Gil Vicente em cena: 1998-2002

Ver é estar doente dos olhos

Sergio Mota
PUC-Rio

Uma imagem: em grande plano, o corte cirúrgico do olho de uma mulher, executado com uma lâmina, é a imagem que vai mover as relações com o inconsciente em Un chien andalou (1928), de Luis Buñuel e Salvador Dalí. A cegueira provocada na imagem dissonante do corte resulta em uma espécie de cegueira visionária, um olho que possibilita visões anteriores e interiores diante da imaginação em estado primitivo. No filme, revelar essa súbita cegueira significa voltar às trevas, à sombra, para achar as verdadeiras imagens em um suposto interesse por um mundo invisível, preenchido por sonhos. Uma expressão direta da mente inconsciente, conforme preconizava Freud em suas ilustrações de casos clínicos. A imagem da cegueira (um cego que era maltratado) é retomada em L'Age d'Or (1930), outro filme da dupla. O corte que cega o olhar permite a entrada em um novo mundo, na tentativa de reconstruir o mundo visível que se afasta.

Em Un chien andalou , um modelo nu com ouriços-do-mar vivos, debaixo de cada braço, diversos burros putrefatos, um piano de cauda, uma mão cortada, três formigueiros e um olho de vaca são imagens aflitivas, seqüências de sonhos que se desdobram em visões formadas (ou deformadas) no subconsciente dessa câmera-olho cirurgicamente recortada e voltada para dentro. Um mundo de imagens que parte da idéia de "concreto irracional", na formulação de Dalí. Dentro de uma oposição a qualquer reflexão estética ou ética, o filme pretende desvendar, em uma ilustração surrealista, as visões que escapam à realidade e se relacionam com a loucura, o sonho e o exagero.

Partindo da idéia de que a superexposição das imagens pode neutralizar o conteúdo de uma obra, Corra, Lola, corra ( Lola Rennt , Alemanha, 1998), filme de Tom Tykwer, descreve uma mesma história que se repete três vezes, com pequenas variações em seu rumo e desfechos diferentes. A princípio banal, o enredo conta a história da personagem Lola, que tem apenas vinte minutos para conseguir a quantia de 100 mil marcos e salvar o namorado, envolvido com traficantes. Ao sublinhar a estética dos jogos em vídeo, o filme se inscreve no âmbito das produções de massa e surpreende o espectador em um fluxo desorientado de imagens.

As imagens aceleradas ao extremo, a experimentação radical de recursos na tela fílmica e o estabelecimento de diversas possibilidades biográficas das pessoas com quem Lola esbarra no caminho contribuem para um descontrole provocado pela ausência de limites entre a realidade e a sua respectiva construção virtual ou, ainda, pelo embate definitivo que a personagem estabelece com o tempo. No lugar de uma Alice pós-moderna, a punk Lola exercita a incredulidade de sua percepção diante das situações impraticáveis propostas pelo roteiro do filme.

Ao assumir deliberadamente que o filme é um jogo, a personagem Lola, alçada à condição de herói de videogames , entende que a sua percepção singular de "jogador" é exterior ao mundo representado no game. Entretanto, por outro lado, é apenas ela que detém o comando da história a ser narrada. Dessa forma, a personagem, quando percebe que o desfecho da história não foi feliz ou resultou na sua morte ou na do namorado, reorganiza a noção de destino e fatalidade e, em ritmo frenético, inicia uma outra possibilidade de história.

Nessa perspectiva, o jogo é unilateral e os papéis, distintos. Lola é o sujeito que ativa e decide o jogo de acordo com sua conveniência. Ao espectador, só resta assistir à circulação acelerada das informações, à efemeridade da noção de futuro e à indissociabilidade entre real e simulacro. Na verdade, o excesso de visibilidade produzido pelo filme questiona a cultura sob a perspectiva da proliferação vertiginosa das imagens. Para o espectador, não há tempo para distinguir uma imagem da outra ou a diferença sutil entre as histórias narradas. Sua capacidade perceptiva fica prejudicada na medida em que uma certa artificialidade iguala todas as imagens, produzindo uma sensação de dificuldade visual diante da generalização dos destinos de Lola e do namorado.

Ao eleger a visibilidade como proposta para o novo milênio, Italo Calvino afirma que não se pode correr o risco de perder "a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens" 2 . Para o escritor italiano, a experiência contemporânea é pressionada por um acúmulo de imagens sucessivas que não conseguem se sustentar por si mesmas, diluindo-se antes de adquirir consistência na memória visiva do espectador. ("Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão." 3 )

Ver o filme de Tom Tykwer, no diapasão proposto por Calvino, implica reconhecer a redundância dos destinos de Lola, o esvaziamento progressivo do que nos é dado a ver e, principalmente, a diluição violenta da percepção visual do espectador. Se ver, nesse caso, significa não ver, o excesso imagético provoca um distanciamento diante do exposto, ao mesmo tempo que produz uma sensação de cegueira momentânea no espectador.

Ao falar em termos de uma "máquina de visão", produto inovador de uma visão artificial, Paul Virilio reconhece os efeitos de "uma visão sem olhar sendo ela mesma nada mais do que a reprodução de um intenso cegamento, cegamento que se torna uma nova e última forma de industrialização, a industrialização do não olhar" 4 .   Reconhecendo a relação recíproca entre o ver e o não ver, Virilio destaca uma espécie de visão periférica dos objetos, que ganham o estatuto de produtores de visão. A aproximação com o filme de Tykwer é pertinente na medida em que se define a posição do espectador em contato com a realidade fílmica. Reduzido passivamente a um objeto de visão, o espectador, diante do excesso e do descontrole das imagens, não registra o que vê e se sente excluído do campo percep­tivo. Está desarmado o jogo. O filme não mostra nada, é redundante na proposta e provoca deformações no olhar do espectador.

Em Palomar , romance alegórico e episódico de Italo Calvino, discute-se um outro momento do que se chamou anteriormente de deformações do olhar. O personagem que dá nome ao romance trabalha com a idéia fixa de particularização das imagens, organizando as investidas de seu olhar em um intricado processo fabulativo. Ao conceder a tudo o que vê a possibilidade de ser história e objeto de pensamento, o personagem Palomar, nome de um conhecido observatório astronômico, questiona se as coisas que estão diante de seus olhos permanecerão sempre as mesmas quando ele se aproximar para reconhecer, de forma mais visível, o objeto preenchido por seu campo de visão.

Quando observa uma onda no mar, um seio nu de mulher ou um raio de sol, por exemplo, Palomar não se move. É o seu olhar que define o foco e o ângulo de visão desejado. O método rigoroso de observação tem como objetivo especializar-se em um determinado ponto da realidade para, daí em diante, concentrar-se nos mínimos detalhes. Ociosa por natureza, a visão de telescópio do personagem estabelece conexões com o que é infinitamente pequeno, desconhecendo, a princípio, que o fragmento recortado contém aquilo que é infinito. ("O senhor Palomar procura agora limitar o seu campo de observação; se ele considerar um quadrado, digamos, de dez metros de mar, pode fazer um inventário completo de todos os movimentos de ondas que ali se repitam com variadas freqüências, num dado intervalo de tempo." 5 )

Na verdade, o personagem funciona como um telescópio ao avesso que busca se aproximar daquilo que é possível de ser traduzido em forma de pensamento. Em outras palavras, a atitude ociosa de Palomar parte da amplidão do espaço para especializar sua visão diante do que parece invisível. "Máquina de visão", Palomar procura na aproximação do objeto visivo, não apenas o reconhecimento geométrico dos contornos de uma forma, mas, principalmente, busca uma interpretação mais detalhada de seu campo visual, do ponto da realidade recortado pelo ângulo escolhido. Ver de perto, corrigir o olhar defeituoso, significa, na verdade, desparticularizar o recorte e inseri-lo na idéia de infinito. ("Que desgraça seria se a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente construir se baralhasse e se quebrasse e se dispersasse. Só se conseguir lembrar-se do conjunto de todos os aspectos é que poderá iniciar a segunda fase da operação: estender este conhecimento ao universo inteiro." 6 )

Em seus estudos sobre o visível, Merleau-Ponty assegura que à visão deve estar associado um certo dado testemunhal que comprove a veracidade presente naquilo que se vê. Para o filósofo, que fala em termos de uma "fé perceptiva", essa atitude crédula diante do objeto escolhido funciona quase como um dogma de visão, em que aquele dado testemunhal é constantemente ameaçado por uma "não-fé". Com esse raciocínio, a verdade do que se vê estabelece uma relação intrínseca com o princípio primordial da visão. ("[...] é a experiência de habitar o mundo por meio de nosso corpo, a verdade nós mesmos inteiramente sem que seja necessário escolher nem mesmo distinguir entre a segurança de ver e a de ver o verdadeiro, pois que são por princípio uma mesma coisa - a tal fé." 7 )

"Aparelho de ver", na formulação de Merleau-Ponty, Palomar se aproxima do objeto para se apropriar da concretude dele. Na seção "A contemplação das estrelas", Palomar revela sua estreiteza de visão. Ao afirmar-se míope e com dificuldade de observar a olho nu as estrelas, o personagem questiona, pela primeira vez, sua exploração perceptiva. Definir o céu, nesse momento de dificuldades, como o lugar físico onde está aquilo que deseja contemplar, significa reafirmar sua convicção visual, na tentativa de aproximar o que se encontra distante, razão de ser da alegoria de Calvino. Diz o narrador:

 

Se o senhor Palomar fizesse uso de um telescópio, as coisas seriam mais complicadas sob certos aspectos e simplificadas sob outros; mas, neste momento, a experiência do céu que lhe interessa, é a experiência do olho nu, como a dos antigos viajantes e a dos pastores errantes. Olho nu, para ele que é míope, significa óculos; e como para ler o mapa tem de tirar os óculos as operações complicam-se com este levantar e baixar dos óculos sobre a fronte e comportam a espera de alguns segundos até que o seu cristalino consiga focar as estrelas verdadeiras ou as escritas. 8 

 

A associação telescópio/óculos confirma a imperfeição do olho do personagem, a partir do momento em que se percebe que a imagem de um objeto situado no infinito (no caso, as estrelas) forma-se aquém da retina de Palomar. Transformado em novo Galileu , com sua dupla visão (nome de observatório astronômico e "óculos sobre a fronte"), o personagem redimensiona o papel do telescópio. Dessa forma, o aparelho não é apenas uma máquina que aumenta o tamanho dos objetos e, por conseqüência, o poder do olhar, mas sim um instrumento para corrigir a visão. 9 

Para confirmar a importância da visão aproximativa no romance de Calvino, recorre-se mais uma vez a Merleau-Ponty. Segundo o filósofo, existe uma convicção que confirma a necessidade de "ver bem", para se aproximar das coisas sem abrir mão do mais coerente ponto de contemplação:

 

Minha convicção de ver a própria coisa resulta da exploração perceptiva, não é uma palavra para designar a visão proximal; é ela, ao contrário, que me dá a noção do 'proximal', do 'melhor' ponto de observação da 'própria coisa'. Tendo, pois, aprendido pela experiência perceptiva o que é 'ver bem' a coisa, e que é preciso e possível, para o conseguirmos dela nos aproximarmos. 10 

 

Nesse mesmo paradigma, há um outro personagem de vista curta em Os amores difíceis , reunião de contos de Italo Calvino, escritos ao longo da década de 50. Espécie de matriz do romance estudado anteriormente, o personagem Almicare Carruga, no início do conto, constata um problema em seu eixo visual, que ocasiona o desinteresse no exercício do olhar. Nessa perspectiva, as imagens desse flâneur passam a ganhar um tom desbotado, sem relevo e, principalmente, não conseguem reproduzir o perfil do objeto visado. Como era de se esperar, a sensação de perda produzida pela deficiência visual do personagem vai gerando uma impotência gradativa na vida de Carruga. Ao abrir os olhos para ver, sua experiência passa, obrigatoriamente pelo não-ver, pela visão desbotada do objeto que está adiante.

Se o olhar do personagem está associado a uma noção de perda, a experiência de ver, a princípio, é mera catalogação daquilo que escapa. Ver e perder passam a ganhar conotações aproximativas ("Coisas à-toa, como, por exemplo, olhar as mulheres na rua; antigamente costumava lançar os olhos em cima delas, ávido; agora até procurava instintivamente olhar para elas, mas logo tinha a impressão de que passavam correndo como um vento, sem lhe dar nenhuma sensação, e então baixava as pálpebras indiferente." 11 )

O movimento de baixar "as pálpebras indiferente" sinaliza, no pri­meiro momento do conto, a produção de uma imagem em negativo. O esvaziamento das imagens diante do personagem vai inserindo esse sistema óptico decadente em um processo de desorientação, pelo menos até que se descubra o motivo dos fracassos visuais. A partir do momento em que o conto de Calvino reconhece a desorientação como prática discursiva, a visão "desbotada" desse herdeiro do senhor Palomar constata o aprisionamento a que está provisoriamente condenado.

Em O que vemos, o que nos olha , o historiador e crítico de arte Georges Didi-Huberman aprofunda, em seus estudos sobre linguagem e visualidade, a fenomenologia merleau-pontyana. Ao tratar de questões relativas à ausência do olhar, o crítico afirma que "enterrar uma imagem era ainda produzir uma imagem. Seria a imagem aquilo que resta visualmente quando a imagem assume o risco de seu fim, entra no processo de se alterar, de se destruir ou ainda de se afastar até desaparecer enquanto objeto visível". 12 

Relutando em confirmar a afirmação de Huberman, o segundo momento do conto de Calvino constrói-se a partir de uma revelação quase catártica. "Por fim, entendeu. Ele estava míope. O oculista lhe receitou um par de óculos. A partir daquele momento sua vida mudou, tornou-se cem vezes mais rica em interesse do que antes." 13 A passagem da deficiência para a correção visual adquire contornos de reconhecimento de um novo mundo visual. "Olhar se tornava um divertimento, um espetáculo; não olhar uma coisa ou outra: olhar." 14 O espírito perspicaz da visão corrigida compreende a necessidade da aproximação vertiginosa do que antes estava longe. Mesmo sem o discernimento natural da visão ampliada pelas lentes do míope, o personagem de Calvino experimenta novas sensações visuais, resultado de sua privação anterior, incapaz de revelar "detalhes mínimos, com linhas tão nítidas, matizes de expressão antes insuspeitos". 15

Provocado pelo excesso, o personagem inicia um movimento de catalogação, capaz de discernir e (re)interpretar a variabilidade de seu campo visual. Chegar ao extremo da possibilidade de ver significa reconhecer o privilégio concedido pela tradição à sensação visual. Ao adquirir uma capacidade excepcional no membro óptico, o personagem míope reconhece que ver em excesso é tornar indistinto o que está à sua volta. Em outras palavras, é recuperar o estado desorientado, anterior à medida corretiva. "Via tal quantidade de coisas que era como se não visse mais nada." 16  Diante da constatação, o conto de Calvino confirma que a clareza provocada pelas novas imagens desorienta a tentativa aproximada do ângulo de visão recuperado. Para o personagem, ver intensamente, conhecer uma realidade até então secreta é recuperar uma redundância do olhar. É sublinhar os contornos do excesso ou, ainda, é retirar dos objetos o caráter testemunhal neles impregnado pelo tempo. "Com os óculos via uma infinidade de detalhes insignificantes, por exemplo, certa janela, certo balaústre, ou seja, tinha a consciência de vê-los, de escolhê-los no meio de todo o resto, enquanto antigamente os via e pronto." 17

Ao mesmo tempo que conjuga visões e não-visões, o personagem míope - paradoxalmente, "cego" de óculos - revolta-se com aquele "objeto estranho, um produto da indústria" 18 , em sua fisionomia. A partir daí, compreende que sua provocada "cegueira" estabeleceu em definitivo a ruptura entre o saber (o reconhecimento da necessidade corretiva) e o poder (a capacidade de redefinir a vista). Diz o narrador: "Tinha tirado os óculos. Agora o mundo era novamente aquela nuvem insípida e ele se debatia se debatia com os olhos fixos e não puxava nada para a tona." 19

Ao não negligenciar a responsabilidade de retirar os óculos para que sua redefinida experiência visual não mais testemunhe os contornos amplificados e as seduções oriundas dessa nova prática, assume a recusa definitiva (ou provisória) de ver. "Os óculos, pô-los ou tirá-los ali dava exatamente no mesmo. Almicare Carruga compreen­dia que talvez aquela exaltação dos óculos novos tivesse sido a última de sua vida, e agora havia acabado." 20 Repetindo, alegoricamente, o gesto de Édipo que rasga os olhos, o personagem de Calvino, no fim do conto, interrompe a sua experiência diante das aparências enganadoras do mundo. Assim, estanca a visão para possibilitar a si mesmo fluxos de cegueira. 21 

 

 

Notas de Rodapé

1 Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e doutorando em Letras na mesma universidade.

 

Bibliografia

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca . Trad. de Carmen de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987.

CALVINO, Italo. Os amores difíceis. Trad. Raquel Ramalhate. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

---. Palomar. Trad. João Reis. Lisboa: Teorema, 1985.

---. Por que ler os clássicos . Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

---. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha . Trad. Paulo Novaes. São Paulo: Editora 34, 1988.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível . Trad. Paulo Neves. São Paulo: Perspectiva, 1999.

NOVAES, Adauto (org.). O olhar . São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira . São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges . Belo Horizonte: Autêntica/ Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.

VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Trad. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.