Sumário

Política e cultura nas relações luso-castelhanas no século XV

Luis Adão da Fonseca
Universidade do Porto

1.

É objectivo deste trabalho sublinhar em que medida as relações políticas desenvolvidas pelo poder monárquico português com o reino vizinho de Castela, ao longo do século XV, têm uma vertente cultural. Ou seja, trata-se de averiguar quais são as componentes ideológicas do fenómeno, tantas vezes referido (trata-se quase de um lugar-comum), das origens quatrocentistas do chamado bilinguismo (e reporto-me, ao utilizar esta expressão, ao título do artigo do Dicio­nário das literaturas portuguesa, galega e brasileira dirigido por Jacinto do Prado Coelho 1 ).

O problema, no fundo, radica da necessidade que a monar­quia portuguesa tem de legitimar a nova dinastia de Avis, no con­texto das enormes transformações que o equilíbrio europeu sofre na transição do século XIV para o XV. Essas transformações, como é sabido, acompanham, no quadro da chamada Guerra dos 100 Anos, a passagem do ciclo da Guerra de Crécy (típico da segunda metade de Trezentos) para o ciclo da Guerra de Azincourt (característico do primeiro quartel de Quatrocentos). Em termos continentais, essa passagem traduz-se na secundarização das problemáticas económica, política e diplomática relacionadas com as comunicações com o norte de Europa (em que o canal da Mancha constitui o principal ponto de articulação), dando lugar à importância das comunicações do Atlân­tico com o Mediterrâneo, e consequentemente à primazia das pro­blemáticas económica, política e diplomática relacionadas com a articulação de interesses à volta do estreito de Gibraltar 2 .

Quer isso dizer que, mercê das referidas transformações, a península Ibérica surge, grosso modo , no decorrer do primeiro quartel do século XV, como horizonte previlegiado do confronto político europeu, com implicações directas no posicionamento português. Com efeito, se o relacionamento ibérico de Portugal - mercê das exigências da geografia - sempre fora um problema fundamental da própria existência do reino, agora, quando esse palco se apresenta como espaço de confronto continental, tal relacionamento apresenta­se como exigência decisiva, quase dramática, da estratégia nacional .

Sem querer entrar agora na análise circunstanciada do que esta mutação implica em termos diplomáticos, direi apenas que o reino lusitano entra no século XV (em rigor, a mutação só começará a ter lugar, em termos europeus, a partir de meados da primeira metade do século) com uma posição diplomática e política de certo modo debilitada. Diplomaticamente, estamos inseridos numa aliança (a pró-britânica), plasmada em 1386 no Tratado de Windsor, que, na altura em que foi assinado, encontrava algumajustificação no contex­to do momento, mas que, à medida que avança o século (primeiro, com a deslocação dos interesses europeus para sul e, posteriormen­te, já na segunda metade do século, com a implosão inglesa decor-rente da Guerra das Duas Rosas [1450-1485]), se torna cada vez mais marginal.

Por outro lado, politicamente, a situação não é melhor. Ape-sar de, em 1385-1386, a nova dinastia de Avis ter conseguido obter vitórias decisivas, nos campos político, militar e diplomático, tais acontecimentos não tinham conferido à família real portuguesa, ilegí­tima na origem, a legitimidade de que, de facto, continuava a care­cer. Entretanto, esse problema, que começara por ter uma dimensão interna, mercê das transformações atrás referidas, transformara-se numa significativa limitação que afectava a afirmação externa do reino. Quando pensamos, por exemplo, nas alterações surgidas na península na sequência do Compromisso de Caspe [1412] (insus­peitadas num primeiro momento, mas reveladoras de uma dinâmi­ca política que o futuro revelará ter sido decisiva, dinâmica já há muito identificada pela bibliografia 3 ), ou no significado das pazes assinadas com Castela em 1431 4 , percebemos, com efeito, a dimen­são dessa limitação.

Em resumo, direi que, mercê dessa nova conjuntura, a posi­ção diplomática e política de Portugal se debilita na medida em que a monarquia lusitana carece de um corpo ideológico suficientemen­te forte que a projecte, não só internamente, mas sobretudo na pe­nínsula. Como já escrevi em trabalho anterior, o problema não é, portanto, uma questão que se possa resolver unicamente por meio da contabilização do poder de facto (para o qual terá contribuído, em parte, para além das vitórias de finais do séc. XIV, a conquista de Ceuta), visto tratar-se de uma questão que necessita do apoio de uma construção teórica , que - como disse - legitime e projecte a dinastia.

 

2.

A ponderação da sucessão dos momentos mais significativos da estratégia desenvolvida pela monarquia portuguesa não pode ser mais clarificadora. Apresenta, a meu ver, três grandes marcos.

O primeiro marco corresponde aos anos 33-34 da centúria. Desencadeia-se em 1433, com a morte de d. João I, quando o seu sucessor (d. Duarte), julgo que perfeitamente consciente da acelara­ção da conjuntura diplomática decorrente da assinatura do tratado de paz com Castela dois anos antes (1431), coloca o problema em parâmetros que, em linhas gerais, perdurarão até final do século. Com efeito, nesse momento concreto, poderá parecer uma formulação retórica e política aparentemente circunstancial, mas a evolução posterior mostrará que é muito mais do que isso. O caso é bem co­nhecido; foi estudado em termos extremamente agudos por Armindo de Sousa 5 . O rei de Boa Memória morre no dia 13 de agosto, mas toda a tradição imediatamente posterior declara que o falecimento tem lugar no dia seguinte. Sabe-se hoje que a alteração do dia é re­sultado da vontade expressa de d. Duarte. O propósito é claro: mos­trar, com evidente sentido messiânico, que existem coincidências de datas, indiciadoras do carácter exemplar da figura do soberano fale­cido. Com efeito, é óbvio o propósito de associar a batalha de Aljubarrota ao falecimento do rei, apontando ambos os eventos para as vésperas da festa da Assunção da Virgem. Ou seja, procura-se in­dicar que o rei foi um predestinado. Aliás, essa mesma ideia aparece nas crónicas de Fernão Lopes e, posteriormente, de Rui de Pina 6 .

Em poucas palavras, o que d. Duarte define é uma política de construção ideológica de um modelo familiar, em que, partindo da bastardia do fundador da dinastia, aponta para o perfil de unidade dinástica que constituirá, assim, a imagem de marca da familia de Avis. Por isso, não é por acaso que, no ambiente da corte, se desen­volva toda uma mitologia à volta da unidade entre pais e filhos. Formulada pela primeira vez nas instruções que d. Duarte redige para o sermão a fazer nas exéquias do pai, retomado no capítulo 98 do Leal conselheiro (intitulado "Da prática que tínhamos com el Rei, meu senhor e Pai, cuja alma Deus aja"), vai ser pouco tempo depois in­corporada por Fernão Lopes na sua Crónica de d. João I . Assim, esta unidade familiar confere à morte santa do fundador da dinastia um carácter fundacional : se atrás de d. João I se encontra a sua família, se a sua memória é também memória da dinastia, o rei santo santi­fica a dinastia, e o rei exemplar exemplariza a dinastia, isto é, a mor-te do rei transforma-se em ponto de referência da morte de todos os membros da família real. A esse respeito, a inscrição que se pode ler na legenda da moldura do retrato desse rei que se encontra no Mu­seu de Arte Antiga é altamente significativa. O monarca é represen­tado em atitude de oração, com as mãos postas, numa postura pou­co natural. A legenda reza: Haec est vera dignae ac venerabilis memorie Domini Ioannis defuncti quond[am] Portugaliae nobilissimi et ilustrissimi regis ymago quippe qui du viveret de juberot victoria potitus est potentissima 7 .

Recorde-se, finalmente, que no ano seguinte, em 1434, o mesmo rei d. Duarte toma a decisão de nomear Fernão Lopes cronista do reino. Os termos em que a nomeação é feita marcam, com efeito, uma direcção que reforça a doutrina esboçada no ano anterior, quando da morte do pai. Com efeito, na carta de nomeação de março de 1434, escreve o monarca que Fernão Lopes deve "poer em caronica as estorias dos reis que antigamente em Portugal forom. Esso mesmo os grandes feitos e altos do mui vertuoso e de grandes vertudes El Rei, meu senhor padre, cuja alma Deus aja" 8 . É a primeira vez que a monarquia assume, de forma tão explícita, a elaboração de uma história geral do reino como programa oficial, objectivo que, por sua vez, deve ser relacionado com o paralelo programa de idealização da dinastia para o qual chamei a atenção. Se se tiver em conta que, nessa mesma conjuntura, tem lugar a trasladação dos restos morais de d. João I e de sua mulher d. Filipa, para a Capela do Fundador 9 , na Batalha, não pode ser mais sintomático todo este conjunto de exemplos.

O segundo marco corresponde aos anos 50-60 da centúria, mais concretamente à década entre cerca de 1455 e cerca de 1465. É desenvolvido durante o período áureo do reinado de d. Afonso V, quando a monarquia portuguesa, na sequência do grave conflito que desembocou em Alfarrobeira (1449), orienta a sua política externa num claro sentido pró-castelhano que a conduzirá a uma interven­ção peninsular de todos bem conhecida 10 . Nesses anos em que os demais reinos ibéricos vivem momentos de graves conflitos internos caracterizados pela forte debilitação da imagem da realeza (crise castelhana com Henrique IV, dificuldades crescentes na coroa de Aragão com João II), o poder lusitano assume uma clara estratégia de afirmação política no quadro europeu meridional, em que a en­trada no Mediterrâneo se transforma em referência geográfica fulcral. Essa estratégia tem uma forte componente económica, e implica, como é sabido, uma correspondente aproximação diplomática a Castela, que não vou explicitar aqui 11 . Direi apenas que é acompa­nhada por um não menor investimento propagandístico, orientado, sobretudo, no sentido de exaltar a exemplaridade da família real portuguesa, argumento ideológico compreensível (e eficaz) naquelas circunstâncias em que a imagem da dinastia trastâmara castelhana e aragonesesa se encontrava bastante fragilizada.

Nesse sentido, a herança do modelo familiar elaborado por d. Duarte nos anos 30 é ampliada pelo fortalecimento da dimensão exemplar dos falecimentos régios. Nessa ordem de ideias, compre-ende-se a simbólica oficial das mortes que se seguem a d. João I (d. Duarte, d. Afonso V e d. João II, para além de vários membros da família real, a começar pelo Infante Santo 12 ).

Neste conjunto, não posso deixar de referir a importância de um texto, fundamental nesse processo. Trata-se de um escrito, redi­gido em castelhano por Afonso de Córdova, entre meados de 1462 e 1463, por encomenda do próprio condestável d. Pedro, e intitulado Comemoración breve de los muy insignes y virtuosos varone que fueron desde el magnifico rey don Juan I hasta el muy esclarecido rey don Al­fonso quinto . Retrato estereotipado da família real portuguesa, expres­sa uma vontade elegíaca, não de personagens isolados, mas do con-junto da família. Como o seu autor declara, o propósito é enaltecer el linaje portugues . Em termos de modelo, representa a conformação de um arquétipo, segundo o qual há uma geração de descendentes de d. João I que formam uma exemplaridade moral pelos valores que encarnam, que virá, com os tempos, a revestir-se de grande impor­tância na memoria colectiva portuguesa. É a "Ínclita Geração". Mas, para além disso, situando o texto em causa no contexto dos parâme­tros em que se desenvolve a política ibérica portuguesa desse momen­to (estamos na vésperas do lançamento da grande operação que con­duzirá o condestável d. Pedro - o próprio autor da encomenda da Comemoración breve - a encabeçar a revolta catalã contra João II de Aragão), e colocando-o na sequência da exemplarização da mor-te à qual há pouco fiz referência, podemos, assim, desenhar os três contornos definitórios do modelo ideológico em que a assenta o que se pode chamar a imagem da monarquia portuguesa tal como ela é elaborada pelo poder régio lusitano no decorrer da segunda metade do século XV: função legitimadora, carácter exemplar, intencionali­dade ibérica 13 .

O terceiro marco situa-se já na transição da Idade Média para os tempos modernos, correspondendo aos primeiros anos do reina­do de d. Manuel. Este monarca, acedendo ao trono em circunstân­cias difíceis bem conhecidas, embora por razões diferentes das que inspiraram d. Afonso V, seu tio, e d. João II, seu primo e cunhado, acaba por ter de assumir, no relacionamento com Castela, uma po­lítica de continuidade em relação aos monarcas anteriores. São mui­tos os exemplos onde essa intencionalidade ibérica está presente. Porque em outro estudo tive oportunidade de os explicar a propósi­to das implicações do Tratado de Tordesilhas (1494) e da chegada dos portugueses à India, em 1497-1502 14 , apenas direi - para me limitar a referir textos literários - que, nesta ordem de ideias, ad-quire um novo sentido todo um conjunto de escritos redigidos à volta do Príncipe Perfeito , outro d. João I, e que se encontram reunidos no Cancioneiro geral de Garcia de Resende. Sendo mais conhecidas as Coplas de Diogo Brandão dedicadas à morte de d. João II 15 , não po­dem ser esquecidas, no entanto, as trovas de Luis Anriquez dedica­das à morte de d. Afonso 16 e de d. João II 17 ou as de Álvaro de Brito dedicadas à morte de d. Afonso 18 .

Por todos esses textos - formalmente prantos, perfeitamente integráveis na tradição literária peninsular (limito-me a recordar Jorge Manrique) 19 e articulados dentro de um género consolatório muito típico da Ibéria quatrocentista 20 -, perpassa uma intencionalidade que confere às exclamações dolorosas uma dimensão política ( dor política , já escrevi num outro texto 21 ) -, que, no contexto em que são escritos, não são alheios aos problemas que atravessam a política luso-castelhana do reinado de d. Manuel I.

 

3.

O enquadramento peninsular do que atrás qualifiquei como a construção da imagem da monarquia portuguesa quatrocentista nos marcos que tive oportunidade de apontar (1433-1334; 1455-1463; 1494-1497/1502) teve, naturalmente, múltiplas implicações. Não sendo este o lugar adequado para as apontar a todas, considerando as características deste trabalho, vou-me limitar a referir as implica­ções de natureza cultural. No fundo, trata-se de mostrar de que modo ambas as vertentes (a política e a cultural) estão directamente relacio­nadas, o que poderá constituir um sólido ponto de partida para uma melhor compreensão dos termos em que se poderá falar da existên­cia de uma política cultural por parte da monarquia portuguesa de então. Será, assim, à laia de uma conclusão antecipada, uma outra maneira de olhar para o bilinguismo com o qual iniciei esta minha intervenção.

Referi até agora alguns aspectos determinantes da importân­cia que a vertente castelhana tem na política portuguesa quatrocen­tista. Mas essa vertente é também fundamental se olharmos para o campo literário e cultural. Recordo alguns dos nomes relevantes do universo literário castelhano que com o poder português de meados do século XV mantiveram relações documentadas nas fontes: é o caso do marquês de Santillana, cuja tão conhecida Carta-Proémio às suas obras é enviada ao condestável d. Pedro na sequência da batalha de Olmedo, em 1455; é o caso de João de Mena, autor das conhecidas poesias enviadas ao regente d. Pedro (escritas entre maio de 1447 e junho de 1448 22 ), e que, em 1455, recebe do condestável d. Pedro, na altura agente português em Castela, uma importante soma em numerário, possivelmente correspondente ao pagamento da que se-ria a sua última obra literária, as Coplas contra los pecados mortales 23 ; é o caso de Gómez Manrique que, na primeira metade dos anos 60 do século XV, recebe do rei de Portugal d. Afonso V o encargo de reunir um cancioneiro com obras suas 24 . E outros nomes e casos po­deriam ser referidos.

Alguns dos exemplos citados reflectem, de algum modo, uma intencionalidade de tipo mecenático. A referência tem algum inte­resse, não tanto pelo fenómeno em si (é algo corrente na época, fora e dentro de Portugal 25 ), quanto pela relação de estreita dependência que revela ter existido entre mecenato literário e política diplomáti­ca. Não é, aliás, este o primeiro momento em que os elementos dis­poníveis nos permitem estabelecer esta relação. Já há anos, A. M. Salazar o apontou a respeito das missões diplomáticas de Alonso de Cartagena em Portugal 26 , o que tem algum interesse porque a esta­dia de Cartagena em Portugal teve lugar no tempo em que, apesar de ser apenas herdeiro, é d. Duarte quem assegura as grandes deci­sões políticas do reino.

Considero ter alguma importância esta remissão para os tem­pos de d. Duarte. Por um lado, e como há pouco se apontou, em face dos elementos disponíveis, parece ter sido esse monarca quem iniciou o processo de construção ideológica do modelo de exemplari­dade da família real portuguesa . Por outro lado, a ponderação do que ele representa como figura cimeira da cultura de corte no Portugal do século XV mostra em que medida a sua obra escrita reflecte uma preocupação de modelação de um tipo social com contornos cultu­rais, preocupação reveladora da existência, por parte do poder, de uma estratégia política de criação de uma autonomia cultural. Recorde­se, a título de exemplo, a sua afirmação de que o Leal conselheiro , qual ABC de lealdade , está dirigido aos homens de corte que alguma coisa saibam de semelhante ciência, e desejem viver virtuosamente 27 . Há, com efeito, em toda a sua obra, uma intencionalidade pedagógica que, partindo do âmbito cortesão, se alarga a todo o conjunto da socie­dade lusitana. Nesse sentido, pode-se dizer que o Leal conselheiro , sendo em termos materiais obra de cariz ético, em termos formais, visa objectivos políticos.

Há, a esse respeito, um texto cuja autoria não se pode garantir ser do rei Eloquente , mas que, sob todos os pontos de vista, remete para a sua pessoa e personalidade política e cultural. No fundo, manifesta um discurso de simbiose entre política e cultura, típico dos governantes portugueses dessa época. Trata-se do tratado de paz as­sinado em 30 de outubro de 1431 entre os reis de Portugal e de Castela, já anteriormente citado 28 . Não só estamos já na fase termi­nal do governo de d. João I (quando é d. Duarte quem conduz os negócios do reino), como o estilo de argumentação é típico do seu filho. Para o caso presente, o que interessa sobretudo é a introdução do tratado, onde, antes de se entrar em matéria política, se apresen­ta toda uma justificação teórica do que deve ser a prática diplomáti­ca. Começando por afirmar, baseado em são Paulo e santo Agosti­nho, que a paz não é alheia à justiça (" ca el que ama a su proximo cumple la ley, el cumplimiento e perfección de la cual es amistad y dilección " 29 ), considera-as, no fundo, resultantes da caridade, virtu-de primeira. E cita, logo a seguir, Séneca, Cassiodoro e Cícero 30 . Não se pode ser mais claro.

Assim, para se entender adequadamente a intencionalidade dos escritos de d. Duarte, é necessário estabelecer uma relação com ou­tros aspectos da sua actuação cultural. Recorde-se, por exemplo, que o rei é possuidor de uma importante biblioteca (cuja lista de livros chegou ao nosso tempo) 31 , que a ele se deve a iniciativa de algumas traduções muito significativas na época (como a Retórica de Cícero 32 e a continuação do De Casibus Virorum Illustrorum de Boccaccio, encomendadas ao bispo de Burgos d. Alonso de Cartagena, quando esteve embaixador junto da corte portuguesa, nos anos 20 33 ), e que é conhecida a sua intervenção fundamental no advento da historio­grafia nacional no século XV 34 .

Pode-se, assim, identificar, na monarquia de Avis, uma tradi­ção de mecenato cultural com um forte pendor político. Iniciada com os filhos de d. João I, traduz-se em várias iniciativas; o apoio a tra­duções, tanto em português como em castelhano 35 , a redacção de textos com evidente intencionalidade política (recordem-se, para além de d. Duarte, o seu irmão d. Pedro 36 , ou o filho deste, o con­destável 37 , entre outros 38 ), a organização de bibliotecas (em cujo âmbito é fundamental a da livraria régia por d. Afonso V 39 ), a con­cessão de uma série de bolsas de estudo em que as universidades peninsulares têm um papel determinante 40 .

São tudo aspectos bem conhecidos da bibliografia (as tradu­ções, os textos com intencionalidade política, a organização de bi­bliotecas, a concessão de bolsas). O que me parece não ter sido até agora suficientemente sublinhado é o contexto em que essas mani­festações têm lugar. Por exemplo, não deixa de ser significativo que os nomes referidos a propósito do que se pode chamar a política cultural sejam simultaneamente os nomes de referência da diplomacia pró-castelhana da monarquia portuguesa: d. Pedro e d. Duarte, o condestável d. Pedro, d. Afonso V.

E retorno à imagem da monarquia portuguesa e às suas três vertentes atrás apontadas: função legitimadora, carácter exemplar, intencionalidade ibérica. É que esta função legitimadora da ideolo­gia da exemplaridade da família real portuguesa, desenvolvida com uma intencionalidade ibérica, construída a partir da experiência modelar da morte - como já se apontou - tem outras duas com­ponentes a ela ligadas: a vertente da unidade (visível na retórica da unidade familiar, propugnada por d. Duarte e encomendada pelo condestável) e a vertente da sabedoria (visível na prática do mecenato, interno e externo [entenda-se, castelhano], de que os príncipes de Avis se fizeram arautos).

Nesse sentido, pode-se dizer que a política diplomática praticada pela monarquia portuguesa durante grande parte do século XV (pelo menos, a partir da década dos anos 20), e dominada pela preocupação de normalização das relações com Castela, corresponde a um propósito subjacente que se apresenta extremamente coerente: se o objectivo é o de desenvolver a convicção de que a dinastia reinante de Avis é muito mais do que o resultado de uma conjuntura política e diplomática favorável, a concretização material desse objectivo manifesta-se no esforço real por nacionalizar a dinastia pela via da sua exemplaridade . Por sua vez, essa exemplaridade desenvolve­se à volta de três grandes slogans : a família real portuguesa é uma família unida , é uma família santa , é uma família culta . No entanto, se todo esse esforço de nacionalização da dinastia obedece durante alguns anos a evidentes propósitos de consumo interno (em que o objectivo era, inicialmente, o de dar consistência a uma dinastia nova, ilegítima na sua origem), a partir de meados do século XV, e ao longo de quase toda a segunda metade da centúria, detectam-se indícios de uma preocupação orientada sobretudo para a área castelhana. Trata­se de uma ampliação relativamente fácil de explicar em função do modo como evoluem, nessa segunda metade do século, as coorde­nadas dos interesses políticos, militares e económicos do reino, cada vez mais orientados para a problemática meridional, que tornavam diplomaticamente necessária uma aproximação crescente a Castela.

 

4.

Há anos escrevi que "este esforço propagandístico apresenta uma lógica elementar: é instrumento de uma diplomacia, que, por sua vez, corresponde a uma política, finalmente resultante de uma estratégia perfeitamente definida" 41 . O que me parece extremamen­te interessante (e termino com esta observação) é que, nas circuns­tâncias concretas em que uma tal estratégia foi delineada e praticada, a par de vertentes mais directamente políticas, essa mesma estraté­gia tenha contemplado, em íntima articulação, uma vertente cultu­ral. Sem querer com isto recorrer a uma solução de facilidade, diria que aí terá residido, provavelmente, uma das suas principais razões de perdurabilidade. Como é sabido, o bilinguismo linguístico , mas so­bretudo o bilinguismo cultural perdurará entre nós até bastante adian­tado o século XVII.

 

Notas de Rodapé

 

* Texto inicialmente publicado na Península - Revista de Estudos Ibéricos [da Universidade do Porto], nº 0, 2003, p. 53-61. Agradeço aos responsáveis da revista a autorização para a reprodução.

1 Porto, Figueirinhas, 1960, p. 93-5. Para o caso presente, reveste-se de menor interesse o artigo de S. Asperti "Bilinguismo/plurilinguismo na poesia lírica", no Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa (dirigido por Giulia Lanciani; Giuseppe Tavani), Lisboa, Caminho, 1993, p. 103-5. Vejam-se ainda o artigo de Sousa Viterbo, "A literatura espanhola em Portugal", Lisboa, Im­prensa Nacional, 1915, assim como a antologia de João de Castro Osório inti­tulada Florilégio de poesias portuguesas escritas em castelhano e restituídas à lingua nacional , Lisboa, Ocidente, 1942.

2 Tive oportunidade de chamar a atenção para esses aspectos em vários trabalhos, para os quais remeto a propósito de tudo quanto se escreve neste trabalho sobre a problemática em causa: O essencial sobre o Tratado de Windsor , Lisboa, Impren­sa Nacional-Casa da Moeda, 1986; "Le Portugal et l'Europe au XVe siècle", em catálogo da exposição Feitorias : L'Art au Portugal au temps des Grandes Découvertes (fin XIVe siécle jusqu'à 1548), integrada na Europalia 91 Portugal (Antuérpia, Koninklijk Museum voor Schone Kunsten, 1991, set. 29/dez. 29), Bruxelas, Europalia, 1991, p. 19-24; Portugal entre dos mares , Madrid, Editorial Mapfre, 1993, p. 47 e segs.; Os descobrimentos e a formação do oceano Atlântico , Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portu­gueses, 1999, p. 29 e segs.; "Portugal na península Ibérica: horizontes maríti­mos, articulação política e relações diplomáticas (sec. XII-XVI)", in Júlio Vadéon Buarque (coord.) Las Españas medievales , Valladolid, Universidad de Valladolid, 1999, p. 83-93; "Horizonte castelhano no debate político em Portugal no final da Idade Média", in Vicente A. Álvarez Palenzuela (coord.), Jornadas de cultura hispano-portuguesa , Madrid, Universidad Autónoma de Madrid, 1999, p. 147­- 61. Mais recentemente, sintetizei este problema em "A primeira expansão", in Roberto Carneiro; Artur Teodoro de Matos (coord.), Memória de Portugal : o milénio português, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 230-1; 234-5; 245-6; 248-9.

3 E recordo, entre outros estudos, o conjunto da obra de Luis Suárez Fernández, a começar pelo seu trabalho, ainda fundamental, intitulado "El Atlántico y el Mediterraneo en los objectivos políticos de la Casa de Trastamara", Revista Por­tuguesa de História , tomo V, 1951, p. 287-307.

4 Texto publicado nos Monumenta henricina , volume 4, Coimbra, Comissão Exe­cutiva das Comemorações do 5° Centenário da Morte do Infante d. Henrique, 1962, documento 9, p. 18-52 (onde se indicam publicações anteriores).

5 A morte de d. João I (um tema de propaganda dinástica), Porto, Centro de Estu­dos Humanísticos, 1984.

6 Recordo, a este propósito, o que escrevi em "A morte como tema de propaganda política na historiografia e na poesia portuguesa do século XV", in: Biblos (Actas do Congresso Comemorativo do 6º Centenário do Infante d. Pedro, [Coimbra, 1992, 11.25-27], volume LXIX, 1993, p. 507-538.

7 Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, nº 2.006.

8 Cito a partir de Joaquim Veríssimo Serrão, A historiografia portuguesa , vol. 1, Lisboa, Verbo, 1972, p. 42.

9 Cf. Lucília da Glória Verdelho da Costa, "Morte e espaço funerário na arquitectura religiosa do século XV", in: Actas das jornadas sobre Portugal medieval , Leiria, Câmara Municipal, 1986, p. 223-72.

10 Além dos meus estudos citados nas notas 2 e 11, veja-se o estudo fundamental de Humberto Baquero Moreno, A batalha de Alfarrobeira : antecedentes e signi­ficado histórico, Lourenço Marques, Universidade de Lourenço Marques, 1973.

11 Vejam-se os meus estudos: O condestável d. Pedro de Portugal, a ordem militar de Avis e a península Ibérica do seu tempo (1429-1466) , Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982; e "La época de Enrique IV y Juan II de Aragón", in Luis Suárez Fernández (org.), Historia general de España y América , tomo V, Madrid, Rialp, 1981, p. 405-47.

12 Cf. o meu estudo "A morte como tema de propaganda política", op. cit.

13 Sobre este texto, vejam-se os meus estudos: "Inclita Geração. Altos Infantes ( Lusíadas , IV, 50). Algumas considerações sobre a importância das circunstânci­as históricas na formação de um tema literário", in: Actas da IV Reunião Interna­cional de Camonistas , Ponta Delgada, 1984, p. 295-302; "Una elegia inédita sobre la familia de Avis: un aspecto de la propaganda política en la peninsula Ibérica a mediados del siglo XV", in: Anuario de Estudios Medievales , vol. 16, 1986, p. 449-63.

14 Ver o que escrevi em Vasco da Gama : o homem, a viagem, a época, Lisboa, Expo 98 e Comissão de Coordenação da Região do Alentejo , 1997, p. 269 e segs. Aliás, esta dinâmica continuará nos anos seguintes (cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Um espaço, duas monarquias [Interrelações na península Ibérica no tem­po de Carlos V], Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2001).

15 Cancioneiro geral de Garcia de Resende (ed. Aida Fernanda Dias), vol. 2, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1990, nº 333, p. 209-20. Recentemente, este pranto foi editado por Valétia Tocco, Diogo Brandão : obras poéticas, Lis­boa, CNCDP, 1997, p. 78-88.

16 Id., vol. 2, nº 365, p. 256-65.

17 Id., vol. 2, nº 366, p. 265-8.

18 Id., vol. 1, nº 76, p. 246-7.

19 Mário Martins, Introdução histórica à vivência do tempo e da morte , vol. 1,Braga, Livraria Cruz, 1969; José Carlos Miranda, "O tema da morte e a tradi­ção literária do pranto no Cancioneiro geral de Garcia de Resende", in Actas do congresso internacional Bartolomeu Dias e a sua época , vol. 4, Porto, Universidade do Porto e Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989, p. 77-93.

20 Pedro M. Catedra, "Prospección sobre el género consolatorio en el siglo XV", in Alan D. Deyermond; Jeremy Lawrence (ed.), Letters and society in fifteenth-century Spain - Studies presented to P. E. Russell on his eightieth birthday, Llangrannog, Dolphin Book, 1993, p. 1-16.

21 Cf. o meu estudo "A morte como tema de propaganda política", op. cit., p. 532.

22 Cf. o meu estudo "Una elegia inédita", op. cit., p. 454. 23 Id., p. 453.

24 Id., p. 454-5.

25 Sobre esse tema, embora tenha uma perspectiva diferente, veja-se: Francisco Pato de Macedo, "O infante d. Pedro - patrono e mecenas", in Biblos , op. cit., p. 459-86.

26 A. Salazar, "El impacto humanístico de las misiones diplomáticas de Alonso de Cartagena en la corte portuguesa entre Medioevo y Renacimiento (1421-1431)", in Alan D. Deyermond (ed.), Medieval Hispanic Studies presented to Rita Hamil­ton , London, Tamesis Books, 1976, p. 215-26; Maria Morrás, "El debate entre Leonardo Bruni y Alonso de Cartagena: las razones de una polémica", Quaderns - Revista de traducción, 7, 2002, p. 33-57. [Disponível em http://www.bib.uab. es/pub/quaderns/11385790n7p33.pdf - 2003.02.05.]

27 Leal conselheiro (ed. J. M. Piel), Lisboa, Bertrand, 1942, p. 3 e 5.

28 Veja-se a nota 4.

29 Documento citado na nota 4, p. 20.

30 Id., ibid. Tem interesse comparar esta introdução com o capítulo 43 do Leal conselheiro de d. Duarte, dedicado à castidade (ed. J. M. Piel, op. cit., p. 169­74).

31 Publicada várias vezes. Por exemplo: Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra , tomo 1, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1892, p. 209-28; J. M. Piel, edição do Leal conselheiro , op. cit., p. 414-6.

32 Manuel Calafaz de Matos, "O infante d. Pedro, a versão do De Officiis e outras preocupações ciceronianas no ocidente europeu no século XV", in: Biblos , op. cit., p. 320-1; J. M Piel, edição do De Officiis de Cícero , Coimbra, Universidade de Coimbra, 1948, p. XII-XIII.

33 Ver nota 26.

34 Joaquim Veríssimo Serrão, A historiografia portuguesa , op. cit., p. 45-7.

35 Sebastião Tavares de Pinho, "O infante d. Pedro e a 'Escola' de tradutores da corte de Avis", in: Biblos , op. cit., p. 129-53. Cf. Manuela Fernández Sánchez; José Antonio Pinilla, "Tradición clásica y reflexiones sobre la traducción en la corte de Aviz", in: Hieronymus Complutensis - El mundo de la traducción , 8, 1999, p. 61-72.

36 Além de autor da Virtuosa benfeitoria (ed. Adelino de Almeida Calado, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1994), e de tradutor do De Officiis de Cícero (ed. J. M. Piel, op. cit.), mandou traduzir a Vasco Fernandes de Lucena as seguintes obras: o Panegírico de Trajano de Plínio o Jovem (idem, p. XLI-XLII), o De ingeniis moribus et liberalibus studiis de Pedro Paulo Vergerio (idem, p. XLVI­XLVII) e o De senectute de Cícero (idem, p. XLIII-XLVI). Sobre isto, vejam-se: Manuel Calafaz de Matos, "O infante d. Pedro, a versão do De Officiis ", op. cit.,. p. 315-41; Jorge A. Osório, "A prosa do infante d. Pedro: a propósito do Livro dos Ofícios ", in Biblos , op. cit., p. 107-27. Este propósito tradutor do in­fante d. Pedro é explicitamente referido pelo cronista Rui de Pina na sua "Crónica de d. Afonso V" ( Crónicas , Porto, Lello & Irmão, 1977, cap. 125, p. 754).

37 Sobre a biblioteca do condestável, vejam-se: Teófilo Braga, História da Univer­sidade de Coimbra , op. cit., tomo 1, p. 231-4; Carolina Michaëlis de Vasconce­los, edição da Tragédia de la Insigne Reina Doña Isabel [do condestável d. Pedro], Coimbra, Universidade de Coimbra, 1922, p. 121-44; assim como o meu estu­do O condestável d. Pedro de Portugal : subsídios para o estudo da sua mentalida­de, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1968 (dissertação dactilografada), p. 127-221.

38 V.g. D. João I (Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra , op. cit., tomo 1, p. 203-9); o Infante Santo D. Fernando (Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra , op. cit., tomo 1, p. 228-31; Robert Richard, "Les lectures spirituelles de l'Infant Ferdinand de Portugal", reimpresso na colectânea do mesmo autor Études sur l'histoire morale et religieuse du Portugal , Paris, Fun­dação Calouste Gulbenkian, 1970, p. 53-61); ou, mais tarde, D. Manuel I (Sousa Viterbo, A livraria real especialmente no reinado de d. Manuel , Memória apresen­tada à Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 1901. [Disponível em http://bnd.bn.pt/od/pp-24160-v/index-HTML/M_index.html -2003.02.06.]).

39 Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra , op. cit., tomo 1, p. 235-7; Sousa Viterbo, "A cultura intellectual de D. Afonso V", in Archivo Historico Portuguez , vol. 2, 1904, p. 254-68. Cf. Aires Augusto Nascimento, "As livrarias dos Príncipes de Avis", in Biblos , op. cit., p. 265-87.

40 Humberto Baquero Moreno, "Um aspecto da política cultural de d. Afonso V: a concessão de bolsas de estudo", Revista de Ciências do Homem , [Lourenço Marques], vol. 3, nº 1, série A, 1970, p. 177-205.

41 Portugal entre dos mares, op. cit., p. 61; e Os descobrimentos e a formação do oceano Atlântico, op. cit., p. 36.