Sumário

Conteúdo e relevância da identidade nacional portuguesa

Manuel Villaverde Cabral
Universidade de Lisboa

A questão das identidades - pessoais ou colectivas; sociais, locais ou nacionais-é sem dúvida das mais controversas, levantando problemas filosóficos e epistemológicos demasiadamente mal resol­vidos até hoje, na minha opinião, por resvalarem com excessiva frequência para a essencialismo identitário. Foi por isso, creio eu, que a historiografia tradicional se manteve céptica e mesmo distante perante a questão das identidades.

Só há cerca de um quarto de século, com a erosão paulatina do paradigma da história estrutural da primeira École des Annales , correlativa por seu turno da erosão das clivagens políticas tradicio­nais subjacentes à formação dos actuais regimes representativos 1 , é que a questão da identidade nacional começou a adquirir, sob a in­fluência crescente da antropologia e da sociologia pós-modernistas 2 , um papel cada vez mais importante na pesquisa e interpretação historiográficas.

Permanece irresolvida, contudo, no estudo das identidades nacionais modernas - para não falar das identidades antigas, i.e., anteriores à Revolução Americana, à activação política explícita do patriotismo pela Revolução Francesa e, posteriormente, pela eclosão de movimentos de independência nacional desde o século XIX até ao período da chamada Descolonização - permanece irresolvida, dizia eu, a controvérsia acerca do primado da Nação sobre o Estado ou deste sobre aquela.

 

Instrumentalistas, primordialistas e conciliadores

 

Com efeito, parecem-me incontornáveis alguns dos argumen­tos - que não todos - dos autores que, como Ernest Gellner 3 , conferem ao Estado uma espécie de primado empírico sobre a Na­ção e a correlativa identidade, que surgiria então como o resultado

- por assim dizer, compensatório - de processos de aculturação individualizantes e desenraizadores, como a urbanização, a industria­lização e a própria alfabetização, em suma, aquilo a que, na sociolo­gia histórica, se dá vulgarmente o nome de modernização.

Para Gellner, como é sabido, aquele primado, que de algum modo reduz as chamadas identidades nacionais a uma dimensão virtualmente instrumental, pode ser resumido em mensagens de cariz algo provocatório como: "Dêem-me um Estado e eu vos darei uma Nação" ou "As etnias de hoje são nações malsucedidas; as nações de hoje mais não são do que etnias bem-sucedidas"!

Do mesmo modo, porém, são dificilmente refutáveis alguns dos argumentos - que não todos, também - daqueles que, como Anthony Smith 4 , defendem que nenhuma elite guerreira, cultural e/ ou económica seria susceptível de fundar um Estado se as "massas" que essa elite pretende representar e dirigir não possuíssem, à parti­da, uma qualquer identidade colectiva referida ao território objecto desse Estado. Resta saber se esta última identidade corresponde, efectivamente, àquilo que os defensores do nacionalismo cultural e político designam por identidade nacional.

Uma versão extrema desta corrente essencialista - mais ade­quadamente designada, porventura, como primordialista 5 - pode encontrar-se, por exemplo, num livro do antropólogo de origem catalã Josep Llobera, com a sua introdução da noção de "potencial étnico" contra qualquer ideia de "invenção da tradição" 6 . Com efei­to, logo de início, Llobera introduz essa "ideia de um potencial etno­nacional como um conceito fundamental" da sua teoria, acrescentan­do imediatamente: "O potencial etno-nacional aparece no período moderno como um dom : uma região tem esse potencial ou não o tem" (grifo meu) 7 .

E para que não subsistam dúvidas quanto à natureza primor­dialista, para não dizer mesmo essencialista, desta noção, já antes o autor havia escrito: "Nas suas origens e na sua essência, a identidade nacional é uma tentativa de preservar os 'costumes' dos nossos ante­passados [...] O nacionalismo põe em destaque a necessidade das raízes e da tradição na vida de qualquer comunidade; evoca a 'posse comum de uma rica herança de recordações' (Renan)" 8 .

Atribuindo à Nação "o carácter sagrado que herdou da reli­gião", Llobera conclui, em oposição radical às teses do primado empírico do Estado sobre qualquer identidade nacional, que "o grau de êxito das políticas de construção da nação projectadas pelo Esta­do está em relação directa com o maior grau de homogeneidade nacional étnica que existe num país" 9 . Paradoxalmente, no mesmo livro onde o caso da Catalunha é abundantemente abordado no contexto ibérico, o autor considera que "o facto de Portugal se ter convertido num estado independente e de ter permanecido como tal foi, em grande medida, o resultado de um acidente histórico" 10 .

Esta conclusão - que não só fere as convicções dos naciona­listas portugueses, em contraste com a firme convicção do autor a respeito do "potencial etno-nacional" da Catalunha, como inverte radicalmente tudo quanto ele próprio afirmara acerca do papel su­bordinado do Estado na construção da Nação, - esta conclusão acerca de Portugal, dizia eu, mostra como toda e qualquer concep­ção primordialista da identidade nacional entra, rapidamente, em flagrantes contradições sempre que se muda de nação: o que serve de "identidade" a umas parece já não servir a outras...

A verdade, porém, é que também não se pode dizer que a conhecida tese de Benedict Anderson sobre as "comunidades imaginá-rias" 11 - onde o autor procura de algum modo conciliar as concep­ções primordialistas com as concepções instrumentais da identidade nacional - tenha logrado superar definitivamente a controvérsia sobre a primazia da Nação ou do Estado nos processos identitários, ao tentar deslocar a ênfase do debate para as interacções simbólicas e materiais entre comunidade e Estado na construção das identida­des nacionais hodiernas.

Algo de semelhante acontece, também, com a ideia da "inven­ção da tradição" proposta por Hobsbawm 12 , onde o autor propõe uma tese igualmente conciliatória sobre o papel do Estado na "actu­alização normativa" dos sentimentos nacionais, inclusivamente ao nível das tradições linguísticas e religiosas, habitualmente inscritas nas alegadas matrizes identitárias. No caso português, investigações recentes têm mostrado, efectivamente, que a difusão e padronização da língua portuguesa estão longe de ter precedido a constituição do Estado, tendo pelo contrário exigido frequentes intervenções esta­tais no sentido de estabelecer normativamente a tradição 13 .

E não é necessário recordar que também a unidade religiosa da "nação portuguesa" não se fez sem a repressão promovida, recor­rentemente, pela aliança entre o Estado e a Igreja Católica, não só contra muçulmanos e judeus, mas também contra todas as manifes­tações da Reforma em Portugal; inversamente, só a apropriação do aparelho de Estado pela contra-elite liberal permitiu consagrar - e apenas de forma temporária e precária - a separação entre Igreja e Estado.

Contas feitas, pela minha parte, sou tentado a ver em abordagens conciliadoras, como as de Anderson e Hobsbawm, as soluções disponíveis mais adequadas, presentemente, para o estudo sincrónico das identidades empíricas, desde que aceitemos abandonar ao indecidível histórico a sua dimensão diacrónica e, por maioria de razão, as suas origens fundacionais 14 . Daqui que os defensores mais acérrimos do primado ontológico da Nação, no sentido de unidade etno-cultural que atribuem ao termo, como Smith e Llobera, desqua­lifiquem as teses conciliatórias por cederem, em última instância, à primazia do Estado na construção das chamadas identidades nacionais.

 

Genealogias da identidade nacional portuguesa

Para o caso da identidade nacional portuguesa, foi basicamente uma abordagem conciliatória a adoptada, por exemplo, por José Mattoso no seu ensaio sobre a identidade portuguesa. O autor não só resiste ao essencialismo identitário como chega a dar formalmen­te a primazia ao Estado no processo de construção da Nação 15 . Toda­via, Mattoso também não deixa de se interrogar, naquele e noutros trabalhos como medievalista especializado no período da formação do Estado português ao longo do século XII, sobre algo que se po­deria designar, na linha do "potencial étnico-nacional" de Llobera, como a "existência de Portugal antes de Portugal", perguntando-se às vezes o autor "se não seriam já 'portugueses' os habitantes do fu­turo Portugal 16 ?

Desde logo, porém, tais "portugueses" nunca seriam, do pon­to de vista empírico e de acordo com o próprio Mattoso, mais do que os habitantes de uma estreita faixa territorial entre o rio Minho e o rio Douro, quando muito o rio Mondego, mas não incluiriam nem os habitantes de Lisboa nem, decididamente, os de todo esse vasto "Portugal mediterrânico" situado nas margens e a sul do rio Tejo 17 .

Um argumento suplementar contra a concepção da nação como etnia residiria, apesar da naturalização da "nação portuguesa" devida à longa duração e continuidade do Estado nacional, no facto de a sociedade portuguesa não constituir, manifestamente, do ponto de vista sociocultural, uma "etnia", mas sim várias, pelo menos duas, conforme se pode ainda ver, hoje em dia, através dos mapas do comportamento eleitoral, maxime nas eleições presidenciais de 1986 e de 1996. Por força da drástica redução imposta pelo mecanismo da eleição presidencial em dois turnos, aí continuam a espelhar-se os dois grandes espaços culturais que estão na origem do território nacional, bem como as tradicionais clivagens a eles associadas, basicamente: Norte/Sul e campo/cidade, dobradas pelas diferenças induzidas pela implantação do catolicismo 18 .

Por outras palavras, mesmo que fosse possível reconduzir ao Noroeste atlântico do Portugal actual um "potencial étnico-nacio-nal" qualquer, todo o resto do território português- metade ou mais dele, incluindo a futura capital do reino - teria sido, por assim di­zer, anexado e nacionalizado a partir de cima, do duplo ponto de vista territorial e simbólico, isto é, pela elite nortenha - guerreira e cató­lica - capitaneada por Afonso Henriques e os seus próximos suces­sores na chefia do Estado português recém-fundado.

Alternativamente, a par desta tese de "segundo grau" sobre a construção da nacionalidade portuguesa, ainda se poderiam invocar os "factores democráticos" na formação de Portugal outrora defen­didos, embora talvez sem suficiente base empírica, por Jaime Corte­são - a saber, a "identidade marítima" das populações costeiras, piscatórias e embarcadiças, vivendo já então de costas mais ou me-nos viradas para o maciço continental ibérico 19 .

Nesta mesma linha da argumentação "marítima e democráti­ca" entroncaria, por exemplo, a conquista da Lisboa multiétnica e multicultural, para não dizer cosmopolita, e o papel da capital - no mínimo, coagulante primeiro, e liderante depois - na constru­ção do Estado e, consequentemente, na nacionalização do território e das suas variegadas "etnias", para não falar do futuro papel de Lis­boa como plataforma da expansão ultramarina 20 .

Em suma, não creio que o debate geo-historiográfico acerca das origens da nacionalidade portuguesa permita decidir quanto a elas com qualquer segurança 21 , nem tão pouco quanto aos factores determinantes da consolidação do Estado medieval português, para além da "dupla contingência" de qualquer evolução societal, ou seja, a sucessão de opções contingentes - isto é, adoptadas fora de qual­quer determinismo, fosse ele o da "identidade nacional" dos actores relevantes - que não deixam, no entanto, de condicionar parcial­mente - isto é, abrir e fechar ao mesmo tempo - o campo das opções futuras 22 .

No caso, isso significaria apenas que o êxito da formação do Estado português, embora só em remota medida motivado pela even­tual "existência de portugueses antes de Portugal", não poderia dei­xar de fechar parcialmente o campo dos possíveis a opções futuras que excluíssem do seu horizonte a existência desse mesmo Estado e da correlativa formação de identidades sociais e pessoais em torno dele. Assim, um mero "acidente histórico", como Llobera lhe cha­ma, e talvez tenha sido, se terá constituído numa espécie de "neces­sidade de segundo grau".

 

Uma "ideia" de Portugal

 

Em contrapartida, a prova dessa "necessidade" - por assim dizer, superveniente - reside no avançado grau de elaboração já manifestado pelo sentimento de identidade nacional portuguesa por altura da crise sucessória de 1580, para não recuar às crónicas da crise similar do final do século XIV (Fernão Lopes, circa 1430). Com efeito, ao contrário do que crê Llobera, basta pensar em Os Lusíadas

- até por comparação com outras epopeias estrangeiras suas con­temporâneas - para nos darmos conta desse elevado grau de elabo­ração da ideologia nacional, que se apresenta já com contornos muito próximos da forma definitivamente codificada no século XIX, com recurso aliás à própria celebração de Camões iniciada com Garrett e consumada pelo nacionalismo republicano 23 .

Restrita, embora, aos reduzidos círculos letrados da sociedade de então, o que não constitui de resto nada de anómalo, a elabora­ção da identidade portuguesa não se limitava já às manifestações li­terárias, ganhando a sua reprodução particular alento com a "perda da independência nacional" para o rei de Espanha. A "ideia de Por­tugal" que então é elaborada, por exemplo, por um autor importan­te mas sem o relevo de Camões, como Fernando Oliveira, nos seus manuscritos inéditos do Livro da antiguidade, nobreza, liberdade e imunidade do Reino de Portugal e da História de Portugal , datados de 1579-1580, é um indício seguro da maturação, no seio da camada letrada da época, de uma consciência nacional, cujas semelhanças com aquilo que hoje tomamos como a "identidade portuguesa" são notórias, tanto no plano da simbologia como no plano político pro­priamente dito 24 .

Naturalmente, desde a invocação da "antiguidade" à "imuni­dade" de Portugal, a retórica identitária de Fernando Oliveira visa, antes de mais, à construção de uma etno-genealogia - como escre­ve José Eduardo Franco - destinada a combater o argumento do pretendente à coroa de Portugal, Felipe II, segundo o qual a "dife­rença entre Portugueses e Castelhanos não tem mais ser que um nome vão e falso, pois os espanhóis são uns como os outros e diferem tão pouco na língua, no trato e nos costumes" 25 .

Ao mesmo tempo que faz recuar a existência de portugueses a tempos imemoriais 26 , o historiador quinhentista dessa "comunida­de imaginária" não hesita em afirmar: "A terra de Portugal digo que é livre, e é do povo natural dela, e os reis não são senhores dela, nem a podem vender, nem trocar, nem obrigar sem vontade do povo" 27 . Assim, a reivindicação de um "rei natural" da terra ultrapassa, com Fernando Oliveira, a questão dinástica para fazer depender a "elei­ção do rei" da pertença deste à cultura dos habitantes do território nacional e à defesa dos seus interesses 28 .

Bastante mais sóbria, contudo, é a visão que fornecem Ana Cristina Nogueira da Silva e António Manuel Hespanha no balan­ço que fazem da identidade portuguesa na época da Restauração 29 . Segundo os autores, predominaria então "um imaginário social e político que realçava a multiplicidade e autonomia das distintas for-mas de solidariedade social e que distinguia cuidadosamente os cor­respondentes sentimentos de identidade": no topo, uma identidade da republica christiana ; depois, "ainda acima da identidade nacional ou reinícola", existia a identidade "europeia" e, "muito mais forte", a "identidade hispânica".

Por outro lado, "se por cima a identidade portuguesa tinha de conviver e que se cruzar com outras instâncias 'superiores' de classi­ficação, o mesmo acontecia por baixo", com "as identidades parti­culares" dos "parentes, patrícios e pares"; finalmente, "para além de uma identidade 'local' e 'regional' mais ou menos vincada, os Por­tugueses acumulavam depois, como é natural numa sociedade de estados, uma fortíssima identidade estatutária" 30 .

Quanto à "identidade reinícola", funcionava também - se­gundo os autores - "o sentimento de uma identidade política", cuja "manifestação mais directa e precoce é constituída, negativamente, pelo anti-castelhanismo", sendo citado para o efeito Duarte Gomes de Solís em 1621 31 , mas já vimos que esta "identidade anti-castelha-na" recuava, pelo menos, à crise sucessória de 1580. Já no séc. XVIII, com o advento do universalismo iluminista, ao mesmo tempo que tende a desnaturalizar-se, o problema da identidade portuguesa des-dobra-se, por assim dizer, sob o efeito do choque entre castiços e estrangeirados 32 .

Enquanto os primeiros crêem numa identidade tradicional legítima e pugnam por um "constante esforço de repristinação de uma identidade primeva" 33 , os segundos prolongam "uma linha de refle­xão de origem humanista sobre os vícios dos Portugueses", cujo "re­sultado é uma consciência da identidade marcada pelo desencanto",

o qual está, por seu turno, "na origem do decadentismo que caracte­riza as correntes dominantes da cultura portuguesa durante os sécu­los XIX e XX" 34 . Em suma, um conflito identitário-por assim dizer, insuperável - que começou por ser protagonizado por castiços e estrangeirados no século XVIII e que ainda hoje tem ecos poderosos na sociedade portuguesa, com as respectivas bases regionais de apoio social e político, conforme referido anteriormente.

 

O carácter nacional português

 

Seja como for, não será certamente a busca de qualquer "es­sência nacional portuguesa" - prosseguida sem descanso desde o advento do nacionalismo romântico até ao seu "congelamento" pe­los ideólogos do Estado Novo, culminando nos duvidosos "caracteres nacionais" do etnólogo Jorge Dias - que nos ajudará muito a supe­rar a controvérsia. Com efeito, não há nada que exponha mais a ideo­logia identitária a uma crítica devastadora do que as tentativas de a ancorar num pretenso "carácter nacional", com o seu drástico redu­cionismo e a sua paralela dimensão normativa: "Um misto de sonha­dor e de homem de acção [...] o Português é, sobretudo, profunda-mente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco" 35 .

Previsivelmente, Jorge Dias, depois de reconhecer que "a ori­gem da Nação se dev(e) também à política", sente a necessidade de acrescentar imediatamente que "a vontade do príncipe naturalmen­te se aproveitou de certas aspirações de independência latentes nas populações de Entre Douro e Minho" (grifo meu), para sustentar a seguir que a "curiosa particularidade (da) unificação e permanência da Nação portuguesa deve-se ao mar", conciliando assim todas as teses disponíveis - tanto as empíricas como as fundacionais - sobre a formação do "estado-nação": "A força atractiva do Atlântico [...] foi a alma da Nação e foi com ele que se escreveu a História de Portugal" 36 .

Desta síntese demasiado ecléctica, que não dispensa a habitu­al alusão aos lusitanos nem à "luta contra os mouros", brotará então uma ideia de "cultura portuguesa", cujo maior interesse reside nas especificações que Jorge Dias tem o cuidado de fazer a respeito das "culturas regionais" e, sobretudo, a respeito da dimensão restrita, para não dizer elitista, dessa cultura espartilhada entre o "local" e o "su-perior" 37 .

Quanto ao "carácter nacional" propriamente dito, o autor socorre-se de todos os estereótipos do repertório nacionalista, desde a "saudade" até ao "manuelino", passando pela "brandura de costu­mes" e pela "inclinação por mulheres de outras raças", para termi­nar com uma conclusão banal e datada, mas nem por isso menos significativa na sua vácua circularidade: "É um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento". 38

Apesar desta insustentável vacuidade, João Leal mostrou re­centemente que "a força do ensaio de Jorge Dias parece ser tal que a denúncia das suas teses" não impede autores actuais, como Boaven­tura Sousa Santos, sempre que entram em diálogo com ele, em bus-ca de uma fundação caracterial qualquer da identidade portuguesa, não só de incorrerem numa "proximidade genérica difícil de desmen­tir" como de deixarem "o leitor atento perplexo".

O mesmo havia dito, aliás, a respeito de José Mattoso, a pro­pósito da sua Identidade nacional , o que permite a João Leal concluir com uma ponta de ironia: "Volvido quase meio século, os 'elemen­tos fundamentais da cultura portuguesa' (retomados n' O carácter nacional ...) continuam a projectar a sua sombra nas discussões con­temporâneas acerca do que é ser português." E algo de semelhante se passa também, segundo João Leal, com Eduardo Lourenço e o tema da saudade . E por aí fora... até aos Madredeus 39 !

 

Conteúdo e relevância do sentimento nacional

 

Pela minha parte, a vacuidade intrínseca de todo e qualquer conteúdo que se pretenda atribuir ao chamado "carácter nacional" leva-me, pois, a abandonar este longo intróito em torno da genealogia da identidade portuguesa para adoptar, doravante, um ponto de vista regressivo - isto é, de diante para trás - a fim de examinar essa mesma identidade a partir do ângulo sincrónico da sociologia em­pírica. Debruçar-me-ei assim sobre algo que me preocupa mais do que as origens do sentimento nacional, a saber, qual o conteúdo des-te último e, sobretudo, qual a sua relevância para o conhecimento e compreensão da sociedade portuguesa actual.

Ora, do ponto de vista do conteúdo, confesso não ver em que medida a identidade portuguesa de distingue da impenetrável mas banal circularidade dessa inevitável tautologia que é todo e qualquer nacionalismo - igual a todos os outros na reivindicação de uma diferença radical entre cada um deles, como creio que Gellner mos­trou de uma vez por todas. Movendo-se embora no espaço e com a escala em que observador e observado se situem - por exemplo, no Brasil serei português; em Portugal açoriano; nos Açores micaelense; em S. Miguel serei de Ponta Delgada, e assim sucessivamente 40 -, a verdade é que o conteúdo identitário não deixa de ser ontologica­mente pobre, apetece mesmo dizer ensimesmado.

Isso não significa, como sabemos, que tal conteúdo não pos-sa, apesar da sua pobreza ontológica, tornar-se criticamente relevante quando o imaginário nacional é activado do exterior e, em especial, contra o exterior, mas pontualmente também contra o "interior" 41 ,

o que aponta para um conteúdo fatalmente não-autónomo, para não dizer negativo, da chamada identidade nacional. Antes, porém, de tentar circunscrever a relevância do sentimento identitário, vale a pena fornecer um dado empírico actual e reflectir por um momento acerca dele.

Com efeito, todos os inquéritos sociológicos recentes em que é feita uma pergunta - obviamente redutora e descontextualizada

- acerca do espaço social com o qual os portugueses mais se iden­tificam têm revelado, estranhamente ou não, um grau limitado de identificação com o espaço nacional. Embora estejam em maioria relativa, os inquiridos que se identificam prioritariamente com Por­tugal - sobretudo habitantes de Lisboa e populações do Sul - não chegam, em geral, à metade da população; os outros inquiridos dis-tribuem-se sobretudo pelas suas "terras" - aldeias, vilas ou peque­nas cidades - ou pelas suas regiões, sobretudo no Norte em volta do Porto; por fim, há um resíduo de excêntricos, no duplo sentido da palavra, que dizem identificar-se prioritariamente com o espaço europeu ou mesmo universal 42 .

Por outras palavras, quando a identidade nacional não é acti­vada do exterior e o sentimento de pertença é referido à experiência quotidiana das pessoas, o que vem ao de cima é uma clivagem - pronunciadamente classista, aliás, sendo a distribuição a prevista pelos manuais de sociologia, segundo os quais a identidade nacional é uma propriedade das elites - entre múltiplos localismos e a identifica­ção espontânea com a Nação.

Só marginalmente poderei entrar aqui na questão da cidada­nia, mas bastará dizer que é significativa, do ponto de vista estatísti­co, a correlação inversa entre a força dos sentimentos de pertença local e um défice, por vezes acentuado, do exercício dos direitos da cida­dania democrática. Por outras palavras: quanto menor a identifica­ção com o espaço nacional, menor também a propensão para o exer­cício da cidadania 43 .

Em suma, por paradoxal que tal possa parecer num país tão antigo como Portugal, com uma coincidência alegadamente perfei­ta entre Estado e Nação, a verdade é que o processo de nacionaliza­ção das populações - talvez devido aos profundos curto-circuitos da cidadania, dependentes por seu turno dos atrasos da literacia de massas e do distanciamento entre estes e o poder político-está longe de estar completado em Portugal. Por motivos históricos mal conhe­cidos e que não é possível aprofundar agora, o velho Estado portu­guês tem ainda muito que fazer no plano da "nacionalização das massas", lembrando às vezes a situação da França antes da Guerra de 1914-1918 identificada por Eugen Weber 44 .

Com efeito, estudos clássicos, como o de Reinhart Bendix, há muito que assinalaram o papel da instrução pública básica na cons­trução da cidadania 45 , bem como o contributo específico do sufrá­gio universal e secreto, que Portugal apenas conheceu há um quarto de século, para a transformação dos indivíduos em "cidadãos nacio­nais". Bendix chama a atenção, efectivamente, para a estreita associa­ção histórica entre a formação das identidades sociais de carácter nacional - isto é, a concepção da cidadania como nacionalidade - e o desenvolvimento de uma identidade política, ou seja, da cidada­nia como pertença activa a uma comunidade política nacional.

Nesse sentido, tem cabimento pensar que, para se poder falar plenamente de "Estado-Nação", isso implicaria a vivência nacional de uma "fusão entre autoridade e solidariedade" 46 , segundo a qual o sentimento de pertença deixaria de ser passivo perante a autoridade do Estado para ser, também, activo e solidário, graças à participação cívica e aos benefícios partilhados pelos cidadãos nacionais. A ser assim, seria lícito argumentar que a plena assunção da "identidade nacional", por parte de numerosos estratos da população portugue­sa, é bem mais recente, muito provavelmente, do que se poderiajulgar à primeira vista 47 .

 

O papel do nacionalismo político em Portugal

 

Para terminar, algumas breves reflexões sobre a efectiva rele­vância histórica da chamada identidade nacional, não só no plano da política interna e externa, como também no plano dos interesses materiais de alguns grupos sociais e, seguramente, no plano das iden­tidades pessoais.

Latente, senão mesmo adormecido durante a maior parte do tempo, o sentimento nacional constitui, pois, um recurso ao dispor dos membros da comunidade, tanto para efeitos pessoais, como a manutenção da identidade individual perante a emigração ou o exílio, por exemplo, experiências em que os portugueses são historicamente peritos; mas também para efeitos colectivos, como por exemplo o estabelecimento de redes grupais susceptíveis de trazerem benefícios económicos, embora a população portuguesa ainda hoje se carac­terize, sociologicamente, pelo primado das redes familiares e/ou clientelares (e só nesta medida "portuguesas"), na linha daquilo que alguns, como eu próprio, têm designado como o "familismo amoral" 48 .

Mais gratuitas - puramente simbólicas, se tal coisa existe - são, por exemplo, as comoções identitárias colectivas induzidas, como Hobsbawm mostrou para o período da integração política das "mas­sas" nos sistemas demoliberais oitocentistas, pelos rituais celebratórios da pátria comum e, porventura mais inocentes ainda, os confrontos desportivos internacionais. Nada disso é, já de si, politicamente inó­cuo, como os promotores de tais eventos bem sabem e, hoje em dia, planeiam cuidadosamente, como quem reforça um reflexo compor­tamental.

Finalmente, mais relevante do que todas as referidas manifes­tações da identidade nacional, desde o último quartel do século XIX (e sem dúvida antes, mas apenas de forma incipiente e intermiten­te), que o sentimento nacional tem sido objecto de activação política recorrente, seja pela oligarquia dominante contra alegados perigos externos ou, simplesmente, como factor de mobilização nacional perante desafios como, por exemplo, aquele a que Portugal vem res­pondendo perante a integração europeia; seja ainda por uma fracção das elites contra as outras fracções, como sucedeu com o movimen­to nacionalista autoritário que levou à tomada do poder por Salazar, entre 1928 e 1930, e à institucionalização da ditadura do Estado Novo até à Guerra Colonial e, por fim, à prolongada agonia do re­gime consumada em 1974.

Ao longo de todo esse penoso e conturbado percurso, a mobilização do sentimento de identidade nacional constituiu, sem a menor dúvida, uma das variáveis mais independentes da evolução política do país, apenas se lhe podendo comparar o papel das subi­dentidades das diversas camadas sociais que foram disputando à di­tadura o monopólio do "interesse da Nação".

Assim se demonstra como algo de conteúdo afinal tão imagi­nário e tão pobre pode, de facto, produzir efeitos tão reais e tão re­levantes para uma comunidade, cujas diferenças são tanto mais críticas quanto têm de ser obrigatoriamente dirimidas no mesmo ter­ritório com o qual toda essa comunidade se identifica. Daqui é líci­to concluir que, sendo indiscutível a relevância de algo tão inefável como a identidade nacional, esta última é no entanto menos parte da solução, como promete a ideologia nacionalista, do que parte dos problemas que a Nação - na realidade, a Sociedade e o Estado - tem para resolver.

 

Notas de Rodapé

 

1 Sobre esse sistema de clivagens, ver o estudo clássico de S. M. Lipset & S. Rokkan (1967), "Estruturas de clivagem, sistemas partidários e alinhamentos dos eleitores", in S. M. Lipset, Consenso e conflito , Lisboa, Gradiva, 1992.

2 Pós-modernistas no sentido abrangente que lhes é conferido pela sua aspiração comum ao retorno à subjectividade contra os processos de objectivação caracte­rísticos das ciências sociais modernistas, conforme sugere Hervé Le Bras, "Les sciences sociales entre biologie et politique", La Recherche , n. 336, nov. 2000, p. 48-54.

3 Nations and nationalism , Oxford, Blackwell, 1983; tradução portuguesa: Lis­boa, Gradiva, 1993.

4 A. D. Smith, The ethnic origins of nations, Oxford, Blackwell, 1986, cf. também a colectânea de J. Hutchinson & A. D. Smith (ed.), Nationalism , Oxford University Press, 1994.

5 Paul R. Brass, "Elite competition and Nation formation", in Hutchinson & Smith, op. cit., que reconhece "haver alguns aspectos da formulação primordia­lista com os quais não é difícil concordar" (p. 83), ao mesmo tempo que insiste em que "o estudo da etnicidade e nacionalidade é, em larga medida, o estudo de mudanças culturais politicamente induzidas. Mais precisamente, é o estudo do processo através do qual as elites e contra-elites internas aos grupos étnicos seleccionam determinados aspectos da cultura do grupo, atribuindo-lhes novo valor e significado, e usando-os como símbolos para mobilizar o grupo, defen­der os seus interesses e competir com outros grupos" (p. 87).

6 Josep R. Llobera, El dios de la modernidad: el desarrollo del nacionalismo en Europa occidental (1994), Barcelona, Anagrama, 1996.

7 Josep R. Llobera, op. cit, p. 13.

8 Id., ibid., p. 11.

9 Id., ibid., p. 289-90.

10 Id., ibid., p. 111-2. Estranhamente, Llobera não utiliza uma única referência portuguesa clássica acerca da formação do Estado e da Nação portugueses, nem muito menos qualquer referência actualizada, como seria o caso de José Mattoso e António Hespanha!

11 B. Anderson, Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism, London/New York, Verso, 1993; prefiro a minha tradução à de "comunidades imaginadas", como é vulgar traduzir a expressão de Anderson.

12 E. J. Hobsbawm et al., The invention of tradition , Cambridge, Cambridge University Press, 1985.

13 Ver por exemplo, Rita Marquilhas, A faculdade das letras , Lisboa, Imprensa Nacional, 2000.

14 Este meio-caminho entre as concepções instrumental e primordial da identida­ de nacional é também retomado por autores associados aos chamados estudos pós-coloniais, como Homi Bhabha, na sua introdução ao volume colectivo Nation and narration (London, Routledge, 1990).

15 Nomeadamente no seu recente livro sobre A identidade nacional , Lisboa, Gradiva/ Fundação Mário Soares, 1998: "O que cria e sustenta a identidade portuguesa é, de facto, o Estado" (p. 82-3).

16 J. Mattoso, Portugal medieval : novas interpretações, 2.ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1992, mas igualmente na sua influente Identificação de um país : ensaio sobre as origens de Portugal, 1095-1325, Lisboa, Estampa, 1991, 2 vols.

17 A. Silbert, Le Portugal méditerranéen à la fin de l'ancien régime XVIIIe - début du XIXe siècle : contribution à l'histoire agraire comparée, Paris, SEVPEN, 1966.

18 Como é bem sabido, do ponto de vista etnológico, nomeadamente da cultura material, esses "espaços" seriam três e não dois, de acordo com os estudos de Orlando Ribeiro ( Portugal: o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas, 7. ed. rev. e ampliada, Lisboa, Sá da Costa, 1998) e Jorge Dias (por exemplo, Os arados portugueses e as suas prováveis origens (1948), Lisboa, Im­prensa Nacional- Casa da Moeda, 1982). Porém, do ponto de vista sociocultural e, em particular, do ponto de vista político, são as "tensões entre um Norte tradicionalista e conservador e um Sul progressista e inovador" que sobressaem (J. Mattoso, A identidade nacional , p. 79-81, maxime p. 80; ver tb. Mattoso, Identificação de um país , vol. 2., p. 215 ff.).

19 J. Cortesão, "Os factores democráticos na formação de Portugal" (1930), in: L. Montalvor, História do regime republicano , Lisboa, vol. I, p. 11-96; reeditado como volume I das Obras completas (Lisboa, Livros Horizonte, 1974), cf. nomea­damente p. 93: "A actividade marítima está não só nas raízes da nacionalidade, donde sobe como a seiva para o tronco, mas é como a linha medular que dá vigor e unidade a toda a sua história".

20 J. Mattoso, Identificação de um país , vol. II, em especial p. 187-90. 21 Ver por todos, Orlando Ribeiro, A formação de Portugal, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987. 22 N. Luhmann, Social Systems (1984), Stanford University Press, 1994, em espe­cial o capítulo "Double contingency", p. 103-36 .

23 Cf. a este propósito M. V. Cabral, "The aesthetics of nationalism: literary modernism and political authoritarianism in Portugal in the early 20th century", Luso-Brazilian Review , University of Wisconsin-Madison, 1988; publicado em português em N. S. Teixeira & A. C. Pinto (org.), A primeira república portugue­sa entre o liberalismo e o autoritarismo , Lisboa, Colibri, 1998, p. 181-211.

24 José Eduardo Franco, A ideia de Portugal em Fernando Oliveira : posicionamen­tos em torno da crise sucessória de 1580, Dissertação de mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999. Para uma análise pormenorizada dos "exercícios de etnogenealogia" a que se dedicou, empenhadamente, a etnografia portuguesa desde finais do séc. XIX, ver João Leal, Etnografias portu­guesas (1870-1970) : cultura popular e identidade nacional, Lisboa, Dom Quixote, 2000, em especial no seu capítulo 2.

25 Carta de Felipe II de 1579 citada por J. E. Franco, op. cit., vol. 1, p. 300 ff.

26 Segundo Fernando Oliveira, na sua História de Portugal , d. Afonso Henriques não teria assumido o trono português em virtude de uma "herança obrigatória", enquanto filho primogénito de d. Henrique, "senão por eleição do povo livre", isto é, pelos portugueses que, "vendo o muito detrimento que padeciam em companhia dos Castelhanos, determinaram apartar-se deles". (J. E. Franco, op. cit., vol 1., p. 311.)

27 Id., ibid., p. 375.

28 J. E. Franco parece, pois, ter alguns bons motivos para escrever: "Se, como refere Eduardo Lourenço, 'a auto-consciência nacional surge em João de Barros e é elevada à sua potência última por Camões' ( Labirinto da saudade ), "não será demasiado afirmarmos que ela transborda em Fernando Oliveira [...] que anun­cia uma 'ideia' religiosamente devota da nação portuguesa." (Op. cit., p. 355.)

29 A. C. Nogueira da Silva & A. M. Hespanha, "A identidade portuguesa", in A. M. Hespanha (coord.), O antigo regime , vol. IV da História de Portugal , dirigida por José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 19-37. "Tudo isto faz com que os discursos seiscentistas sobre a identidade portuguesa apenas indiciem imaginários sectoriais, não permitindo globalizações válidas para toda a socie­dade, nomeadamente a de um difuso sentimento patriótico, que explicaria, por exemplo, a Restauração" (p. 19).

30 Id., ibid., p. 20-9.

31 Id., ibid., p. 29.

32 É bom não esquecer, contudo, que, segundo Nogueira da Silva e Hespanha, "pelo menos até finais do séc. XVIII, a esmagadora maioria dos Portugueses não conhec(ia) uma representação gráfica do território do Reino". (Id., ibid., p. 20.)

33 Id., ibid., p. 19.

34 Id., ibid., p. 32-3. A este respeito da evolução da "ideologia portuguesa" do "decadentismo" à "salvação nacional", ver M. V. Cabral, The demise of liberalism and the rise of authoritarianism in Portugal, 1880-1930 , An Inaugural Lecture, Department of Portuguese, King's College London, 1993.

35 J. Dias, Estudos do carácter nacional português , Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1971, p. 19.

36 Id., ibid., p. 12-5.

37 Id., ibid., p. 12-7.

38 Id., ibid., p. 33.

39 J. Leal, op. cit., p. 101-4, referindo-se em particular ao ensaio de B. Sousa Santos, "Onze teses...", incluído em Pela mão de Alice (1994).

40 Esta espécie de replicação, por assim dizer mimética, do sentimento identitário segundo a escala em que os indivíduos se situam está documentada para os Açores, por exemplo, em estudos empíricos com diversas sedes disciplinares. (J. Leal, op. cit., parte III, "Nação e região: réplicas, apropriações, resistências", p. 227-244; J. M. Mendes, Do ressentimento ao reconhecimento : valores, identida­des e processos políticos nos Açores (1964-1996), Tese de doutoramento, Fa­culdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1999.)

41 Seria importante explorar aqui a distinção, a meu ver muito pertinente para esta reflexão, que os maurrassianos e os integralistas faziam entre o patriotismo - isto é, a activação de toda a população do país contra um inimigo externo - e o nacionalismo propriamente dito - isto é, a activação de uma parte da popu­lação contra os alegados inimigos internos da Nação, esse ennemi de l'intérieur geralmente constituído por liberais, democratas, socialistas, comunistas e ou­tros anarquistas! Já abordei esta questão em The demise of liberalism ..., op. cit.

42 No último destes inquéritos, realizado em 1997 junto de uma amostra repre­sentativa da população jovem portuguesa (15-29 anos de idade), os resultados foram os seguintes (cf. Ana Alexandre Fernandes, "Identidade nacional e cida­dania europeia", in M. V. Cabral & J. M. Pais (org.), Jovens portugueses de hoje , Oeiras, Celta, 1998, p. 311, Quadro #1).

Lugar

16,6 %

Região

29,1 %

Portugal

41,6 %

Europa

4,7 %

Mundo

4,4 %

NS/NR

2,7 %

 

43 M. V. Cabral, Cidadania política e equidade social , Oeiras, Celta, 1997; ver tb. M. V. Cabral, "O exercício da cidadania política em Portugal", in: M. V. Cabral, J. Vala e J. Freire (org.), Trabalho e cidadania , Atitudes Sociais dos Portugueses #1, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2000.

44 E. Weber, From peasants into frenchmen : the modernization of rural France, 1870-1914, Stanford University Press, 1976.

45 R. Bendix, Construção nacional e cidadania (1964), S. Paulo, EDUSP, 1996, p. 134 segs. Ora, se formos exigentes, de acordo por exemplo com as sugestões de Goody em relação à "alfabetização restrita" (J. Goody, The interface between the written and the oral , Cambridge, Cambridge University Press, 1987), a socieda­de portuguesa só teria atingido o limiar da alfabetização de massas - digamos, mais de 50% da população adulta - depois da Segunda Guerra Mundial. Da-qui, seguramente, muitos dos défices de literacia funcional que ainda hoje se observam (cf. Ana Benavente et al., A literacia em Portugal : resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Ins-tituto de Ciências Sociais, 1996).

46 Elisa P. Reis, "Introdução", in R. Bendix, op. cit., p. 21.

47 Se à solidariedade quisermos acrescentar, como elemento da "cidadania", con-forme sugerido anteriormente, a participação na cultura nacional através da instrução de massas, vale a pena recordar o que escrevia o insuspeito Jorge Dias a este respeito ainda em 1971: "Se existe uma cultura (portuguesa) com longa tradição, também é certo que são poucos os que nela participam, pois, por ra­zões de educação e instrução, a maior parte da população recebe sobretudo a cultura tradicional da sua região." (J. Dias, Estudos do carácter nacional ..., op. cit., p. 13.)

48 Ver o meu texto a publicar no volume das Actas do Congresso Brasil-Portugal 2000 - Sessão de Sociologia e Antropologia, Editora da Universidade de Brasília, onde retomo e procuro reconstruir a noção original de "familismo amoral", cunhada pelo politólogo norte-americano Edward Banfield para caracterizar as atitudes e comportamentos de uma comunidade rural da Itália meridional ( The moral basis of a backward society , Glencoe, Ill., The Free Press, 1958); para o Brasil, ver Elisa Pereira Reis, Processos e escolhas. Estudos de sociologia política, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998. Algumas observações etnográficas pontuais de Jorge Dias a propósito do pretenso "carácter português" são, aliás, integráveis nesta noção do "familismo amoral", como por exemplo a "crença na sorte" e no "empenho ou pedido", bem como "a dificuldade (do funcionário) em represen­tar um papel impessoal"; até a pretensa "negação do espírito capitalista" que Jorge Dias atribui à cultura portuguesa é enquadrável nos termos do dito "familismo amoral" (J. Dias, Estudos do carácter ..., op. cit., p. 30-1). Em contrapartida, tais atitudes e comportamentos sociais não são mais "portugue­ses" do que "italianos" nem são, obviamente, comuns ao conjunto das respecti­vas populações nacionais.