Sumário

O outro modernismo

Eduardo Jardim de Moraes
PUC-Rio

O modernismo

É conhecida a declaração de Euclides da Cunha na "Nota pre­liminar" de Os sertões . Nela se lê que o mundo do sertão onde se passou a epopéia de Canudos está condenado ao desaparecimento. Diz o texto: "A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável 'força motriz da História' que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes."

A afirmação apresenta a feição característica das interpretações do Brasil que se firmaram no final do século XIX. Elas se fundam em uma concepção finalista da história, que, no caso brasileiro, tem como principal inspiração o positivismo comtiano. Para essa concep­ção, a história é um processo que se desdobra por etapas, em uma progressão linear, até atingir o seu acabamento. São três as etapas do desenvolvimento histórico - o passado, o presente e o futuro. Um critério espacial determina a compreensão dessas dimensões tempo­rais - o passado situa-se atrás, o presente diante, e o futuro, à fren­te de nós.

Uma importância decisiva é atribuída ao futuro, já que ape­nas um tempo vindouro acolherá o significado de todo o processo. O passado não é prestigiado. É, antes, considerado um fardo que é preciso descartar. No presente decide-se se o processo vai ser levado a bom termo. Isso se torna possível ao promover-se a liquidação do passado e armarem-se os dispositivos para garantir que a meta que se põe à frente seja atingida.

Também a compreensão do presente é determinada espacial­mente - ele é visto como um cenário que o olhar descortina, no qual as coisas estão dispostas de modo estático e situadas umas com relação às outras.

O tema da modernização da vida nacional motivou a compo­sição desses retratos-do-Brasil ao longo de mais de um século. Já os pioneiros das ciências sociais, no final do século XIX, consideraram as chances do ingresso do país na ordem moderna ao serem com­pensados os males de origem - a formação racial heterogênea e a herança portuguesa. O modernismo literário, nos anos 1920, bem como as grandes sínteses elaboradas nos anos 1930, como Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil contem­porâneo , de Caio Prado Jr., mantiveram as mesmas preocupações. Não obstante a diversidade de enfoques, apontaram, como mais tarde iriam fazer desenvolvimentistas e dependentistas, para uma solução revolucionária. A revolução estabeleceria um corte com o passado e libertaria o país para percorrer a linha da história até alcançar o pa-tamar moderno. O capítulo final de Raízes do Brasil , escrito na pri­meira metade dos anos 1930, refere-se ao lento cataclismo da dissolução dos freios tradicionais que prepara o advento de um novo e inevitá­vel estado de coisas. Por meio da "nossa revolução" seriam liquida­das as raízes ibéricas de nossa cultura e um estilo novo - americano - seria adotado. Em cada uma dessas propostas de retratar a vida brasileira, a história é considerada a partir de parâmetros espaciais. Ela deve dar conta de um deslocamento pelo qual se efetua a inclu­são da nacionalidade no contexto da vida moderna.

Um passo será dado no exame dessas interpretações ao se explicitar o nexo entre a concepção finalista da história e o ativismo que as caracteriza. A modernidade aparece nesses retratos como um ideal que precisa ser concretizado. Tendo o foco voltado para o pre-sente, eles buscam localizar os dispositivos que devem ser mobiliza­dos para acionar a marcha do processo histórico na direção do patamar moderno. Daí decorre o tom normativo dessas interpreta­ções que confundem o empreendimento compreensivo e a prescri­ção de preceitos para a ação. Isto também explica o fato de as diver­gências entre os vários intérpretes dizerem respeito mais à definição dos meios para atingir um mesmo objetivo, a vida moderna, do que à determinação dos conceitos de base na composição dos retratos da vida nacional. Todos são, cada um a seu modo, modernistas.

A filosofia contemporânea ocupou-se, em alguns momentos decisivos, em considerar um tema tradicionalmente pouco tratado, exceto possivelmente por Marx no século XIX, que é o do trabalho. Lembro aqui as obras de Bergson e de Heidegger. Ambos buscaram descrever o trabalho como o âmbito da instrumentalidade e o carac­terizaram como o ambiente mais próximo em que nos inserimos -

o da vida cotidiana. Situamo-nos no mundo, primeiramente, atu­ando sobre ele. Antes de as coisas aparecerem para nós propriamen­te como coisas, consideramo-las de acordo com a sua serventia. Com efeito, para Bergson, dependemos tanto da nossa capacidade ope­rativa para sobreviver, que seus critérios passaram a impor-se de for­ma quase exclusiva na compreensão de toda a realidade. Mesmo a inteligência é definida pelo autor de Matéria e memória como uma faculdade prática com a qual nos adaptamos ao mundo e temos a tendência a reduzir toda nossa vida intelectual a essa forma específi­ca de sua manifestação. Já para Heidegger, em Ser e tempo , o primei­ro passo da analítica do ser-aí, isto é, do ser do homem, diz respeito à definição do mundo ocupado pelos instrumentos. Na verdade, antes de apreendermos as coisas por meio de alguma visada teórica, de saber o que elas são, dispomos delas praticamente. E, possivel­mente, sequer nos daríamos conta da presença das coisas com seus contornos definidos, caso alguma falha não viesse impedir o bom funcionamento do vínculo utilitário que mantemos com elas. Bergson e Heidegger chamaram a atenção para o fato de que o ambiente em que é exercida nossa capacidade operativa é condicionado por crité­rios espaciais. Nossa intervenção na realidade precisa contar com balizamentos, isto é, com marcos estáveis que tomamos para nos orientar. Na vida de todo dia em que nos inserimos praticamente, as coisas não aparecem para nós como simplesmente dadas. Ao con­trário, elas compõem um ambiente dotado de estabilidade em que tudo se dispõe de forma determinada para o nosso uso.

Os retratos-do-Brasil, na medida em que descrevem o cenário em que são feitas as intervenções que asseguram a entrada na vida moderna, precisam adotar, necessariamente, uma concepção da his­tória espacializada, desprovida de substância temporal. Nessa pers­pectiva, a história descreve um processo de deslocamento, que corresponde à entrada na vida moderna. Como se verá adiante, isso traz conseqüências importantes para a consideração do tema da iden­tidade nacional.

Será possível escapar desses pressupostos?

O outro modernismo

A expressão "o outro modernismo", presente no título deste ensaio, indica a intenção de considerar, ainda no contexto do mo­dernismo, as referências que podem servir para uma abordagem da vida nacional que incorpore a dimensão da temporalidade. Nem todos os autores que serão referidos - Octavio Paz (1914-1998), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e o memorialista Pe­dro Nava (1903-1984) - lidaram diretamente com o tema da na­cionalidade. Tampouco esgotam as referências para uma possível investigação. No entanto, as indicações contidas em suas obras su­gerem a presença de um outro modernismo, cuja atitude básica, em vez de ativa, é, antes, de contenção, cujo domínio é a recordação e que pretende captar não o que é descontínuo, mas a duração.

Em diversas passagens de sua obra, Octavio Paz propôs uma reflexão sobre a situação de crise da modernidade que caracteriza a nossa época. Seus comentários inserem-se em uma consideração geral sobre as várias concepções de tempo que existiram ao longo da his­tória do Ocidente. Paz refere-se inicialmente à idéia de tempo cíclico presente nas sociedades antigas, de que os principais traços são a circularidade e o movimento de retorno a uma idade de ouro. Em seguida, o cristianismo introduziu a noção de tempo retilíneo apon­tando para o futuro. A história teve um início e terá um fim. Para o cristão, o fim significa a abolição do tempo na eternidade.

A modernidade se caracteriza por ser a idade da crítica. A crí­tica atinge, em primeiro lugar, a noção de eternidade. Daí resultou que o tempo dotado de uma dimensão linear passou a ter um signi­ficado estritamente secular. Na modernidade, a salvação não está mais na eternidade, mas no futuro. No discurso de Estocolmo, em 1990, Paz afirmou que, no contexto moderno, o Sol da história chama-se futuro e o nome do movimento para o futuro é progresso. Também a alteração do significado do termo "revolução" expressou a chegada da era moderna. No mundo tradicional, a expressão "revolução" era usada para se referir ao fenômeno da repetição periódica de um mesmo evento e estava ligada à repetição dos ciclos astronômicos. Na modernidade, "revolução" passou a significar ruptura, que pos­sibilita o acesso a um curso progressivo, que aponta para o futuro.

Desde os anos 1960, Paz notou que o conceito de tempo line­ar havia perdido força e que a modernidade que o havia forjado che­gara a um impasse. Ao descrever a situação de fim da era moderna, chamou a atenção para aspectos decisivos. Primeiramente, a ciência e a técnica que foram consideradas os principais agentes do progres­so, mostraram, no último século, sua face destrutiva. No século XX, também, a coletividade humana não caminhou para uma situação melhor, mas padeceu os piores sofrimentos. A própria noção de pro­gresso que tudo justificava caiu em descrédito. Isso se refletiu na falência das filosofias da história, que, nos últimos séculos, imagina­ram poder definir as leis do desenvolvimento histórico e que susten­taram as modernas utopias. Tendo em vista as mudanças ocorridas naquela altura, Paz pôde chamar a nossa época de crepúsculo do futuro.

As considerações de Paz sobre a falência do conceito moder­no de história o motivaram a deter-se no exame da experiência do tempo envolvida na atividade poética. Esse exame sublinha, inicial­mente, o fato de a experiência poética promover uma ruptura na maneira usual de lidar com o tempo. Já em O arco e a lira , de 1956, ele se refere a isso como uma transmutação decisiva no tempo cro­nológico provocada pelo poema. A experiência poética, o texto afir­ma, faz com que o tempo medido pelo relógio cesse de fluir, que ele deixe de ser uma linha em que instantes idênticos se sucedem. No início de Os filhos do barro , Paz observa que a operação poética con­siste em uma inversão ou conversão do fluir temporal. O poema, ele acrescenta, é uma máquina que produz anti-história, se entendemos por história, naturalmente, o registro dos eventos ao longo de um curso linear.

Ao contrário do que se poderia supor a partir desses comentá­rios, Paz não acredita que o poema, ao escapar do registro temporal habitual, tenha acesso a um âmbito supratemporal. Ao contrário, sua idéia é de que a experiência poética possibilita o contato com uma dimensão mais própria da temporalidade, que ele chama de tempo original ou arquetípico, para distinguir do tempo cronométrico. A experiência poética consiste em uma imersão em uma forma essen­cial do tempo. Ela envolve uma recriação do tempo, assumida pelo poeta e pelo leitor. Essa linha de reflexões deságua na principal tese do ensaísmo de Octavio Paz relativo ao tema da consagração do ins­tante. Desde O arco e a lira , ele não cessou de pesquisar as muitas maneiras de dizer a mesma coisa - de que a suspensão da experiên­cia cotidiana da temporalidade, em que nos atemos ao pequeno pre-sente, que é obtida entre outros caminhos pela poesia, revela a dimensão de um presente em sentido forte, de um Instante, grafado com a inicial maiúscula, que é pura desmedida. No final da vida, no discurso de Estocolmo, Paz resume da seguinte maneira a sua traje­tória:

 

Em minha peregrinação em busca da modernidade me perdi e me encontrei muitas vezes. Voltei à minha origem e descobri que a modernidade não está fora mas dentro de nós. É hoje e é a antiguidade mais antiga, é amanhã e é o começo do mundo, tem mil anos e acaba de nascer. Fala em náhuatl, escreve em ideogra­mas chineses do século IX e aparece na tela de televisão. Presen­te intacto, recém-desenterrado, que sacode a poeira dos séculos, sorri e logo se põe a voar e desaparece pela janela. Simultaneida­de de tempos e de presenças: a modernidade rompe com o pas­sado imediato apenas para resgatar o passado milenar e converter uma estatueta de fertilidade do neolítico em nossa contemporâ­nea. Perseguimos a modernidade em suas incessantes metamor­foses e nunca logramos capturá-la. Escapa sempre: cada encontro é uma fuga. Mal a abraçamos, se dissipa: era apenas vento. É o instante, este pássaro que está em toda parte e em lugar nenhum. Queremos capturá-lo, mas abre as asas e se desvanece, transfor­mado em um punhado de sílabas. Ficamos de mãos vazias. En­tão as portas da percepção se entreabrem e aparece o outro tem­po , o verdadeiro, o que buscávamos sem o saber: o presente, a presença. 1

 

Desde a publicação de seu primeiro livro, Alguma poesia (1930), Carlos Drummond de Andrade foi o poeta da recordação. Um dos seus primeiros poemas, "Infância", recolhe a matéria com que toda a obra será feita - a lembrança, vivida com espanto, de uma cena infantil. "Eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé."

No final dos anos 1930 e ao longo dos anos 1940, Drummond tentou aproximar sua poesia de uma forma de engajamento. Os poemas desse período apresentam acentuada dramaticidade, pois encontram-se tensionados entre, de um lado, o apelo à participação política e, de outro, o vigor resguardado da vocação poética. Muitos deles expressam a intenção de fixar-se à realidade presente, em uma posição assumida pelo poeta como contrapoética. Em "Mãos dadas", de Sentimento do mundo , a seguinte provocação pode ser lida: "O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente." Por momentos, o próprio substrato da sua poesia, a recordação, é deliberadamente questionado. Em "Resíduo", de A rosa do povo , depois de ter tratado do que precisamente extravasa o mo­mento presente e de ter repetido a cada estrofe o refrão "de tudo fica um pouco", o poeta conclama em súbita posição de alerta: "Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória."

Posteriormente, Drummond ampliou o significado da recor­dação da infância. Na maturidade, passou a enfocar as cenas da his­tória individual, visando atingir o passado mítico da região em que nasceu e a que estava ligado - Minas Gerais. Três de seus últimos livros foram dedicados a isso - os três volumes de Boitempo . Tam­bém aprofundou sua compreensão da recordação a que chamou, a certa altura, de pasto de poesia. Pôs, como subtítulo de um de seus livros, Esquecer para lembrar , indicando a presença de um duplo movimento da memória. Por um lado, para haver recordação é pre­ciso que a atenção se desvie do presente, se subtraia a ele, o esqueça. A memória exige o desprendimento das exigências pragmáticas que definem o presente como recorte temporal exclusivo. Temos de nos desocupar do que é atual para sermos invadidos pela recordação. De certo modo, já em "Evocação mariana", poema incluído em Claro enigma , Drummond tinha notado que a poesia constitui uma espé­cie de liberação do presente. Ao evocar a visita a uma antiga igreja de sua terra, em uma cerimônia cheia de singeleza, envolvido pela penumbra e pela música, o poeta percebe que "de seu peso terrestre a nave libertada, como do tempo atroz imunes nossas almas, flutuá­vamos no canto matinal, sobre a treva do vale".

A poesia, tendo libertado a atenção do presente, possibilita a aproximação do que não é dado à percepção imediata, do distante. A poesia de Carlos Drummond de Andrade não visa ao resgate de um tempo passado, não apresenta qualquer postura regressiva, pois não existe propriamente o tempo passado. Seu propósito é pôr-se em sintonia com uma dimensão da temporalidade, chamada de dura­ção, que não compreende as divisões do passado, do presente e do futuro. É o que explica o poema Duração :

O tempo era bom? Não era.
O tempo é para sempre.
A hera da antiga era
roreja incansavelmente.

Aconteceu há mil anos?
Continua acontecendo.
Nos mais desbotados panos
estou me lendo e relendo.

Tudo morto, na distância
que vai de alguém a si mesmo?
Vive tudo, mas sem ânsia
de estar amando e estar preso.

Pois tudo enfim se liberta
de ferros forjados no ar.
A alma sorri, já bem perto
da raiz mesma do ser.

Pedro Nava publicou seu primeiro livro - Baú de ossos - aos 69 anos. Nos anos seguintes, escreveu outros cinco, que reúnem suas memórias. Os livros ocupam-se de memórias em sentido bastante amplo - eles transbordam as fronteiras da biografia do autor e tra­çam a genealogia das várias famílias com que se relaciona. Baú de ossos justifica, com humor finíssimo, o trabalho do genealogista. Ele ser­ve para estabelecer o valor-saúde das famílias e da nação, para orien­tar a busca de tesouros escondidos, para alimentar o orgulho e a vaidade e, por último, a genealogia constitui a oportunidade para, poeticamente, explorar o tempo. Nava, médico e escritor, explica que pela genealogia damo-nos conta de que não há

 

nada de novo sobre a face do corpo. Nem dentro dele. Esse riso, esse jeitão, esse cacoete, esse timbre de voz, esse olhar, esse cho­ro, essa asma, essa urticária, esse artritismo, esse estupor, essa uremia - são nossos e eternos, são deles e eternos. Vêm de trás, passam logo para o futuro e vão marcando uma longa cadeia de misérias. São sempre iguais e emergem ao lado das balizas trági­cas do nascimento, do casamento, do amor, do ódio, da renún­cia, da velhice e da morte. Vão pontuando e contrapontuando um longo martírio. 2

Assim, a exploração do genealogista abre caminho para que se vis­lumbre algo de permanente, além das balizas trágicas da vida de cada indivíduo, que é a pura impermanência. Na mesma direção vão as afirmações de Pedro Nava, muitas vezes repetidas, de que seus livros são uma invocação dos mortos, ("meus mortos", ele insiste em di­zer), e de que, em seu convívio, se protegia das angústias do presen­te. A recordação dos mortos nos daria a impressão de tocar em algo perene, que nos consola da brevidade da vida.

A afirmação retoma o conceito de muitos autores, desde a Antiguidade, de que o pensamento - de que a memória é uma das dimensões - transporta para um lugar de calma, identificado ao mundo dos mortos. A idéia, presente desde Platão, de uma associa­ção entre o modo de vida filosófico e a morte tem o mesmo sentido. Sua principal formulação está no Fédon , quando Platão atribui a Sócrates a tese de que o filósofo não deve temer, mas desejar a mor-te, porque só ela, ao permitir a separação do corpo e da alma, possi­bilita a esta última contemplar a verdade. A filosofia seria, por esse motivo, um exercício para a morte. Os estóicos tiveram a mesma opinião, acrescentando ainda a idéia de um consolo da filosofia. A norma de conduta pregada por eles - "vivei escondidos!" -inspi-rou-se na lição platônica.

Todos esses comentários manifestam o esforço para dar conta da radicalidade das experiências do pensamento e da memória. Pen-sar e lembrar, ao suspenderem as ocupações presentes e ao oporem­se à sua urgência, adquirem uma cadência contida, que a imaginação dos filósofos associou ao que ocorreria depois da morte.

Para onde conduz essa cadência? A tradição inaugurada pelos gregos imaginou que se tratava de um deslocamento para um plano de realidade essencial, chamado de metafísico. Já o escritor minei-ro-carioca Pedro Nava prefere representar a memória na figura de um barco fabuloso que, de comporta em comporta, navega o Tempo. "Sobe e desce a corrente do Tempo."

A experiência poética para Octavio Paz, o universo da infân­cia de Drummond, o mundo dos mortos de Pedro Nava não são delimitados espacialmente, como tudo que se passa na vida de todo dia. São experiências no tempo. São maneiras de exprimir um con­tato com uma dimensão profunda da temporalidade que não pode ser representada por uma linha em que se sucedem passado, presen­te e futuro.

Hannah Arendt dedicou os ensaios de Entre o passado e o futuro ao exame da crise característica de nossa época, o ponto de aca­bamento do desmonte da tríade da tradição, da religião e da autoridade sobre a qual nossa civilização se sustentou. Relativamente à crise da tradição, Arendt afirmou que com ela "perdemos o fio condutor que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado" 3 . É possível, ela ponderou, que tradição e passado sendo coisas distintas, este possa sobreviver à falência daquela. Mas é verdade também que a perda de um fio condutor constitui uma grave ameaça à sobrevivência do passado, pois sabemos que dificilmente a mente humana retém algo inteiramente desconexo, fora de um quadro de referências estabelecido. Por essa razão, o drama contemporâneo do fim da tradição envolve a capacidade de recordação. "Estamos ameaçados de esquecimento", advertiu Hannah Arendt. Com isso ela quis indicar que a ameaça que pesa sobre o mundo, atualmente, não diz respeito apenas à perda de determinados conteúdos, mas de uma dimensão de profundidade da experiência humana, já que memória e profundidade são idênticas. A dimensão de profundidade, vale a pena sublinhar, remete a uma experiência de imersão ou de enraizamento em um solo mais essencial e não a alguma forma de deslocamento no espaço. Já tocamos no mesmo assunto quando tratamos do Instante de Octavio Paz, da duração de Carlos Drummond, do Tempo como um rio que a memória percorre de Pedro Nava, do sentido da expressão "entre o passado e o futuro" de Hannah Arendt. Gostaria de acrescentar - a profundidade deve constituir também a condição para se dar conta da identidade. Identidade, certamente, não no sentido de algo cujo contorno podemos fixar, mas como o que dura no tempo, ou melhor, que é do tempo.

Notas de Rodapé

* Este texto foi objeto de exposição oral no Espaço Brasileiro de Estudos Psicana­líticos, Rio de Janeiro, maio de 2002, e foi publicado em seu boletim interno.

1 La quête du présent , Paris, Gallimard, 1991.

2 Pedro Nava, Baú de ossos , Rio de Janeiro, José Olympio, 1972, p. 186.

3 Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro , São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 130.