Sumário

A esfera privada e a lição do amigo: alguma recepção de Carlos Drummond de Andrade

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio / CNPq
Cátedra Padre António Vieira

Tudo é teu, que enuncias. Toda forma

nasce uma segunda vez e torna

infinitamente a nascer.

Carlos Drummond de Andrade,

"A pa­lavra e a terra", in Lição de coisas

 

Ao morrer em 1987, Carlos Drummond de Andrade teve sua consagração de poeta-maior da literatura brasileira confirmada. O consenso vinha repetir não só a opinião de muitos intelectuais e es­tudiosos de sua obra que reconheciam nele um dos mais importan­tes poetas modernos do país, mas também a visibilidade pública que Drummond adquiriu, quando se tornou referência da mídia e nome de certo modo circulante junto ao público em geral (o que isso pos-sa significar para um país como o Brasil cujos poetas, com raríssimas exceções, não são figuras populares, ou midiáticas). Houve mesmo uma "sagração" do poeta, em torno do qual se criou uma "aura" mitificante, que a obra evidentemente legitima.

A construção, entretanto, dessa "figura" não se deu com a morte do poeta, tema de certo modo já clicherizado na tradição. Para tal construção contribuiu sobremaneira a recepção pública de sua obra, que se foi firmando à medida que o modernismo ia sendo cano­nizado. Essa recepção pública do poeta teve, talvez como primeira instância, seu lugar de circulação nos rodapés, colunas e suplemen­tos literários dos jornais. Nessa mídia, porque acompanharam, com texto próximo da crônica, o movimento editorial seu contemporâ­neo, os críticos puderam ler, no calor da hora, os livros de Drummond no ritmo em que eram publicados. Estão nesse caso críticos como Tristão de Ataíde, Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Otto Maria Carpeaux, Wilson Martins, Brito Broca e Álvaro Lins, entre tantos outros. Este último, "o imperador da crítica brasileira entre 1940 e 1950", segundo Drummond, ou "diretor de consciência" de seu público, como ele mesmo dizia, ao recolher, em 1963, no livro Os mortos de sobrecasaca (o título, como se vê, é tomado ao poeta mi­neiro) os textos publicados em jornais de 1940 a 1946, oferece uma boa amostragem da crítica desse tempo, aquela que não passava pela especialização da universidade.

Esse "homem de letras" põe então sua erudição e sensibilida­de a serviço de suas "impressões" de leitura, que, ao julgar Sentimen­to do mundo, José, A rosa do povo e Claro enigma , trata de convencer o leitor de que Drummond é o nosso poeta moderno por excelên­cia, "um poeta que define o nosso tempo e a nossa época", "pois a sua poesia é aquela que todo homem de sua geração gostaria de rea­lizar se fora poeta" (1963: 6). O tom retórico do julgamento prosse­gue em tiradas do tipo: "CDA se movimenta inteiro, num plano de permanente inquietação e desenvolta experiência", "o seu método é a tentativa permanente de renovação", "é dotado de permanente e vigilante espírito crítico", "disposição de pesquisa e experiência". Ao comentar aquelas obras recém-lançadas, bem como as relações en­tre humor e poesia, traço forte dos primeiros livros, vê um sentido evolutivo em Drummond que vai refinando sua poesia, afiando seus instrumentos expressionais e apurando suas técnicas. Vê, no rodapé de 1946, publicado no Correio da Manhã , que comenta A rosa do povo , livro de 1945, "um poeta revolucionário", em quem "procu­ram um plano de harmonia e ajustamento a consciência política do homem e a arte do poeta" (1963: 25). A intuição do crítico vai de­tectando certos traços que, mais tarde, serão retomados por outros estudiosos: o estilo mesclado de sublime e banal cotidiano; "o fatal desencontro entre as suas aspirações subjetivas e as categorias obje­tivas da realidade" em que está "a fonte mais dramática de sua poe­sia" (1963: 23); o jogo harmonia/desarmonia; a associação inesperada de vocábulos, idéias e sentimentos. Seu texto, enfim, encaminha-se para um conselho que quer persuadir o leitor a ler Drummond que "dará em troca um particular universo de imagens e símbolos, que aju­dará a interpretação, a compreensão do mundo visível e sensível" (1963: 32). Evidentemente, a mediação do crítico e sua pedagogia ajudarão o leitor a chegar ao mesmo julgamento: "Não estamos so-mente em face de um grande poeta, mas de um poeta extraordinário da literatura brasileira para todos os tempos" (1963: 32).

Esse modo de circulação que diz respeito ao crítico-cronista, de que se tomou o caso de Álvaro Lins como exemplo (sem entrar no juízo de valor de sua crítica) vai constituindo, por acúmulo, a fortuna crítica de Drummond, capital de giro que entra na econo­mia da leitura, a que vem se juntar, na recepção pública do poeta, os críticos- scholar , cujo julgamento depende não só de quem o enun­cia, mas das comunidades de discurso por onde circula. Esse outro modo de mediação segue de certa maneira as tendências dominan­tes da crítica brasileira com todos os seus modismos (para o bem e para o mal), e mais de perto da crítica universitária, sobretudo a partir dos anos 1960 do século XX. No entanto é curioso observar que os estudos mais abrangentes e mais alentados sobre o poeta datam dos anos 1970-80, época da consagração de Drummond com a unani­midade pública de maior poeta do Brasil, e em que ele se torna figu­ra conhecida, popularizada não só por sua presença já canonizada nos livros didáticos e leitura obrigatória nas escolas e no vestibular, mas também pelas crônicas que escrevia para a imprensa, com des­taque para o Jornal do Brasil.

Neste clima, a recepção amplia-se para outras instâncias sociais, ainda por outros modos de mediação: em 1980, "Sonho de um so­nho", poema de Claro enigma , foi transformado em enredo da esco­la de samba Unidos de Vila Isabel, com samba de Martinho da Vila, Rodolpho de Souza e Tião Grande; em 1987, a Estação Primeira de Mangueira homenageia o poeta com o enredo No reino das palavras: Carlos Drummond de Andrade , com o qual se sagrou campeã do desfile daquele carnaval. O samba-enredo de Rody, Verinha e Bira do Ponto cantava assim:

Mangueira
De mãos dadas com a poesia
Traz para os braços do povo
Este poeta genial
Carlos Drummond de Andrade
[...]
Eis a verde-e-rosa
Cantando em verso e prosa
O que o poeta inspirou [....]

A proliferação dos estudos que comprova a circulação da poe­sia de Drummond e seus modos de recepção, coincide, de um modo geral, com a ampliação dos cursos de letras no país e sobretudo com a implementação dos programas de pós-graduação nas faculdades de Letras, a partir da lei de 1969. Esse modo de crítica contribuiu para consolidar o que já se vinha firmando, paulatinamente, desde os anos 1940, isto é, um modelo ligado à especialização acadêmica própria do crítico universitário, cujas formas de expressão dominantes seriam o livro e a cátedra, e depois as teses de pós-graduação (Süssekind, 1993: 13). Esse modo de recepção acabou substituindo em grande escala o que se veiculava pelos jornais, em forma de resenhas, assi­nadas pelos "homens de letras", que com a "crítica de rodapé" contri­buíram para fazer circular seujulgamento sobre escritores modernistas (a exemplo de Drummond) e ajudar a criar um público para receber esse tipo de texto. Passa-se então do crítico-cronista para o crítico­ scholar (Süssekind, 1993: 16). Ambos, porém, comprometidos com a recepção pública da literatura.

Algumas das primeiras recepções públicas da poesia de Carlos Drummond de Andrade deram-se certamente pela mediação de São Paulo. O poema "No meio do caminho", publicado em 1928, na Revista de Antropofagia , de Oswald de Andrade, circulou como um escândalo literário, a ponto de o poeta afirmar em sua "Autobiogra­fia para uma revista", texto depois recolhido em Confissões de Minas : "Entro para a antologia não sem registrar que sou o autor de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escanda­lizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais" (Andrade, 1964: 533) 1 . A outra recep ­ção foi a crítica ao livro Alguma poesia , assinada por Mário de Andrade e que faz parte do ensaio "A poesia em 1930", publicado na Revista Nova (1931), hoje recolhido no volume Aspectos da literatura brasi­leira (1943) . Por ela começa efetivamente a circulação pública da recepção da poesia de Drummond, com a responsabilidade de quem a enuncia, a fornecer julgamentos que retornarão quase infinitamente na fortuna crítica. À medida que a poesia drummondiana se expan­de, a crítica é um dos modos de fazê-la circular.

Esta recepção talvez ganhe novas dimensões se confrontada com os comentários do primeiro leitor de Drummond, o Mário de Andrade que analisa, dá conselhos, orienta, nas cartas trocadas a partir de 1924, ano em que esse

 

senhor maduro, de trinta e um anos, passou por Belo Horizon­te numa alegre caravana de burgueses artistas e intelectuais, adi­cionada de um poeta francês [Blaise Cendrars] [...]. Foram apenas algumas horas de contato no Grande Hotel; os burgueses agita­dos regressaram a São Paulo, o senhor maduro com eles; e de lá começou a escrever-nos registra o poeta mineiro, na crônica "Suas cartas", de Confissões de Minas (1964: 534).

Ao lado daquela recepção pública, quando da publicação da estréia do poeta em livro, em 1930, essa outra recepção privada sur­preende o jovem poeta no exercício de seu artesanato poético, ainda marcado pela "inexperiência" e pelas dúvidas. Continua Drummond

o seu depoimento:

O sentido delas [as cartas de Mário] é menos estético do que moral e pedagógico. O professor Mário de Andrade tanto corri­ge a apreciação errada de um episódio vivido como aponta fra­quezas de linguagem, de ritmo ou de concepção na poesia do principiante. [...] Esta última função deve interessar mais de perto o literatozinho mineiro, de tendência pessimista, que procura resolver em verso moderno suas dúvidas e agitações íntimas. Assim, ele abusa da paciência e da simpatia humana de Mário, esmagando-o com sucessivas remessas de poesia. O professor lê tudo e devolve com anotações preciosas (1964: 538).

 

Então, a produção dos anos 1920 do jovem poeta, com alguns textos publicados em revistas e jornais, era remetida ao professor mais velho. A "lição do amigo", assim, espraia-se pela correspondência e pesa na formação do poeta. A recepção avaliativa de Mário discorre sobre questões teóricas e práticas, a exemplo da problemática das influências (que pesa sobremaneira em culturas dependentes e o papel da "angústia da influência" na formação do artista), do nacionalis­mo e universalismo, do interesse prático imediato da arte, das rela­ções arte e vida, além de questões estilístico-expressionais, a saber, da pontuação como meio de expressão e sobretudo expressão rítmi­ca, que é psicológica (diz Mário, p. 52), dos brasileirismos vocabulares e sintáticos que se alargam para o problema da língua nacional, além de lições sobre a disciplina poética ("falou-se tanto em quebra de padrões clássicos" - lembra Drummond, 1964: 539). Aconselha sobre o uso lusitanizante da sintaxe e do léxico a ser evitado, para não entrar em contradição com a atualização da arte que o poeta almejava e que Mário advoga como princípio inerente à arte moderna que deveria ser praticada no Brasil (princípio reafirmado na confe­rência "O movimento modernista", balanço histórico e pessoal es­crito para comemorar os vinte anos da Semana de Arte Moderna, em 1942). As sugestões estendem-se sobre outros tópicos como subs­tituições de palavras, corte de outras, advertências sobre como evi­tar artigos ou possessivos "não só porque evita galicismos e está mais dentro das línguas hispânicas como porque dá mais rapidez e força incisiva pra frase" - generaliza a partir dos comentários ao poema "Nota social". Nesta carta de 15/02/1925, dá a apreciação geral:

Gosto francamente dos seus versos. Alguns dos poemas que te­nho aqui acho muito bons de verdade. O "Construção" como realização e escolha de elementos expressivos, como síntese é magistral. [...] Vou mandar os poemas que prefiro pros direto­res de Estética que escolherão um ou dois ou três, não sei pra publicar. Você deixa? Mando "Construção" ["como forma é perfeito", p. 17], "Orozimbo" ["é simplesmente admirável", p. 17], "O vulto pensativo das Secretarias", "Sentimental", "Raízes e caramujos". Não mando "No meio do caminho" ["é formidá­vel; é o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado, mais psicológico do cansaço intelectual", p. 17] porque tenho medo de que ninguém goste dele. E porque tenho orgulhinho de des­cobrir nele coisas e coisas que talvez nem você tenha imaginado pôr nele (1982: 25).

Muitos desses poemas (de 1923 e 1924) já tinham sido devol­vidos a Drummond "com algumas sugestões", que depois se incor­poraram às versões que foram publicadas. A alguns deles volta Mário em cartas subseqüentes. Na de 08/05/1926, diz que vai mandar ao amigo as últimas coisas que tinha escrito, para atiçar-lhe a curiosi­dade, "porque só mandarei se você mandar primeiro uma cópia dos seus versos TODOS ao menos os que têm direito de visibilidade alheia" (1982: 74). Logo em seguida (08/06/1926), o poeta paulista acusa o recebimento do "livro de versos" e acrescenta: "Estou tam­bém com outros aqui da carta anterior... Olha: você tenha um pou­co de paciência até que eu leia tudo com cuidado pra daí escrever sobre eles pra você" (1982: 77). Esse livro, comentado na carta se­guinte, é a primeira arrumação de Alguma poesia , segundo observa­ção de Drummond em nota de A lição do amigo (1982: 87); na verdade é um outro livro datado de maio de 1926, que começa com o poema "Convite" e a que Drummond cogitara dar o título de Minha terra tem palmeiras .

O julgamento inicia-se por uma espécie de declaração de prin­cípio, em tom amigável e pedagógico: "Aí vão as notas que tomei numa última leitura do livro seu. Fiz isso irmãmente que nem o Manu faz comigo e eu com ele. Acho que você sabe apreciar essa sem-ceri-mônia. Que o livro é excelente não se discute. E me deu um conhe­cimento muito mais completo de você poeta, lido assim duma vez. Não faço uma crítica total porque essa eu farei quando o livro sair" (1982: 80). Ao final acrescenta os "reparos" aconselhados para to­dos os poemas, excetuando, embora nomeados, os já comentados em cartas anteriores 2 .

A referência a Manuel Bandeira com quem Mário manteve longa correspondência e a alusão às discussões que aí travavam so­bre suas respectivas produções numa atitude caracterizada de "irmã", ao lado de indicar estarem os dois colocados num mesmo patamar poético (seria instigante ler nas cartas entre eles o jogo do papel de "mestre", que Mário dá no início a Bandeira, que o reendereça ao poeta paulista que, prontamente, o aceita e assume), serve para re­vestir de eufemismo o papel de mestre já imbuído em Mário. Se a camaradagem marca a amizade, ainda que sem condescendência no julgamento estético, a atitude de "irmão" camufla a autoridade e o certo autoritarismo de Mário: a lição do amigo é também lição de professor, que Drummond aceita sem maiores discussões.

Quanto ao título dado em princípio ( Minha terra tem palmei­ras , alusão direta ao emblemático poema de Gonçalves Dias, para marcar a preocupação nacionalista que o Modernismo reeditava), Mário se opõe, como se lê em carta de 28/02/1928, quando expres­sa idéias e dados no que se refere à composição e teor do primeiro livro de Drummond a ser publicado:

 

Quanto ao nome Minha terra tem palmeiras como nome é fraco mesmo. Além de comprido por demais, coisa inquizilante da gente escrever e falar, logo diminuído por síntese, preguiça e outras necessidades psicológicas, é mais uma glosa de coisa muito glosada, não acha? Estou pensando numa coisa: Quem sabe se uma escolha de poemas, dentre todos os que você já tem? Meu desejo, Carlos, é que você dê de começo um livro forte deveras. Talvez convenha abandonar pra revistas ou pra morte alguns dos poemasjá feitos [...] Minha opinião creio que é esta mesmo: uma seleção severa escolhendo o que vocêjá fez de mais forte e de mais original. Poemas de interesse imediatamente brasileiro estão em moda positivamente. Estão em moda até por demais. Minha terra tem palmeiras viria reforçar esse ritmo tomado, já pouco com ca­ráter de "apoiado", embora útil (1982: 129-130).

Para descartar esse título cogitado e explícito, Mário argumenta com a crítica a "esse tal de brasileirismo", que daria a unidade do livro, que, para seguir uma onda modernista, viria a reboquejá tardiamente. Além de tudo, estaria sacrificando o que de mais próprio tinha Drummond, ou seja, "o espírito individualistamente contemplativo e observador de você, bem livre". Esse traço característico do poeta, tomado positivamente, não combinaria com tal tipo de nacionalis­mo, que o próprio Mário diz ter inaugurado com Paulicéia desvaira­da , uma onda que também rendera o Macunaíma , mas que já não era nova. A questão nacionalista que o modernismo recolocava em pauta vinha se tornando clichê e camisa-de-força cerceadora das cria­ções individuais como a de Drummond. E completa Mário: "O Minha terra tem palmeiras não parece mesmo pra você também que vinha agora meio de cambulhada? Talvez fosse melhor sacrificar a unidade do livro em prol duma maior unidade de você" (1982: 131). Essas idéias não eram conselho, mas coisas para Drummond pensar e resolver (mais uma vez a intenção de sinceridade reveste a autori­dade de Mário). E foi o que ele fez com idéias e dados fornecidos pelo amigo: "desisti de publicar livro com esse título" - anota ele na edição das cartas (1982: 131). Em contrapartida, a faculdade analisadora e minudente de Mário (a expressão é de Drummond, 1964: 540) serviu para mudar a concepção do livro de estréia em 1930 e contribuiu para a forma como circulou. As anotações de Mário eram realmente "preciosas"! E fornecem índices da conversão de Drummond ao modernismo, depois do encontro com o amigo de São Paulo, conversão essa que se dá - como sublinha Silviano Santiago - "num processo delicado, que vai significar o afastamen­to gradativo das leituras que fazia, de Anatole France, de autores de segunda, terceira categoria; e o abandono de um grande respeito à literatura francesa e a aceitação de um nacionalismo". Ao anotar a correspondência de Drummond para Mário a ser publicada em breve, nota Silviano, como revela em entrevista recente, que as cartas da dé­cada de 1920 indicam essa aceitação, que é "um processo de tortura".

 

Ao mesmo tempo ele é formado por Joaquim Nabuco, é cosmo­polita, quer ter uma poesia e um pensamento cosmopolitas, no entanto Mário de Andrade está constantemente tirando o tape-te dele, dizendo: 'Você tem de compreender o Brasil'. Daí, com­pleta Silviano, aqueles belíssimos poemas de Alguma poesia , que falam o dilaceramento interior sobre o que é o Brasil [...]; para Drummond, naquele momento, sem que ele defina, o naciona­lismo é uma estratégia, uma vez que acredita nas idéias univer­sais (Santiago, 2002: 11).

 

Como se vê, a correspondência privada entre os dois escrito­res, é responsável pelas mudanças que levam a produzir o primeiro livro. Antes, porém, de escrever sobre Alguma poesia em órgãos da imprensa, Mário justifica-se, em carta de 01/07/1930. Diz: "Não desconfie, mineiro, de eu não escrever publicamente sobre o seu li­vro. Faz perto de dois anos, desde que vim do Nordeste, que aban­donei totalmente a crítica literária" (1982:152). Como afirma não ser a mesma coisa escrever para o público, irá analisar o livro no âmbito da carta, "na mais livre sinceridade do amor" (mais uma vez o tópico da amizade abranda o tom paternalista da palavra de auto­ridade), base para a amizade que não se afetaria com as possíveis res­trições: "E se não podia e não posso deixar de ler o seu livro sem toda a paixão da amizade, é certo que ojulgo sem condescendência" (1982: 153). Antes das restrições, os elogios: apesar de o livro ainda se valer de "assuntos já revelhos na poesia modernista", supera a impressão de passadismo, o que lhe assegura valor extraordinário e permanen­te. Pautando-se pelo novo , enquanto categoria de valor, Mário toma como parâmetro a sua própria poesia daquele momento que intenta superar os modismos modernistas para ele já passados, cujos ecos ainda vê no primeiro livro de Drummond, que consegue, apesar disso, uma "integralidade segura, bem macha com que seus poemas reunidos e em tipografia vencem os perigos que atravessam" (1982: 153). Com isso, o livro não teria valor episódico, datado; a qualida­de do todo é marcada pela "força intensíssima do lirismo de você, pela originalidade dele dentro do assunto já batido" (1982: 153). Assim, lirismo forte, originalidade, busca do novo seriam valores positivos do volume.

A carta se prolonga por mais dias e passa a comentar, depois de releitura, as restrições: o excessivo individualismo ("Há uma exas­peração egocêntrica enorme nele", que, se não diminui os valores do lirismo, diminui os valores edificantes utilitários da poesia), a que associa a timidez que dá a medida psicológica exterior - "pros ou­tros, espetacular". Tais restrições são condicionadas pelo lado socia­lista, o lado pragmático que o crítico diz possuir, diferentemente de Drummond, que, a exemplo de Bandeira (referencial forte no jul­gamento de Mário, que quer também analisar o poeta estreante em livro, em relação a seus pares de geração), coloca a sociedade, a hu­manidade, a nacionalidade em relação ao eu, não o eu em relação a elas. O sujeito - com sua "exasperação egocêntrica" - é a medida da visão do mundo; é o condicionante que, valendo-se da inteligên­cia e da sensibilidade, lança mão do amargor e do humour , mas tam­bém da forma mais exterior dele, o poema-piada, o poema-coquetel. E alonga a carta, dias depois, com as considerações técnicas sobre a riqueza rítmica, a naturalidade e a espontaneidade de dicção, que evita, quase sempre, o efeito forçado (aponta, pois, para um traço aparentemente contraditório: a técnica a serviço de uma forma cons­cientemente buscada, ao lado da espontaneidade ligada aos valores da vida - o que parece repetir a fórmula reivindicada no "Prefácio Interessantíssimo": Poesia = lirismo + arte). Sugere, ainda, o cami­nho tomado por Drummond, com as associações subconscientes, com um lirismo alucinante, livre da inteligência, que o fazem apro-ximar-se do "sobrerrealismo", o que possibilita "o lirismo se separar do individualismo, e pela sua vagueza, se tornar mais humano e mais geral" (1982: 157). As observações um tanto restritivas sobre o se­qüestro sexual e o seqüestro da vida besta antecedem o fecho elogioso: "Carlos, seu livro é admirável, admirável, uma coisa grande. Minha felicidade por ele é como se ele fosse meu" (1982: 159). Ele sabe que é farol, professor e modelo.

A crítica total prometida para o livro tal qual fora enviado em 1926, ficou para um outro em diferença, recomposto e reescrito seguindo "as lições do amigo", para se encorpar no volume Alguma poesia , arrolado como um dos livros importantes da "poesia em 1930". Como se viu, essa crítica circula restritamente, em primeira mão, no âmbito privado 3 , na troca da correspondência que acom­panhou todo o processo de elaboração. Será ela reproduzida, com ajustes exigidos para outro tipo de circulação, quando pula para a esfera pública, em que a assinatura de Mário de Andrade legitima o jovem poeta para um público mais amplo. Ao fazê-lo, procura situar Drummond em relação à poesia modernista e entre seus pares (como já vinha insinuando na correspondência) que publicaram livros de poemas naquele ano de 1930: Manuel Bandeira ( Libertinagem ), Augusto Frederico Schmidt ( Pássaro cego ) e Murilo Mendes ( Poemas ), para ele poetas que já se livraram das "inconveniências da aurora".

O teor dessa crítica procura associar arte e vida, esse tópico romântico retomado pelas vanguardas, que Mário traça como lema para si próprio e requer para Drummond. Por isso destaca como marca do livro o individualismo associado à timidez do poeta mi­neiro que se choca com a inteligência e a sensibilidade: "coisas que se contrariam com ferocidade" - diz o crítico (Andrade, s.d.: 33). Desse combate a poesia toda de Drummond é feita. "Poesia sem água corrente, sem desfiar e concatenar de idéias e estados de sensibilida­de, apesar de toda construída sob a gestão da inteligência. Poesia feita de explosões sucessivas" [a fragmentação] (s.d.: 33) - frases trans­critas literalmente da carta. Lá como aqui, o crítico ancora-se num fundamento de base psicológica que leva a não dissociar o homem e o poeta (tópico fartamente disseminado na correspondência entre os dois poetas). O psicologismo condiciona, deste modo, certos tra­tamentos temáticos (a exemplo do "seqüestro sexual" e do "seqües­tro da vida besta" - destacados pelo crítico) e certas técnicas que comandam a variedade de dicções associada à "riqueza de ritmos" detectada nos poemas do livro, que revela "um compromisso claro entre o verso-livre e a metrificação" (s.d.: 32). Se a timidez gera uma dicção sentimental e melancólica, a reação intelectual contra ela manifesta-se através do uso sistemático da ironia (como dirão Luiz Costa Lima e José Guilherme Merquior), e do humour .

Talvez se possa afirmar que essa recepção do leitor Mário de Andrade forneça certas matrizes que, conscientes ou não de suas origens, foram retomadas sob ângulos diversos por outros críticos ao longo da trajetória da poesia de Drummond. Formuladas com ou­tras retóricas e arcabouços teórico-críticos distintos, as especulações de Mário em torno da poesia de Drummond funcionam como ca­pital circulante que num ciclo transformativo geram novos capitais circulantes, que formam a volumosa fortuna crítica sobre o poeta. Assim, esse capital inicial fornece algumas pistas que são permanen­temente postas em circulação 4 : as tensões entre a autonomia do poeta e os compromissos com a sociedade; o papel do poeta numa socie­dade de classes, capitalista e mercantilista ("o poeta adquiriu uma consciência penosa da sua inutilidade pessoal e da inutilidade social e humana da 'vida besta' - Andrade, sd: 36); as tensões entre a cons­tituição do sujeito, sua autonomia, seu individualismo e as exigên­cias da vida social; a subjetividade exasperada; o caráter trágico de sua poesia; as relações entre a biografia e a poesia; o papel do humor e da ironia; técnicas estilísticas recorrentes na obra; a técnica e a es­tética da fragmentação. Compõe, assim, um elenco de procedimen­tos formais, de traços ideológicos, de visão de mundo, além das sugestões temáticas, como a memória e a família, que serão amplia­das e refinadas pela própria produção poética de Drummond ao longo dos anos. A circulação da poesia mediada por esse capital crí­tico faz dele um dos poetas mais estudados da literatura brasileira.

 

Referências bibliográficas

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Notas de rodapé

 

* Este trabalho, apresentado no 7º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, realizado na Brown University, USA, em julho de 2002, constitui uma versão parcial de um longo ensaio inédito sobre a recepção da poesia de Carlos Drummond de Andrade, a ser publicado no volume das poesias do poe-ta mineiro, coordenada por Silviano Santiago para a Coleção Arquivos, da Unesco.

1 As reações ao "poema da pedra" foram compiladas pelo próprio Drummond, em Uma pedra no meio do caminho : biografia de um poema; seleção e monta­gem de CDA; prefácio de Arnaldo Saraiva, Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1967.

2 Para cada poema faz algum comentário, aponta defeitos, oferece sugestões para mudanças e consertos, julgamentos de valor e de ordem técnica que redundam numa espécie de classificação (tipo: distinção, distinção com louvor, prêmio de viagem, obra-prima, magistral, quando cabe um elogio). Ver todas as anotações em A lição do amigo , 1982, p. 82-87.

3 É curioso observar que, à medida que vão ganhando espaço na correspondência assuntos relacionados à vida e à política culturais do país, quando Mário quer se "embebedar de ações", assumindo cada vez mais o papel de intelectual, que interfere na coisa pública, e Drummond já está no Rio de Janeiro chefiando o gabinete de Gustavo Capanema, os comentários sobre a poesia do amigo vão rareando. Mais explicitamente, só volta a fazê-lo na carta de 15/08/1942, para escrever sobre Sentimento do mundo , publicado nesse ano.

4 A extensão deste trabalho não comportaria um levantamento exaustivo dessas recorrências. A título de exemplo, podemos citar algumas retomadas de tópicos levantados ou sugeridos por Mário de Andrade:

. Se Mário de Andrade percebeu no jovem Drummond os conflitos entre o individualismo e as exigências da vida social, Antonio Candido, em "Inquietudes na poesia de Drummond" (1970), vê essa tensão refinada e complexificada no Drummond maduro, cuja polaridade se manifesta, de um lado, "pela preocu­pação com os problemas sociais e, de outro, com os problemas individuais, ambos referidos ao problema decisivo da expressão que efetua a sua síntese" (1970: 96). Continua o crítico em sua formulação: "O bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que provêm umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo, têm uma exposição mitológica da personalidade" (p. 96). Guarda, portanto, um lastro psicológico, como também Mário detectara. Para Candido, há na obra do poeta "uma constante invasão de elementos subjetivos, e seria mesmo possível dizer que toda a sua parte mais significativa depende de metamorfoses ou das projeções em vários rumos de uma subjetividade tirânica, não importa saber até que ponto autobiográfica" (p. 96).

.Luiz Costa Lima, no ensaio "Drummond: as metamorfoses da corrosão" (1989), à semelhança do estudo de 1968 ("O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade"), tem como contraponto a questão da emocionalidade do poeta, ou seja, a "subjetividade tirânica" (Antonio Candido citado), ou a "exasperação egocêntrica" (como disse Mário de Andrade), cuja presença, mais ou menos controlada ou domada, na elaboração poética, passa a valor crítico de julgamento. Se o princípio-corrosão funciona como controle dessa subjeti­vidade, sua "naturalização" ou suspensão faz esse núcleo emocional condicio­nar a expressão poética.

. John Gledson, em Poesia e poética em Carlos Drummond de Andrade (1981), aborda o papel da "consciência" do poeta quanto às possibilidades e limitações com que se defronta, ao investigar o tipo de poesia que quer escrever. Essa consciência já havia sido percebida por Mário de Andrade na correspondência com Drummond e na crítica pública a Alguma poesia . Ao analisar a poesia e a poética de cada um dos cinco períodos que detecta, centralizados por A rosa do povo , Gledson retoma a intuição de Mário, que afirmara: "o poeta adquiriu uma consciência penosa da sua inutilidade pessoal e da inutilidade social e humana" (Andrade, s.d.: 36), a que se pode associar as tensões entre a autono­mia do poema e os compromissos com a sociedade (outra observação de Má­rio).

. Vagner Camillo, em seu livro Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas (2001), demonstra que meditação e reflexão se intensificam no projeto poéti­co drummondiano, para aprofundar o sentimento de culpa (já distante do "sentimento do mundo") e a consciência trágica do mundo (já detectada por Mário de Andrade e estudada por Marlene de Castro Correia, no ensaio "Tra­gédia e ironia em Os bens e o sangue " , de 1974, publicado em 2002, com o título "A inteligência trágica do universo".