 5 . Como se nota, o aparelho metafísico de meditação desmonta, em última análise, o monolingüismo do Ou­tro e pode, nesse sentido, ser visto como antecedente da enciclopé­dia acefálica.

Ora, o episódio Da Costa nos evoca uma experiência anterior muito semelhante à de Antonio Pedro, envolvendo também um pin­tor estrangeiro em viagem pelo Brasil. Com efeito, Edouard Manet, durante sua permanência no Rio de Janeiro, hospedou-se em casa do senhor Ferreira Pinto e, para evitar equívocos, toda hora frisava, nas cartas a seu pai, que copiasse o endereço certo, Manuel Ferreira Pinto, rua Direita 39, " car tous les Portugais de la ville s'appellent Pinto " 6 .

De fato, a história repete-se com Antonio Pedro e os patafísicos londrinos que o acolhem. Diz a lenda, entretanto, que alguém, tal­vez Breton, mas provavelmente o surrealista belga E. I. T. Messens, ao cumprimentar uma roda de surrealistas onde se encontravam Antonio Dacosta e Antonio Pedro da Costa, ambos pintores e por­tugueses 7 , passou a cumprimentar todos como "Da Costa". Essa não­verdade acabou sendo, a critério do pintor português, uma verdade já que, em Portugal, argüiu, "todos somos Da Costa".

Há, na anedota, a marca de uma angústia típica dos anos de guerra: a definição identitária. Não por acaso o título sugerido por Duchamp para a exposição nova-iorquina de outubro de 1942 é " First Papers on Surrealism ", aludindo assim aos papers como docu­mentos. Tão imprescindíveis eram os tais documentos que, muito embora a atração exercida por Frida Kahlo, Diego Rivera, o próprio México e a vida generosa do jeito que ele gostava, Duchamp confes­sa numa carta que, apesar da tentação, decidira declinar o convite de visitar o país porque " j´obtiendrais très difficilement un visa de rentrée aux USA " 8 . Antonio Pedro pôde também assistir, em Moledo do Minho, perto da fronteira com a Espanha, freqüentes deporta­ções, de destino inequívoco após a Guerra Civil, que muito angus­tiavam ele e seus colegas, como Antonio Dacosta, cujos monstros bizarros bem poderiam ter base histórica nesses episódios.

Mas desconsiderando os detalhes biográficos, a história da enciclopédia acefálica e dos papers como pura indicação ficcional auto-sustentada, vale também como estratégia identitária mais per­manente já que, tal como o Ninguém com que Ulisses se mascara para melhor derrotar os cíclopes, o apelativo Da Costa, para além da própria invisibilidade da língua portuguesa, servia aos efeitos anárquicos do anonimato ( l'âne au nid mat) , i.e., à idéia de uma arte de massas e, portanto, anônima, fornecendo, de passagem, um substrato muito concreto à teoria nominalista da arte moderna, cons­truída como um tabuleiro de xadrez em que a vitória depende do correto movimento das peças.

 

Xadrez

L'art est l'empreinte de la vie: s'il y a distance entre art et vie, elle ne peut être qu'infra-mince.

Herman Parret, Homo Orthopedicus

 

É conhecida a paixão de Marcel Duchamp pelo xadrez, imortalizada numa cena de Entr´acte , o filme de Francis Picabia e René Clair, em que vemos Man Ray, jogando uma partida com Marcel, sobre os telhados de Paris. Sua busca da originalidade e da autonomia mais absolutas fazia com que ele freqüentasse a obra de Raymond Roussel ou Alfred Jarry com o mesmo entusiasmo com que encarava uma partida de xadrez, jogo que o fascinava pela sua rígida combinação de regras que lhe dava, entretanto, a mais absoluta disponibilidade de combinações. Seu biógrafo, Calvin Tomkins, registra uma fala em que Duchamp teria admitido que "o xadrez é uma obra maravilhosa de cartesianismo e é tão imaginativo que, à primeira vista, nem mesmo parece cartesiano", chegando a compará­lo com a arte, muito embora "a atitude na arte seja totalmente distinta. Provavelmente, aquilo que me atraía era enfrentar essas duas atitudes, como uma espécie de todo" 9 .

Roger Caillois chegou a resenhar, na Nouvelle Revue Française, um livro precioso de Duchamp sobre o xadrez, Les échecs artistiques et l'opposition et les cases conjuguées, cujo tema é uma situação bas­tante insólita de final de jogo, em que sobram apenas duas figuras de rei e um ou dois peões por jogador . Colhemos, nessa resenha sobre o saber diagonal, um conjunto de idéias que aludem não só à matriz estrutural do jogo, como também à apatia acefálica que Caillois está, paralelamente, elaborando junto a Georges Bataille, Michel Leiris ou Pierre Klossowski, nas sessões do Colégio de Sociologia. Referin-do-se ao jogador de xadrez, por exemplo, Caillois observa, com cla­ras reminiscências sadianas, que

 

L´imagination ne lui fait pas défaut, mais il veux mieux l´asservir que s´y soumettre, dans la pensée que la domination est préferable à la joissance ou par expérience que la jouissance la plus aigué réside dans l´exercice même de la domination. Pareillement, on imagine qu´il se trouve des êtres - les mêmes - qui, dans l´amour, jouissent moins du plaisir qu´ils éprouvent que de celui qu´ils provoquent, car le premier ne les laisse que la possession d´eux-mêmes, alors que le second leur donne celle d´autrui; et c´est comme s´ils avaient plus d´orgueil que de sens. [.] Il est en outre séduisant de conserver partout la situation dujoueur qui, comme il n´est pas sur l´échiquier où se joue la partie, n´est pas non plus une des pièces importantes ou sécondaires qu´il y fait manoeuvrer, en sorte que, malgré l´importance pour lui à tout instant sans égale de cette partie, il lui est toujours loisible, en dernier ressorte, de faire sur la réalité les réserves d´un créatuer sur sa création. 10

 

Em várias outras ocasiões, Caillois chega a associar o xadrez a um dispositivo maquínico, no caso, a tábua periódica de Mendeleiev, que ele classifica como um tabuleiro de xadrez absoluto, onde ocu­pam ou virão a ocupar seu espaço os corpos descobertos, ou ainda a descobrir, que nada mais são do que amostras que os outros mun­dos enviam ao nosso, através do espaço, como meteoros abjetos 11 .

Arte das combinações, o xadrez é, portanto, um lance do acaso, ameaçando a estabilidade material da acumulação. Ele está, sintoma­ticamente, ligado à América desde o início mesmo da colonização. Um dos capelães de Felipe II, Ruy López, notabilizou-se como um dos melhores jogadores do mundo e, no século XVII, um italiano - Greco, o Calabrês - percorreu toda a Europa e mesmo a América do Sul, disputando partidas ardentes e temerárias, que lhe deram enorme reputação 12 . Até mesmo Edgar Allan Poe será considerado um brilhante jogador de xadrez, como prova seu relato "O jogador de xadrez de Maelzel", citado por Benjamin em suas "Teses sobre filosofia da história", como exemplo da simulação e do disfarce. Digamos, por último, que em 1944 Julien Levy monta em sua galeria nova-iorquina uma exposição sobre "O imaginário do xadrez", convidando Duchamp que então realiza um Jogo de xadrez de viagem , infelizmente perdido.

Ora, isto posto, creio que já estamos em condições de melhor analisar um peculiar tabuleiro de xadrez estampado na Enciclopédia acefálica Da Costa . Trata-se do verbete " Empreintes digitales " (Impres­sões digitais), que reproduz, de fato, um quadrado, composto, a cada lado, por quatro recortes de dedos de cidadãos chamados, respecti­vamente, Christoval Acosta (1572), Manuel da Costa (1586), Uriel Acosta (1404), Margherita Costa (1647), Jean de la Coste, conheci­do como Costa (1676), Emmanuel Mendes da Costa (1776), Agos­tinho Rebelo da Costa (1789), um tal da Costa (1804), Heinrich von Costa (1838), Benjamin Franklin da Costa (1862), John Dacosta (1879), Joam da Costa (1881), Gaston da Costa (1889), Paul d'Acosta (1896), Didio Iratym Affonso da Costa (1939) e Labriol da Costa (1947).

Podemos, a princípio, argumentar que, sendo a arte um simples encadeamento de diferenças infraleves, é lógico que o dinamismo da verdade nos conduza, quase que imperiosamente, à problemática da impressão e do traço. Como diz o semiótico Herman Parret, na medida em que a arte é impressão da vida, se houver distância entre arte e vida, essa distância só pode ser infraleve. É o que vemos em With my tongue in my cheek (1959), a impressão­moldura de Duchamp 13 . Por isso mesmo, e talvez por se afastar, decididamente, da noção de verdade como sentido herdado, uma das melhores leituras dessas impressões digitais pertence a alguém que não viu a obra, muito embora lhe conheça os efeitos. De fato, se lembra­mos que a impressão digital é uma técnica adotada, a partir dos trabalhos do delegado Vucetich, pela polícia de Buenos Aires, logo no início do século XX, como estratégia identitária de controle estatal sobre anarquistas e imigrantes, não nos deve supreeender que essa leitura do que não se viu pertença, justamente, a um escritor também argentino, Ezequiel Martinez Estrada.

Sem conhecer, evidentemente, a Da Costa, Martinez Estrada toca nessa questão candente, que levará Roland Barthes a afirmar que assistimos ao esgotamento do mundo das pessoas uma vez que, não sendo a identidade uma pessoa, o mundo futuro corre o risco de ser um mundo de identidades, pela disseminação dos fichários policiais, mas nunca um mundo de pessoas. É esse também o motivo de al-guns ensaios de Martinez Estrada, tais como Radiografia do pampa ou A cabeça de Goliath , em que se discute, justamente, o papel das massas e o Estado ou as relações entre cidade e subjetividade. Lemos, então:

 

El ajedrez no necesita, en absoluto, la realidad. Haya sido o no, en sus orígenes, emblema de la guerra o de la vida, como puede serlo aún la música de los pájaros, ha cerrado en sí mismo el círculo de las representaciones. En realidad, no representa nada, se presenta a sí mismo. Expresan ideas, expresan ajedrez. Y esas ideas obedecen a las mismas leyes que presiden toda otra actividad mental. Es el hombre quien lojuega, pero el hombre en tantojuega, que no es todo él. El ajedrez no absorbe al mundo interior la realidad externa. Más bien proyecta hacia afuera una realidad ideal. Y esa obra, objeti­vizada en la partida, es a lo más un diagrama, un sistema de signos, un plexo de símbolos, sin utilidad, sin forma plástica o rítmica en función de los sentidos, sin contacto con nada de lo existente. 14

 

Por isso mesmo, o diagrama das impressões digitais é a pró­pria acefalidade enciclopédica das margens 15 . Digamos, assim, por­tanto, que concebida como um sonho de Monsieur Teste, a Da Costa, uma enciclopédia total, infinita e periódica, era, à maneira da enci­clopédia borgiana, um documento pós-literário. Incluía não somente

o verbete "enciclopédia" mas traçava também, através das "impres­sões", um espectro imaginário entre dois mundos cujo irrefreável nomadismo escrevia, simultaneamente, a própria história colonial do Brasil e de sua mescla cultural, tão incessante quanto bizarra, feita de portugueses, cristãos novos e escravos africanos, arrancados "da costa".

Rui Mário Gonçalves define a pintura do açoriano Antonio Dacosta, muito marcada pela estética do cabo-verdiano Antonio Pedro, como uma casual mistura do que existe com o inexistente, incorporando à arte o que nunca foi reproduzido 16 . Da mesma for­ma, esse conjunto vazio que o surrealismo internacional denomina Da Costa era, em suma, o nome da arte na época da reprodutibilidade mecânica, o nome do semblante do artista pós-nacional e até mes­mo o suporte de uma metáfora glocal , a do barroco tropical brasileiro.

 

Ungaretti

On peut voir regarder. Peut-on entendre écouter, etc.?

Marcel Duchamp, Da Costa. Le mémento universel .

 

Antonio Pedro pede o prefácio de seu catálogo paulista a um professor da Universidade local, Giuseppe Ungaretti - é possível que com a mediação de Paulo Emílio Salles Gomes, um dos mais ativos chato-boys , como os chamara Oswald de Andrade. E penso tratar-se do crítico brasileiro já que a correspondência de Ungaretti a Jean Paulhan, seu amigo e companheiro à frente da revista Mesures, cita, de fato, um Paulo Emílio que o editor, erroneamente, interpre­ta como Paolo Emilio , pseudônimo de um escritor menor italiano e não o nome do brilhante autor de Jean Vigo (1957) 17 . O texto do catálogo de Antonio Pedro, não recuperado em sua forma original nas obras de Ungaretti, é praticamente um inédito, porém, não é esse seu valor maior para nós nesse instante.

Interessa, no momento, frisar que Ungaretti chegara ao Brasil pouco antes, em 1937, fugindo, senão do fascismo, ao menos da guerra. Depara-se, porém, com o autoritarismo corporativo de Ge­túlio Vargas e dedica-se, enquanto professor de literatura italiana na USP, a percorrer o Brasil até a fronteira argentina. Conta em uma carta a Paulhan, que aí encontrara

 

Papillons (par millards), toutes sortes d' insects fastidieux sur une terre horriblement grasse, et l' eau, l' eau et le ciel immenses, et qui donnent la pleine solitude comme rien autre au monde - et des orangers importés au temps des Jésuites, qui avancent et se multi­plient, vraie épidemie, curieusement chinois au milieu des bambous.

 

Curiosa descrição do novo contexto tropical. Ela começa com o topos do Esclarecimento ofendido - la boue -, a lama, apimen­tado, neste caso, pelo tópico abjeto dos insetos, que pouco antes servira aos surrealistas de Documents para fulminar o sublime kantia­no e encontrar uma deriva informe . Aponta, a seguir, o caráter de uma cultura híbrida e mestiça que, como as laranjeiras, não cessa de se desdobrar e multiplicar; mas Ungaretti arremata, por último, essa sua descrição heteróclita e até certo ponto monstruosa com uma avalia­ção surpreendente: chama esse tempo longe de tudo de " belles journées ". É que, de fato, o belo aqui deve ser entendido como pro­veitoso porque dessa viagem provém toda uma teoria do barroco, do fragmento, e até mesmo da cultura brasileira, vista por um europeu letrado e refinado, mas também, em contrapartida, uma teoria da modernidade ocidental armada a partir da peculiar inscrição brasi­leira. Reconstruí-la, nesta ocasião, obriga-nos à parcimônia do ar­quivista.

Como já apontamos, essa primeira exposição paulista de An­tonio Pedro da Costa foi promovida, em 1941, pelo grupo Clima, fato relevante per se mas ainda mais pelo texto de Ungaretti que a acompanha. Sua importância reside em nos revelar uma teoria dife­rencial da estética que, na esteira das estereoscopias duchampianas de 1918, fundamento, em última análise de uma arte pós-retiniana, prepara o caminho para uma redefinição do realismo que ganharia chancela definitiva, quase uma década depois, pela mão de outro escritor híbrido, cubano de nascimento, francês e surrealista de forma­ção, Alejo Carpentier, típico representante, com suas colaborações para Documents , daquilo que Clifford conhece como o surrealismo etnográfico.

Detenhamo-nos, por enquanto, na argumentação de Unga­retti, que começa narrando um encontro singular:

 

Uma vez tendo-me encontrado na lande argentina entre o Rio Dulce e o Salado, ocupados continuamente em mudar o leito à medida em que a terra que transportam se faz um pouco alta e os emborca para o lado, assisti naquela desolação a um espetá­culo memorável. Um homem junto à sua cabana sustinha nos braços uma ânfora funerária, não muito menor que ele, escavada pouco antes. Continha um esqueleto e quem sabe como teria sido possível acomodar o morto ali dentro que assim descarnado parecia a espinha de peixe do "Repasto imundo". Examinando a ânfora entrevi um ornato em que se via bem que a grega é a estilização de duas mãos que se apertam. O homem fez-me olhar outros vasos que tinha encontrado, e vi assim a mão com um olho ao meio da palma para significar, suponho, que a primeira mar­ca poética da humanidade, ainda anterior à oral, é a imagem gráfica, ou também para significar que a mão obedecia com ra­pidez ao olho seguro e que o defunto era talvez archeiro. Outros ornatos combinavam em unidade cabeças de serpente e asas, o rastejar dos répteis e o faiscar do raio, lágrimas de mulher e o pautado das gotas da chuva, para fixar, imagino, um momento determinado da estação, fazer alusão a um rito nupcial ou quem sabe. Havia ali eufórbias, algumas figueiras da Índia na poeira e uma árvore duma certa majestade entre cujos ramos tinha sido construído uma espécie de falanstério de proporções inacreditá­veis. Curioso, toquei-o imprudente e fugiram gritando, como obsessos, uma centena de papagaios desaparecendo como uma nuvem prodigiosa de bandeiras. 18

 

Esse episódio carrega-se de uma peculiar definição estética porque estimula, em Ungaretti, aquilo que chamaríamos uma anam­nese de entre-lugar, algo entre o medieval e o contemporâneo, entre a poesia provençal e a de seus amigos, os modernistas brasileiros. Esse recurso lhe permite, em suma, armar uma ficção de ambos os mun­dos que dê conta de sua peculiar situação enunciativa. A memória do poeta orienta-se então em direção àquilo que, no centro da expe­riência de escritura, constitui o núcleo mesmo do real. Não nos nar­ra, com efeito, uma assimilação senão uma simulação; não nos coloca uma vivência banal mas um encontro específico com uma essência da experiência que constantemente foge de nossa apreensão. Não apenas para caracterizar a experiência de Ungaretti, mas também para dar conta do próprio encontro híbrido da diferença, poderíamos usar o conceito aristotélico de tyché. Dele se vale Lacan, traduzindo-o como encontro com o real , para se referir a algo que está para além do automaton , i.e., do simples retorno do idéntico. Dele lançará mão Roland Barthes para desconstruir o orientalismo 19 . Ora, a tyché é aquilo que, com efeito, repete-se, no caráter barroco americano; é sempre algo da ordem de uma diferença, um deslocamento, que se produz como por acaso, até o ponto de determinar, inclusive, que essa função da tyché , do real como encontro - o encontro que pode fal­tar, o encontro que é sempre uma falha ou uma ausência - se apre­sente sob uma forma, a do traumatismo, que por si mesma já é suficiente para despertar nossa atenção, persuadindo-nos, em pou­cas palavras, que o encontro com o real pertence sempre à ordem do inassimilável. A condição excessiva dessa paisagem barroca america­na, definida então como o inassimilável, é também aquilo que desa­cata toda lei.

É conhecida a conseqüência que dessa premissa tirará a futu­ra estética do real-maravilhoso: a arte latino-americana é fundamen­talmente barroca por ser acéfala e não possuir matéria própria 20 . Parte-se, nesse caso, da premissa de que o barroco é não-material ou de que, em última análise, sua matéria é a incessante maneira em que uma determinada forma se desdobra sobre si mesma. O barroco, argumentará Ungaretti, e com ele, mais tarde, Carpentier ou Lezama Lima, Glauber Rocha ou Haroldo de Campos, ele é a fissura da Europa na América, dobra espacial que se desdobra mais de uma vez, de maneira infraleve, como as laranjeiras jesuíticas no plano do tem­po. O barroco é, assim, a dobra do ur-histórico, i.e., do tempo pri­mordial, no vazio do agora. Sob essa perspectiva, cabe ao presente determinar o passado, cabe à exposição imantar a relação e cabe, por último, à linguagem tornar vívida a representação.

É, portanto, a partir da São Paulo dos anos 1940 que Ungaretti reinventa uma tradição por simples carência e imaterialidade do tempo-já:

 

Indefinido como é, o século XX não encontrou a sua língua própria. E, no entanto, não há modelo a que não tenha recorri­do nestes oito lustros: afrescos de Pompeia, estátuas da Ilha de Páscoa, fetiches de bantus, hieróglifos de tortual e da cerâmica da necrópole de Santiago del Estero, tão estranhamente idênti­cos aos de Ilion, virtuosismos do barroco em desenhos do corpo humano sempre anatômica e perspectivamente veracíssimos apesar de absurdo o movimento e de difícil o escorço imagina­do, etc.; mas o passado perdia toda a eloquência diante da hu­mildade e do desespero de quem o consultava.

Como deveríamos confessar-nos desmemoriados em face desses signos memoráveis se, procurando a razão mais obscura que determinou a sua traça, não houvéramos chegado, imitando-os fielmente, senão a decifrar, cada um de nós, o próprio, indivi­dual e incomunicável segredo. Os grupos eqüestres de dióscoros da Praça do Campidoglio, Castor e Polux da Praça do Quirinal, a arte suprema de Fídias e de Paraxíteles e a arte decorativa do Baixo Império: a Roma miquelangelesca, a berniniana e a borrominiana, que coisas não ensinaram a De Chirico? A pedra dos cavalos dissolveu-se em carne e eles arrojaram-se contra as ondas duma praiazinha me­lancólica perseguidos dos domadores. O tempo? Não há maneira de calcular-lhe a profundidade e percorrer-lhe a escala infinita de planos, como outrora, colocando cada coisa a sua distância; e tudo se confunde num único plano, precipitando-se contra nós; e não possuímos outras palavras senão as que nos fornece a cul­tura, mas uma cultura depauperada de toda substância históri­ca, tornada prodigiosa como, para os olhos primitivos, o sol, as estrelas e a lua. 21

 

Para Ungaretti, completada a tarefa de o romantismo huma­nizar a natureza, a missão do modernismo de entre guerras não podia ser outra do que humanizar o monstro nascido da própria humani­dade. Mas como a história é o cansaço de Sísifo, já sabemos aonde nos conduz essa inquestionada hierarquia do humanismo apregoada pelo poeta italiano. Mera conseqüência da autonomização da esfera artística e do divórcio que daí para frente passa a imperar entre ética e estética, o barroco americano buscaria, portanto, encontrar uma redefinição alegórica desse vínculo. Refirindo-se, precisamente, aos impasses da modernidade, argumenta então Ungaretti que:

 

Em tais casos de amnésia histórica, por parte da linguagem, o poeta pode sempre, embora com isso sofra, limitar as suas preo­cupações à comunicabilidade mágica das palavras, das linhas, das cores e dos sons, que é independente do seu valor histórico e reside nas próprias fontes do ato poético. O artista dos últimos quarenta anos transferiu por isso da natureza para o interior do homem as florestas, os terrores e as tempestades, previu em si mesmo a aurora e os esplendores que fatalmente na história su­cedem sempre ao sacrifício, reconhecendo que não podia existir estilo, língua universal duma época, sem uma certa unidade moral alcançada pelo mundo, a não ser por negação e por as­sombro.

 

Esta heroicização um tanto irônica do presente, esse jogo de liberdades com relação ao real que tende a sua transfiguração alegórica e, por último, essa elaboração ascética de si mesmo, problematizam, simultaneamente, a relação do barroco latino-americano com o próprio presente, i.e., com o caráter histórico de suas representações e a traumática constituição do sujeito autônomo, o que perfaz um conjunto de fatores que tornam a modernidade uma particular ficção auto-sustentada, a de nossa própria ontologia crítica.

De resto, a posição de Ungaretti vem confluir com uma po­derosa tradição latino-americana de pensar a diversidade cultural, a qual, seja dito de passagem, por considerar os indivíduos como "por­tadores de traços de cultura, cuja tendência é no sentido da dissemi­nação e da combinação, por todos os meios, com outros traços" 22 , propunha já, a essas alturas, no intuito de caracterizar os intercâm­bios simbólicos, o conceito de transculturação , tomado por sinal do cubano Fernando Ortiz, porém agora inscrito, como metáfora de plu­ralidade, na lógica legitimadora dos enunciados da modernização.

Crítico desse conceito, a seu modo, ainda iluminista, porque reduz o cultural ao letrado e este ao urbano-colonial, o hibridismo pós-ocidental que aqui se insinua (em Gilberto Freyre como metáfora patriarcal; em Ungaretti como metáfora tradicional) escande a diferença local como um peculiar processo de significação por meio do qual estamentos culturais, como as novas camadas urbanas integradas pelo getulismo emergente, tendem a discriminar-se entre si e a legitimar-se, enquanto enunciações, praticando, nesse sentido, uma metomímia do plural e uma sintaxe do cultural. O hibridismo real-maravilhoso não aponta, a rigor, limites senão que assinala limiares. Não arma conjuntos (é antinacionalista) mas, em atenção à prominência dos usos culturais e às práticas etnográficas de origem surrealista, interessa-se por aquilo que poderíamos chamar a desco­leção antropológica. Não fixa peremptoriamente um lugar inequí­voco para as subjetividades emergentes mas estimula, pelo contrário, certo nomadismo e labilidade simbólicas. Em outras palavras, afirma, ambivalentemente, uma substância específica (o colonial é um locus enunciativo) mas também confirma a ausência de identidade nacional como materialidade irrisória (o sujeito não passa de mera posicio­nalidade discursiva).

Pouco importa se, deliberada ou involuntariamente, essa ex­periência do barroco tropical, entendida como tradução do híbrido latino-americano, isto é, uma simples dobra pós-ocidental, nos pro­põe um máximo de intensidade associado a um máximo de impos­sibilidade, o que, além de explicitar sua procedência (em primeiro lugar, Nietzsche, descoberto por Ungaretti, junto com Mallarmé, em plena adolescência; em seguida, Bergson, seu mestre no Collège de France, a introduzi-lo em Spinoza e, portanto, na tradição acefálica que repercutiria, mais tarde, em Deleuze) esse barroco periférico, dizia, desgarra o sujeito de um lugar discursivo específico e tenta, jus­tamente, para dizê-lo com palavras de Foucault, " arracher le sujet à lui-même, de faire en sorte qu'il ne soit plus lui-même ou qu'il soit porté à son annéantissement ou à sa dissolution " 23 .

Essa reflexão de Ungaretti deve, em conseqüência, ser encara­da como una autêntica filosofia do ponto de vista cosmopolita, com a ressalva de ser também " une entreprise de dé-subjectivation ", que mal poderia acatar uma simples distribuição binária e global do capital simbólico. Antes pelo contrário, diríamos que, a seu modo, ela é uma peculiar redefinição da antropofagia brasileira, desprovida de eufo­ria vindicativa, ainda que dotada de uma singular contundência teó­rica que já não aposta à transparência do fenômeno singular mas ao caráter estriado do evento glocal ou híbrido.

Ungaretti nos propõe, em suma, uma linguagem obtusa que configura uma ambivalente matéria de expressão. Essa balbúrdia do papagaio em que se materializa a diferença brasileira, como alegre ou gaia ciência da diferença simbólica, essa linguagem perdida po­rém virtual, animal ainda que humana, é, com efeito, um arabesco indeterminado e de árdua compreensão para um ouvido pouco aten-to. Ambígua, torna-se opaca aos olhos da razão. Extremada e radi­cal, ela é descontínua e inconseqüente em relação à linguagem dos outros homens. Marginal, por não se vincular a um centro (não nos esqueçamos que Ungaretti, um "egípcio" educado na França e aportado no Brasil com anuência de Mussolini), apresenta um dis­curso subalterno, por não se inserir em hierarquia específica, e mais ainda, efêmero, porque o próprio desse discurso é ser recorrente e infinito.

Através da linguagem do papagaio materializa-se essa substantia sine qualitate do brasileiro, narrada nas aventuras de um herói sem­caráter, Macunaíma, porém, mostra-se também, simultaneamente, tanto a possibilidade como a impossibilidade de sua própria signifi­cação, fazendo com que essa linguagem arrevesada se dobre na con­tingência da falta de fundo da letra e se transforme a si própria num vertiginoso simulacro mutável, mesclando os campos do ser e do sentido e abandonando toda referência ao Outro como algo inaces­sível, situado, justamente, no limite do maravilhoso, do primitivo ou então do feminino 24 .

Ungaretti não parte, como Borges, de uma escuta européia, como a do rouxinol de Keats; em seu esforço por vincular a dicção brasileira com a emergência do glocal , recua, entretanto, ao falcão da poesia árabe e provençal (Marcel Duchamp irá decompor a nobreza desse pássaro vendo nele apenas um faux con , premissa indispensá­vel para seu teorema pós-artístico e ambientalista, Etant donnés, não menos brasileiro , em sua filigrana de referências amazônicas, do que a reflexão de Ungaretti). Interpela-nos portanto o poeta italiano, questionando:

 

Será que não sentis com quanto de verdade, se enriqueceu o fabulejar desde que a audácia poética portuguesa do século XIV substituiu ao falcão o papagaio que é, de fato, monstruosamen­te, um animal falante? Além disso, a chegada inesperada do pa­pagaio à poesia européia enchia-a duma cor tão verdadeira, faustosa e remota, embora real, que a surpresa se tornava de qual­quer modo como a sua lei mais secreta. Somente dois séculos depois um outro poeta europeu, Tasso, ousará citar o papagaio na Jerusalém libertada e, embora o barroco estivesse a ponto de nascer, não voltando a si da surpresa da novidade de feitos que ia espalhar-se, lhe chamará monstro. Chamá-lo-á monstro mas restituindo, é verdade, à palavra quase o seu sentido latino como sinal mostrado pela virtude misteriosa das coisas a fim de des­pertar a atenção e o afeto dos homens, e revelar uma verdade pa-tenteando-a e provando-a ao mesmo tempo. Por causa do valor etimológico do vocábulo e também porque ela o tinha feito so­frer tanto, Petrarca, chamou Laura altaneiro e raro monstro das mulheres.

 

Tamanho monstro aponta para a radical heterogeneidade do idêntico, essa máscara em que o outro, o menor, vê-se a si próprio como a não-verdade da verdade e nos fornece uma definição do ar­tista e de sua arte. Assim, a máscara heterológica, barroca e tropical, do odor di femmina passa a constituir e conformar esses sujeitos que, ao fim e ao cabo, têm uma relação mais próxima e intransferível com o vazio já que, por serem não só artistas mas, sobretudo, artistas pós­nacionais, eles encobrem uma ausência e, ao mesmo tempo, tornam explícita a diferença. Cabe, portanto, aos semblantes, em especial ao semblante do híbrido cultural, sustentar o caráter simultâneo da modernidade em curso e, além do mais, colocar questões que têm a ver com a ficção, a verdade e a instituição 25 . Nesse sentido, se a con­dição menor e fragmentária do barroco tropical encerra alguma ver­dade, só ele sabe que, a rigor, a verdade não existe, ora porque essa verdade jamais poderá ser confundida com a fácil racionalização dominante, ora porque, em última instância, essa verdade não tem dimensão própria, isto é, não tem lugar que a abrigue e preserve de seu exterior.

Chegados, portanto, a este ponto da análise, é bom não per-der de vista que o discurso de Ungaretti tenta interpretar um con-junto de imagens, as de Antonio Pedro, tanto como as dele, empenhadas em arrancar o sujeito de si mesmo, obrigando-o a dife­rir de si, levando-o a seu aniquilamiento ou à dissolução, tal como pioneiramente observaram Mário de Andrade, Jorge de Lima ou Antonio Candido 26 .

 

Mário de Andrade

Tu as sans doute entendu parler d´une grande exposition interna­tionale à São Paulo (Brésil) au mois de Septembre prochain... Carta de Marcel Duchamp a Man Ray , Nova York, 13 jun. 1948

 

Não se enganara Antonio Pedro em pedir o texto do catálogo a Ungaretti. A leitura que de suas obras fez o autor de Macunaíma estava muito mais presa à funcionalidade social da referência. Com efeito, Mário de Andrade avalia a obra de Antonio Pedro à luz de uma teoria, desenvolvida aliás em vários de seus ensaios, de que o importante não era o assunto mas a maneira de tratar o assunto. Há, portanto, a princípio, um acordo tácito entre ambos os artistas quanto ao papel da arte e sua diferenciação em relação ao belo natural.

Mas, por outro lado, o surrealismo do artista português defi­nia a beleza por sua atitude compulsiva, vinculada à teoria do cho-que e, de algum modo, também filiada à experiência fisiológica, psicológica e, em última análise, psicanalítica da histeria, processo que, historicamente, nos levaria a postular uma identidade convulsiva do próprio artista 27 . Mário de Andrade, pelo contrário, não via o ar­tista, nem a partir de uma versão convulsiva do sublime, nem sob o prisma passivo do método paranóico-crítico. O artista, a seu ver, era um mediador simbólico e, como tal, sua função consistia em filtrar, elaborar e traduzir emoções que não são meramente individuais mas coletivas. A ética reivindicada nesse julgamento não é, portanto, de linguagem mas de forma e, nesse sentido, de norma. Seu alvo, a ho­mogeneidade nacional.

É incontestavel que para Antonio Pedro, o assunto não é um pretexto quando muito inspirador, que sirva ao artista para fa­zer arte. Preliminarmente, pois, assim revalorizando o assunto, percebe-se no pintor a intenção muito firme de não confundir arte com beleza; e muito menos com a beleza objetiva, isto é, com a técnica de realização duma arte por meio dos seus materiais. E nisto estou perfeitamente de acordo com o artista. Pela contemplação dos quadros expostos, é visivel ainda que para Antonio Pedro, não se deve limitar uma arte pelos seus elemen­tos materiais de realização. Quadros há, em geral os mais antígos, que nada procuram representar do mundo visivel; outros apare­cem em que imagens logicas e concientes, mulheres, flores, ani­mais, se ajuntam sem correlação logica em puro associativismo subconciente; em outros surgem, por exemplo, uma mulher com cara de pato, ou uma cabeça separada de seu corpo, como se estivessemos no dominio dos sonhos. Por ai se percebe que a pintura de Antonio Pedro está intimamente ligada à incompre­ensibilidade da musica e da coreografia pura, e às associações libertas da concatenação logica do conciente, que é como o as­sunto pode se manifestar em poesia ou na prosa de feição apocaliptica.

Por tudo isso julgo perceber que Antonio Pedro se serve da pin-tura para fazer Arte, coisa em que o elogio fortemente.

 

Mas julgando, a seguir, que a acefalia discursiva é simples indivualismo egoísta, Mário não hesita em condenar tal opção.

 

Se libertando por um lado das restrições pictoricas para realizar sua arte, e por outro lado se libertando da logica conciente dos assuntos historiados, não creio, possivel negar que o pintor se coloca na maior exacerbação do individualismo. Digo mais, sem que isso seja mais que uma constatação: ele se entrega a essa in­flação até o absurdo do individualismo, que tantas vitimas tem feito na arte contemporanea. Estamos em pleno dominio de uma arte em que o artista almeja comover pela representação do seu mundo interior. Muito que bem. Está claro que, como os elementos do mundo interior de Antonio Pedro são incontrolaveis por mim, observa­dor, esses elementos só me podem valer pela sua sugestividade lirica, pela sua qualidade tematica e concomitantemente pelos valores já agora exclusivamente pictoricos com que essa tematica me agrada, me "prende sem reservas" como diria qualquer hedonista. Os temas, a terminologia plastica, enfim, o assunto que Antonio Pedro me propõe é um elemento dinamico que desperta meus dados e experiencias adormecidas e declancha em mim um "estado lirico" exclusivamente meu, apenas provocado pela maior ou menor validade... motora de obra. Assim, se num quadro "recebo" umas moscas de excelente invenção e noutro uma ronda de quatro dansarinos deliciosissima de cor e tão por­tuguesa de sentimento, certas associações intimas provocadas em mim por esses motivos, me deixam num estado de lirismo ver­dadeiramente feliz. E creio que desta maneira deva ser vista e apreciada a arte de Antonio Pedro, para que o possamos com­preender e não lhe pedir o que ele não quis nos dar.

 

Neste ponto, impõe-se uma verificação que, a rigor, marca a distância decisiva de Mário de Andrade com relação ao surrealismo. A discrepância consiste na

validade itinerante desta sua concepção de arte pois que se as moscas me encantam por tal associação intima a outros não in­teressarão nada, ou se associarão a uma dolorosa experiencia de amor. Ainda mais: o proprio quadro arrisca-se tornar permanen­temente itinerante não só pelo valor analítico de elementos que não se ligam logicamente como porque raramente o conjunto poderá ter para o observador uma força associativa identica em todos os seus elementos temáticos. Ou melhor, em todo o seu vocabulario. Assim, tal manifestação de arte se torna profunda­mente relativa, individualista ao extremo e orgulhosamente a­social. Antonio Pedro é um representante legítimo do caos esté­tico em que nos debatemos, e de que só mesmo uma nova "Sachliehkeit" socializada poderá nos tirar.

 

Mas como se não bastasse discrepar"adorniana", esteticamente, dessa beleza convulsiva em nome de uma objetividade engajada, Mário de Andrade explicita que onde ele se afasta totalmente, não já da concepção, mas da realização artística de Antonio Pedro: é no abuso de simbologias que ele reputa facílimas, usando, praticamen­te, os mesmos argumentos de Clement Greenberg para combater a arte de Duchamp e o surrealismo em seu conjunto.

 

Em tais criações verdadeiramente livres da conciencia logica o assunto é meu, e me é possível aquele estado-de-graça da cisma, em que os motivos tematicos ajuntados no quadro não me pren­dem, não me estragam a liberdade sonhadora com a sua estrei­teza totalitarista. [...] Quero exatamente dizer com isto que o assunto se impõe e me devasta. Isto seria um enorme elogio se fosse o pintor que me impusesse o seu assunto por qualquer força imaginativa ou plastica. Mas não se trata disso não. O assunto é que se impõe por convenções de simbolica, por se reduzir a grafismos convencionais arquiconvencionados, prescindindo de qualquer validade criadora, quer lirica (o pintor), quer plastica (o quadro).

 

Portanto, para Mário de Andrade, o motivo de sua discrepân­cia com relação à obra de Antonio Pedro não se encontra na atração do artista pelo "baixo" ou popular,

 

não se trata do encanto sutil do banal, não se trata absolutamente de uma revalorização do lugar-comum e do símbolo, tão efici­entemente empregada em certas orientações da arte contem­poranea. Este é um efeito interno de expressão e nunca um dado de conhecimento imediato. Como no quadro de Picabia, da coleção Paulo Prado, cujo centro é um busto aquarelado de mulher, feito à maneira dos retratistas de bar. Aí sim, o vocábu­lo utilizado como elemento de choque psicológico o que faz é de fato produzir o choque e despertar um estado de poesia em mim. Não é por ele que eu compreendo o quadro, mas é ele que me provoca uma atividade lírica e até um estado físico, em que se entrelaçam quantas experiencias eu tenha das aquarelas à minuta dos bares. E outras experiencias. Da mesma forma, um Augusto Frederico Schmidt revalorizando em sua poesia a pala­vra "vergel" proibida por quarenta anos em nosso dicionario poético, criou um elemento interno de choque, de um valor lí­rico excelentemente dinâmico. E o mesmo direi das moscas ou de tal mão transformada em ave, de Antonio Pedro. Ou ainda a cópia de oliogravura de "Natureza Assassinada". São estas considerações sobre o convencionalismo simbológico e uma certa vulgaridade de vocabulário, que me afastam algu­mas vezes da qualidade poética realizada por Antonio Pedro. A meu ver, e com todo o respeito que ele me merece, imagino que o pintor deveria cuidar um bocado mais dos elementos que lhe traduzem o lirismo interior. E si o não quiser fazer, por não o permitir a sua concepção de arte, só há um jeito de se salvar: é pela qualidade técnica da realização pictural. Ora esta qualida­de me deixa irregularmente satisfeito. [...] Mas verifico que o artista evolue num sentido de cada vez maior simplificação plástica. Quadros que mais poderiam me agradar pela sua sugestividade como "Calor cantou um galo" "O encan­tamento na paisagem", "Sentimento na planície" "Desintegra­ção" me deixam triste pela facilidade e mesmo fraqueza técnica de suas soluções pictóricas. Principalmente esse processo de usar cores lisas indo em gradação de claro escuro salientando com exagero os volumes ou expondo superfícies muito lisas. Pode ser idiosincrasia minha, mas tais processos me desagradam a mim me deixam muito alheio não apenas pelo seu decorativismo como por acentuar com insensibilidade os desenhos de limite das for-mas. Mas ainda certas sucessões de cores, a crueza de certos tons, tal desatenção dos valores, mostram bem o conflito entre essa obediencia aos imperativos do mundo interior e essa outra obediencia mais artesanal às sugestões da propria matéria plásti­ca. Ao que Antonio Pedro pode me responder que isto é que leva ao academismo e ao lugar-comum, no que terá alguma razão. O que importa é conseguir o equilíbrio entre as duas obediencias.

 

Mário usa Picabia para legitimar sua adesão (parcial) à estéti­ca de choque. Invoca uma obra que não foi possível identificar, nem localizar mas que, pela produção de Picabia à época, podemos ima­ginar ora um busto de espanhola, uma Carmen bizarra, ora uma Novia mecânica, da mesma estirpe que a mariée duchampiana. Em todo caso, o que avulta dessa argumentação é que, mesmo consci­ente da acusação de historicista e antiquária que pode ser achacada à sua concepção do modernismo, Mário de Andrade admite, expli­citamente, um certo ar barroco e bataillano no artista português, ao dizer que

 

Antonio Pedro tem a altivez e a mística dos artistas sinceros. Há na sua evolução um ascetismo ascencional e ele é um drama quer se aceite como tal ou não. Apenas eu me lembro de Platão train-do as suas conclusões filosóficas e continuando a falar na cam­bada olímpica como bom cidadão grego; me lembro de Rafael continuando a pintura de qualquer madona depois de uma noi­te de esbórnia; Haendel transformando uma aria amorosa em cântico religioso do "Messias"; e me pergunto se valerá a pena de existir essa inflação tamanha do individualismo e dos dramas individuais. Antonio Pedro se desespera e com razão dos milhões de maçãs da pintura contemporânea. Mas eu imagino que o excesso contrário é tão particularista, tão hedonístico, tão anti­social como a maçã. Talvez mais... E ambas são manifestações de classe. Não de um drama de classe mais de uma classe em seu domingo a passeio. O drama é de Antonio Pedro, e não se reduz a valores sociais. Porque em arte a diferença trazida ao mundo, ou pelo menos acentuada pelas práticas republicanas de vida foi justamente essa. De primeiro o artista era um servidor de clas­ses; hoje uma vítima delas. 28

 

António Dacosta, que muito freqüentou Antonio Pedro, nos dá dele, entretanto, uma outra versão que destaca as componentes acefálicas. Declara, em depoimento de 1979, que a formalidade fami­liar, acidental e profunda das imagens do artista eram por ele pes­quisadas nas

 

fontes subjetivas de um real quase quotidiano que tinha que ver com ele e com os quadros também. Os meios técnicos dessa apreensão do real devem muito a uma espécie de "bricolage" de amador; daí o aspecto aparentemente inábil da sua pintura que visava criar um mundo de delícias, metafisicamente ligado às carnes das matronas de Rubens. Aí o testemunho de uma nos­talgia acadêmica pela grande "pintura", e uma ânsia de uma di­

mensão mítica, e ainda a prova de uma espécie de atitude olím­pica de defesa contra a a realidade rasteira que envolvia a inteli­gência portuguesa. Ou talvez uma fuga ao real, para melhor o atacar. E creio que em tudo isto transparecia bem o obscurantis­mo dos horizontes da sociedade portuguesa denunciada sem ilu­sões místicas por uma espécie de decência moral e desprezo por tudo o que estava reduzindo o horizonte. 29

 

Seja lá como for, poderíamos dizer, em resumo, que todo o debate entre Mário de Andrade e Antonio Pedro gira em torno do papel concedido ao mito. O mito, ele é um assunto (um discurso) ou uma linguagem (uma imagem irredutível à ordem do discurso)? A posição de Mário de Andrade é tributária de uma leitura moder­nista de Nietzsche, do tempo cíclico do mito e do princípio sacrificial que a etnologia dos anos 1920 julgava ser o fundador da socialidade. Lembremos que até mesmo um conservador como T. S. Eliot não deixará de elogiar O ramo de ouro de Frazer, por sinal, um dos livros­guia de Macunaíma , como uma extensão do conhecimento do que Mário chamaria o eu profundo. Antonio Pedro, pelo contrário, está mais próximo da leitura bataillana de Nietzsche, i.e., de uma redefinição do modernismo operada ao longo dos anos 1930, que via os mitos como criações próximas dos sonhos e, nesse sentido, não muito divergentes de autênticos achados poéticos.

Não por acaso, em sua primeira colaboração para Critique , a revista que ele próprio funda no após-guerra e que resume a posição estética que elabora uma saída da vanguarda em direção ao estrutu­ralismo, Bataille chega a dizer, antecipando-se a Michel Sèrres ou Jacques Derrida, que " il est vrai qu'un poème moderne n'a nullement le sens d'un mythe, mais un mythe a parfois le même attrait qu´un poème moderne " 30 , com o qual estamos admitindo a relação, tão ambivalente quanto indissociável, entre surrealismo e mitologias urbanas moder­nas, situadas todas elas para além da decisão individual do artista 31 . A divergência, em suma, tem um nome: é o pas au-délà.

 

O sentido dinamista da verdade

 

La mimesis est alors le mouvement de la physis , mouvement en quelque sorte naturel (au sens non dérivé de ce mot) par lequel la physis , n´ayant ni autre ni dehors, doit se dédoubler por apparaître, (s´) apparaître, (se) produire, (se) dévoiler, pour sortir de la crypte où elle se préfère, pour briller dans son aletheia . En ce sens, mnémè et mimesis vont de pair, puisque mnémè est aussi dévoilement (non­oubli), aletheia .

Jacques Derrida, La dissemination

Vemos, portanto, que estamos diante de um dispositivo An­tonio Pedro. Com efeito, tão elucidativo para uma conceituação da modernidade periférica tem sido analisar a trajetória de Antonio Pedro à luz da de Duchamp, quanto, pelo contrário, avaliar a obra de Ungaretti ou Carpentier tendo como parâmetro o artista portu­guês. Poderíamos, portanto, usar Antonio Pedro como um disposi­tivo acefálico, uma máquina de vidro, com a qual ler o modernismo brasileiro como um processo descentralizado e marginal da vanguarda internacional. Ele ajuda a redefinir, a partir das margens, o moder­nismo internacional da mesma forma que o internacionalismo ini­be a deformação nacionalista da leitura oficial.

Esse entre-lugar do modernismo tropical já foi, por sinal, de­vidamente acentuado pelo próprio Antonio Pedro numa conferên­cia de 1943. Ensaiando uma leitura de conjunto da vanguarda brasileira, o artista cabo-verdiano pondera que

 

Se um dia a história do cubismo não fôr feita por um francês e se o seu historiador a não quiser fechar na circunvalação de Pa­ris, será talvez ocasião de o classificar como um fenómeno his­pânico, alargando êsse adjectivo ao significado de peninsular e sabendo que as fronteiras da Península têm seus limites no contôrno das Américas Latinas. Hispânico pelas figuras - Picasso, Juan Gris, etc.; hispânico sobretudo pela qualidade - valor sensorial da forma abstracta ou, melhor dizendo, abstraída da realidade dos objectos pela quási autonomia da matéria plástica; hispânico, querendo exa­gerar, pela tradição asteca dos cubos antropomorfos; hispânico, ainda, nas suas conseqüências - o "orfismo" de Delaunay, cheio de uma luz portuguesa que veio de Vila-do-Conde, e êste "pau­brasil" de Tarsila, que é o seu regresso à terra ou, mais claramen­te, o conhecimento lírico da paisagem e das coisas depois das experiências de "atelier". Exceptuoso o caso de Braque, o cubismo dos franceses como Léger, com quem Tarsila aprendeu, Lothe, etc., a forma conser­va essa autonomia, sujeitando-se-lhe a côr e a matéria, isto é, a tradição pictural da renascença mantém-se contra as aparências. Quando Tarsila, por exemplo, aprende a lição de Léger, é a apa­rência das formas verossímeis que ilude a autonomia barroca da composição. O seu descobrimento virgem da terra levou a pin­tora às suas últimas conseqüências na "antropofagia". A lição cubista, aplicada ou sabida ainda na visão infantil e saborosa da paisagem violenta e equatorial do Brasil, esqueceu quando, nos seus quadros, ela se povoou realmente. Até à "antropofagia", as figuras, na pintura de Tarsila, eram como as árvores e as pedras, as casas e os carrosséis, elemento que perten­ciam, com igualdade de direitos, a uma unidade lírica em que dominava o ambiente. Depois do Abaporu , a paisagem passou apenas a um elemento em que se enquadravam as personagens deformadas até à alucinação 32 .

 

Antonio Pedro, empapado do perspectivismo barroco hispâ­nico, considera que, no cubismo, a visão também opõe-se frontal-mente ao objeto, e o assunto do quadro passa a ser o sujeito ilimitado, enquanto o eu, nesse ato de visão, desaparece, por sua vez, em direção ao absoluto. Lembra essa sua posição, explicitada a respeito de Tarsila, certos "Aforismos metódicos" de Carl Einstein 33 , quem estipulava que a vista foi freqüentemente identificada com objetos rígidos, no mais das vezes, sem conteúdo e que esses objetos, manifestando-se por meio de palavras invariáveis, acabaram por tornar-se "afuncionais" à razão instrumental. Portanto, transformar o espaço em uma função psicológica móvel requeria, antes de mais nada, eliminar os objetos rígidos, meros recipientes passivos de convenções históricas, ver­dadeiros obstáculos à imaginação alucinatória, o que implicava questionar a própria visão como fiadora última do saber. Aboliam­se, assim, as imagens mnemônicas já que "a tautologia cria a ilusão da imortalidade das coisas, e é por meio de imagens descritivas que se procura evitar o aniquilamento do mundo pelo esquecimento" para, assim, obter uma nova figuração do espaço e, conseqüente­mente, uma transformação da consciência das multidões.

Tal característica, bárbara, barroca, violenta, apontada na obra de Tarsila, estender-se-ia a toda a Família Artística paulista conquanto

 

De escola não se trata, com certeza. Entre a minúcia cuidadosa das naturezas mortas de Paulo Rossi (Osir), detendo-se no sa­bor sorvado de uma fruta de conde ou no brilho de um peixe, no pormenor exaustivo dos estames de uma flor - minúcia digna, correctíssima mas tedienta; a poesia subtil, imponderá­vel, dos ramalhetes de Clóvis Graciano - o esgargalado triste e elegante dos seus nus, a simplicidade misteriosa das suas com­posições; os anjos e os operários pálidos de Gomide; as paisagens imediatas de Rebolo Gonçalves e de Alfredo Volpi; as cuidadas, a fingir que não, de Waldemar da Costa, ex-aluno da Escola de Belas-Artes de Lisboa, e as suas naturezas mortas afrancesadas; as meninas suaves e tristes, tão bonitas, de Lucy Citti Ferreira; as inumeráveis cabeças e experiências de Carlos Scliar; as sobreposições sociais, polivalentes e demagógicas, de Manuel Martins; os atrevimentos e as renúncias, sempre corajosas, de Andrade Filho, que tenta, neste momento, libertando-se do gru­po, uma volta à "antropofagia", e, ao que vi como amostra, o tenta por forma a poder-se esperar um surto diferente e com novas energias deste curiosíssimo movimento; entre tudo isto, que esta resenha deixa adivinhar, mais o que possa ter-me esquecido nes­te apressado cômputo, falta a unidade de intenção, o comum desígnio que caracteriza uma escola. E conquanto seja diferente o caminho e o norte de cada um, um evidente parentesco acor­da a diversidade num conjunto que se harmoniza. É, antes de mais, um culto de discrição na gradação dos tons, um medo da alacridade, um pânico da violência dos contrastes. É, depois, um gosto da "touche" multiforme, um receio da su­perfície lisa, um horror do contorno nítido e da modelação na mesma cor. É ainda, e por conseqüência, uma necessidade de recortar a negro as figuras, um voluntário descuido na dissociação dos planos, uma sujeição aos valores e ao arabesco do desenho e dos volumes.

 

É, finalmente, "a superstição impressionista da mão levantada e da matéria" o que, em última análise, conduz "ao prazer barroco do arabesco, emoção que envolve as coisas, as paisagens e as figuras" 34 . Nesse sentido, Antonio Pedro vê, na mão levantada, um gesto sim­bolicamente muito carregado, que há de se traduzir na mão celiba­tária vinculada ao olho de sua tela Refoulement , gesto esse que não passa despercebido a Mário de Andrade, quem descobre, em suas pinturas, mãos metamorfoseadas em pássaros, e muito menos a Ungaretti, que associa essas mesmas telas à experiência primeva de uma mão com um olho no meio da palma, o que, a seu ver, se tra­duzia de dois modos diversos e simultâneos, ora como a primeira mar-ca poética da humanidade, uma marca ainda anterior à oral, a da imagem gráfica, ora como a admissão implícita de que a mão obe­decia com rapidez ao olho, isto é, que não é possível falar de ima­gem pura sem nos remitirmos à estesia ou, em outras palavras, à corporalidade em seu conjunto.

Essa condição acefálica da criação, conquanto seja diferente nas individualidades, apresenta um evidente parentesco comum que, como ele mesmo diz, acorda a diversidade num conjunto que se har­moniza coletivamente, por meio das modernas mitologias urbanas. Ora, é nessa acefalidade maquínica e, ao mesmo tempo, desejante, que Antonio Pedro soube captar o entre-lugar de tradição e ruptu­ra, a margem compartilhada de Europa e América.

Antonio Pedro, na esteira de Duchamp, ao encadear diferen­ças infraleves, propor a metonimização de conceitos ou ensaiar a contiguidade entre matérias dissímeis, destaca que todo dinamismo descansa numa ontologia legitimada pela mimese para o triunfo de um modernismo pedagógico. O sentido torna-se, então, uma sim­ples variável do acaso associativo, supra-individual e acefálico e, as-sim sendo, a arte já não remete a nada exterior a seu próprio vazio.

 

Notas de Rodapé

 

1 Antonio Candido, "Intercâmbio e Antônio Pedro", Clima , nº 2, São Paulo, jul. 1941, p. 60-1.

2 Ela se continua com Onze poemas líricos de exaltação e o folhetim (Lisboa,1938), Casa de campo (Lisboa,1938), Apenas uma narrativa (1942, editado em Lisboa, Estampa, 1978), Protopoema da serra d´Arga (Lisboa, Cadernos Surrealistas, 1949), Pequeno tratado de encenação (Porto, Confluência, 1962), Teatro (Lis­boa, Biblioteca Nacional, 1981) e Antologia poética (Braga, Angelus Novus, 1998).

3 Cf. Luis de Moura Sobral, Le surréalisme portugais , Montréal, UQAM, 1984, p. 91-2.

4 O manifesto é assinado por Ben Nicholson (Londres); Alexandre Calder (Nova York); Vicente Huidobro (Santiago do Chile); Kakakadze (Tiflis) ; Kobro (Var­sóvia); Joan Miró (Barcelona); Ladislas Moholy-Nagy (Londres); António Pe­dro (Lisboa); Hans Arp- Pierre Albert-Birot- Camille Bryen - Robert Delaunay - Cesar Dometa - Marcel Duchamp - Wassili Kandinsky - Frederick Kann - Ervand Kotchar - Nina Negri - Mario Nissim - Francis Picabia - Enrico Prampolini - Prinner - Sisi Ralhasman - Charles Siriato - Sonia Delaunay - Taeubler - Arp.

5 É o que explica em verbete do Dicionário prático ilustrado , apud Maria de Fáti­ma Marinho, O surrealismo em Portugal , Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987. O título de uma das telas exibidas em São Paulo, "Calor cantou um galo", admitiria uma análise equivalente.

6 Cf. Edouard Manet, Lettres du siège de Paris procédées des lettres du voyage à Rio de Janeiro (1849-1850) , Paris, L' Amateur, 1996, p. 25.

7 Cf. José Augusto França, "Antônio Pedro e Antônio Dacosta", Colóquio , nº 32, Lisboa, 1965, p. 26-32.

8 Marcel Duchamp, Affectionately Marcel : the selected correspondence of Marcel Duchamp, Ed. Francis Naumann and Hector Obalk, Gante, Ludion, 2000, p. 233.

9 Calvin Tomkins, Duchamp , trad. M. M. Berdagué, Barcelona, Anagrama, 1999, p. 236.

10 Roger Caillois, "Les échecs artistiques et l'opposition et les cases conjuguées", Nouvelle Revue Française , set. 1937, p. 511-4.

11 Id., Cases d´un échiquier , Paris, Gallimard, 1970.

12 Cf. François Le Lionnais, "Les échecs", in Roger Caillois (ed.), Jeux et sports , Paris, La Pléyade, 1967. A edição do volume foi cuidada por Raymond Queneau.

13 Isto se não consideramos o próprio Dados (Etant donnés) como uma modela­gem, uma impressão sobre o corpo, uma vez que sabemos que o corpo acéfalo dessa intalação derradeira de Duchamp corresponde ao de sua amante, a escul­tora brasileira Maria Martins.

14 Ezequiel Martinez Estrada, "El ajedrez", Artefacto : pensamientos sobre la técni­ca, nº 3, Buenos Aires, 1999, p.133-42. O inédito foi redigido nos anos 1940.

15 Susan Buck-Morss analisa, de maneira muito semelhante à aqui proposta, as fontes da dialética do amo e do escravo em Hegel. Cf. "Hegel & Haiti", Critical Inquiry , summer 2000, vol. 26, nº 4, p. 821.

16 Rui Mário Gonçalves, António Dacosta , Lisboa, Imprensa Nacional, 1984, p. 17.

17 Numa entrevista publicada em Portugal ( Acção , nº 29, Lisboa, 6 nov. 1941), Antonio Pedro diz que seus melhores contatos entre os jovens da Clima eram Lourival Gomes Machado, que o ajudou a preparar a exposição; Paulo Emílio, "incapaz de achar bom o que não é bom, seja de que nacionalidade for, seja de que companhia for, resumindo, uma pessoa a ouvir". (Cf. Heloísa Pontes, Des-tinos mistos : os críticos do grupo Clima em São Paulo 1940-1968, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 246.)

18 Giuseppe Ungaretti, Antonio Pedro , Catálogo com 25 reproduções e um en­saio, São Paulo, 1941. Na primavera do ano seguinte, Ungaretti publica o texto numa revista de vanguarda, Variante , editada em Lisboa pelo próprio Antonio Pedro, que com ela sonhava dar continuidade ao projeto da revista Orpheu.

19 " Tyché , em grego, é o acontecimento, no aspecto do que acontece por acaso". Barthes vai mais longe, inclusive, e associa tyché a vazio, por meio de uma passa­gem de Valéry. "Num curso do Colégio de França (5 de maio de 1944), Valéry examina os dois casos em que se pode encontrar aquele que faz uma obra; no primeiro caso, a obra corresponde a um plano determinado; no outro, o artista mobila um retângulo imaginário. Twombly mobila o seu retângulo segundo o princípio do Raro, quer dizer do espaçamento". Alegando que essa concepção é central na estética japonesa que, ao ignorar as categorias kantianas do espaço e do tempo, trabalha com a de Ma ou intervalo, Barthes considera que o intervalo ou o raro remete a duas civilizações contrapostas: "por um lado, para o vazio das composições orientais, simplesmente acentuado, aqui ou ali, por uma caligra­fia; por outro lado, para um espaço mediterrânico, que é o de Twombly; curio­samente, com efeito, Valéry (mais uma vez ele) mostrou bem esse espaço raro, não a propósito do céu e do mar (em que pensaríamos primeiro), mas a propó­sito das velhas casas meridionais", grandes espaços vazios e fechados, quentes e luminosos, cheios de elementos perdidos, rari , onde o tempo não conta. (Cf. Roland Barthes, "Sabedoria da arte", in O óbvio e o obtuso , trad. Isabel Pascoal, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 156-7.)

20 Escreve Carpentier: "Nuestro arte siempre fue barroco: desde la espléndida escul­tura precolombina y el de los códices, hasta la mejor novelística actual de América, pasándose por las catedrales y monasterios coloniales de nuestro continente. Hasta el amor físico se hace barroco en la encrespada obscenidad del guaco peruano. No temamos, pues, el barroquismo en el estilo, en la visión de los contextos, en la visión de la fïgura humana enlazada por las enredaderas del verbo y de lo ctónico, metida en el increíble concierto angélico de cierta capilla (blanco, oro, vegetación, revesados, contrapuntos inauditos, derrota de lo pitagórico) que puede verse en Puebla de Mé­xico, o de un desconcertante, enigmático árbol de la vida, florecido de imágenes y de símbolos, en Oaxaca. No temamos el barroquismo, arte nuestro, nacido de árboles, de leños, de retablos y altares, de tallas decadentes y retratos caligráficos y hasta neoclasicismos tardíos; barroquismo creado por la necesidad de nombrar las cosas, aunque con ello nos alejemos de las técnicas en boga: las del nouveau roman francés, por ejemplo, que es, si se mira bien, pasándose de lo grande a lo menudo, cerrando el foco en vez de abrirlo, un intento de búsqueda de contextos dentro del objeto, del tenedor, del cuchillo, del pan, de lo cotidiano y palpable, del mueble al parecer ausente que, como una comedia de Ionesco, acabe por determinar el espacio vital del hombre que lo adquirió para valerse de él. El legítimo estilo del novelista latinoamericano actual es el barroco ." (Cf "Problemática de la actual novela latinoamericana", in Tientos y diferencias , 3. ed., Montevideo, Arca, 1967, p. 40-1.)

21 Essas idéias reaparecem em seu ensaio "Góngora al lume d'oggi" (1951) e no retrato do poeta brasileiro Murilo Mendes, quando destaca que o Brasil é um desses países do descobrimento da América cujos contrastes com o espírito oci­dental contribuíram a sugerir as formas do Barroco e popularizaram Polifemo na poesia da época. Para Ungaretti, através do barroco, i.e., através do america-no, lutam as Luzes contra o monstro e a razão ocidental se persuade a si mesma de que na desmesura estava a catástrofe, e que só a graça podia se lhe opor, manifestar vida jovem e perene beleza, mesmo para além da morte, vencido já o horror ao vazio. (Cf. " Siciliana di Murilo Mendes"(1959), in Vita di un uomo : saggi e interventi, a cura di M. Diacono e L. Rebay, Milano, Mondadori, 1974, p. 703-4.)

22 Gilberto Freyre, "Antropologia social e antropologia cultural", in Problemas brasileiros de antropologia , Rio de Janeiro, José Olympio, 1942, p. 15. A confe­rência original de Freyre é de 1935; a leitura de Ortiz, de 1940, e deve ter sido acrescentada em nota quando o escritor brasileiro revisou seu texto em 1942. Em todo caso, de Contrapunteo cubano del azúcar y el tabaco extrai Gilberto Freyre, como mais tarde Ángel Rama, a metáfora cultural da diversidade modermizadora latino-americana.

23 Michel Foucault, Dits et écrits IV : 1980-1988, Paris, Gallimard, 1994, p. 562-78.

24 O papagaio, como detentor do epos nacional, traça um arco que vai do poeta e pintor romântico Manuel de Araújo Porto Alegre ("O papagaio do Orinoco", 1859, in Grandes poetas românticos do Brasil , São Paulo, LEP, 1959, vol. I, p. 16) até o escritor e crítico modernista Mário de Andrade ( Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, 1928, Ed. crítica Telê Ancona Lopez, Paris/Brasília, Unesco/ CNPq, 1989).

25 Quando Ungaretti traduz a "Canção do exílio" de Gonçalves Dias ao italiano, comete um deslizamento significativo. Desloca o adjetivo sozinho , encerrado entre vírgulas, que no original ocupa, além do mais, uma posição axial no inte­rior do poema, para o extremo do verso. Donde o "Em cismar, sozinho, a noite" se transforma em " Se di notte penso, solo ", opção que, certamente, diminui o destaque concedido por Gonçalves Dias a uma temática que, de Octavio Paz com seu labirinto, até García Márquez com seu século, se tornaria um topos da modernidade periférica. Não custa lembrar, aliás, que para Gonçalves Dias a solidão é tema ligado à decadência e ao historicismo. Chega a admitir, por exem­plo, em O Brasil e a Oceania, que "não se pode duvidar que, desde os mais remotos tempos, a América não tenha sido quasi sem interrupção o theatro de emigrações, que tem agitado os differentes pontos de sua superfície; e tudo nos faz ver nestas deslocações violentas uma das causas principais do desmorona­mento das antigas sociedades, da corrupção das línguas, da degradação dos cos­tumes, consequência quasi inevitável da miséria produzida por qualquer grande catastrophe". (Cf. Obras posthumas de Gonçalves Dias: o Brasil e a Oceania, Pa­ris, Garnier, 1909, p. 206.) A partir desse tópico, chegamos à idéia dos desterra­dos na própria terra que se lê em O tamanho de minha esperança de Borges e nas Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.

26 Jorge de Lima já se manifestara em favor dos recursos mais extravagantes do surrealismo para atingir a poesia pura, através de uma fenomenologia deformante e onírica incorporada às fotomontagens e colagens - as madeiras de Hans Arp, o cinema calendrier de Tzara, as colagens de Max Ernst - que, a seu ver, abri­ram caminho para o maravilhoso e o inédito, assim como a contribuição poéti­ca, pictural e crítica de Dali foi "um incentivo extraordinário para fazer da banalidade da decupagem uma coisa bem interessante". (Cf. Jorge de Lima, "A decupagem. Processo da gravura surrealista", Dom Casmurro , 8 jul. 1939, p. 5. Mário de Andrade resenha essas experiências de Jorge de Lima em "Fantasias de um poeta", Suplemento Rotogravura nº 146, O Estado de S. Paulo , 1ª quinzena nov. 1939. Mais tarde, em agosto de 1941, Mário vai analisar a exposição de Antonio Pedro em artigo para o Diário de S. Paulo , e Jorge de Lima irá redigir o prefácio para o catálogo da mesma exposição no Rio de Janeiro. Antonio Candido, por sua vez, cita as narrativas de Antonio Pedro em seu ensaio "Surrea­lismo no Brasil" ( Brigada ligeira , São Paulo, Martins, 1945, p. 114.)

27 Retomo aqui as idéias desenvolvidas por Hal Foster em Compulsive beauty , Cambridge, MIT Press, 1995.

28 Mário de Andrade, "Antonio Pedro " , Diário de S. Paulo , 12 ago. 1941.

29 Cf. Rui Mário Gonçalves, op. cit., p. 31.
30 Georges Bataille, "Le sens moral de la sociologie", Critique , nº 1, Paris, 1946.
31 Ver a esse respeito Didier Ottinger, Surréalisme et mythologie moderne . Les voies du labyrinthe d´Ariane à Fantomas , Paris, Gallimard, 2002.

32 Antonio Pedro, "Alguns pintores brasileiros modernos", Atlântico , nº 3, Lisboa, 1943, p.176-7.

33 Carl Einstein, "Aphorismes méthodiques", Documents , nº 1, Paris, 1929.

34 Antonio Pedro, "Alguns pintores...", op. cit., p. 177.