Gil Vicente em cena: 1998-2002

Depois da Barca, cenas de outros infernos nas dramaturgias de Oduvaldo Vianna Filho e José Cardoso Pires

Maria Helena Werneck
Catedra

 

A imagerie vicentina expressa no vitral de Almada Negreiros para a encenação de 1965 do Auto da Alma [1] , aposta nas alegorias da verticalidade hierárquica para localizar o inferno bem distante da proteção dos poderosos - os anjos, os santos, os pensadores da religião, a Santa Madre Igreja. No entanto, antes da verticalidade ser estabelecida ou reestabelecida, a dramaturgia de Gil Vicente indica que o teatro interessante cria-se em um espaço concentrado de embate, seja num porto à beira-mar ou à beira-rio, à espera da viagem das barcas, seja num caminho de chão, por onde se segue rumo à Estalagem segura da Igreja. Fica, assim, estabelecido um limite de mobilidade demarcado um tempo imprensado entre a vida e a morte, entre a morte e a vida futura, após a morte. Esse espaço-tempo, desenhado por regra e compasso do imaginário religioso, traduz-se numa economia de imagens sobre o inferno cuja modelização inclui não só a designação do lugar - "ilha perdida", terra "bem sem sabor", "porto de Lúcifer" - para indicar apenas algumas metáforas do Auto da Barca do Inferno, como também se socorre do projeto de uma cena que absorve a presença intensiva de personagens.

Parto do princípio que uma das formas de teatralidade dos textos vicentinos se estabelece a partir da oposição entre espacialidade restrita e discurso verbal e gestual exuberantes. O que podemos denominar ocupação alargada da cena resultaria, assim,  em primeiro lugar de um regime discursivo que ora baseia-se em perguntas e respostas, construindo um diálogo inquisitivo, ora funda-se na declaração de ordens, construindo um diálogo imperativo. Podemos acrescentar que, em segundo lugar, esta ocupação alargada decorre, da marcação cênica que faz da zonas de fronteira (entre o aqui e o lá) um espaço onde a gestualidade torna-se mais visível por efeito do desfile de figuras na peculiar geografia em que a cena se localiza. Numa zona de encruzilhada, temos falas combinadas por ordem e convite, passa-foras e acolhimentos, desaforos e pedidos de desculpa com pontuações didascálicas de dorsos e faces que se riem para fazer rir e surpreender-nos, como, por exemplo, frades dando lições de esgrima, fidalgos passeando com capas enrabichadas, parvos pornográficos, incontroláveis no deboche.

É precisamente neste lugar entre dois possíveis rumos e tempos que se instalam os diabos. Síntese dos humanos condenados pela imposição religiosa, sacodem-se, gesticulam, riem às vezes zombeteiros, às vezes despregados. Acabam caindo no chão, mais próximos da nossa humana condição, desacorçoados, desengonçados, qual simpáticos bonecos arlequinais. Inferno de Arlequins, portanto. Nada parecido, no texto do Mestre Gil Vicente e no desenho de Almada Negreiros, com outros infernos que através dos tempos presentes não cessam de proliferar. Vamos em direção a esses outros infernos.

Em 1979, sobe ao palco do Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, a peça Papa Higuirte, de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) [2] , que havia ficado censurada desde 1968, quando fora escrita e premiada pelo Serviço Nacional de Teatro. Em 1979 estréia no Teatro Aberto, de Lisboa, Corpo-Delito na Sala de Espelhos - Auto e Confrontações, de José Cardoso Pires(1926-1998) [3] . A coincidência intrigante revelou-se uma boa pista para promover a aproximação de dois textos e respectivos espetáculos que procuram trazer para a cena a História de seus países.

Quando a história do presente é matéria do teatro, a dramaturgia defronta-se com a necessidade de ultrapassar a força impositiva do drama, que reduz o tempo e o espaço da referência ao tempo e o espaço da encenação, obrigando à imersão em uma temporalidade que avança em falas e gestos do aqui e agora para uma sucessão de pontos numa linha a se desenhar nítida em frente do espectador. Aciona-se uma esteira de imagens que só termina, à revelia da platéia, com o baixar do pano, com o acender das luzes, com o estrépito das palmas. O drama, segundo Peter Szondi, não possui efeito demonstrativo, concentra o olhar para dentro de si, para as próprias profundezas metafísicas. Sua enunciação está diretamente ligada à sua capacidade de tomar, no espaço-tempo do teatro, o lugar do próprio mundo. [4]

Para fazer frente à sua inevitabiliadade de arte de curta duração e repetibilidade reduzida, encravada na experiência radical do in-presencia, o teatro, quando deseja trazer o acontecimento do lado de fora da sociedade para dentro do espaço do palco, tem de optar por formas dramatúrgicas e soluções cênicas que possam controlar a presença do mundo absoluto na caixa preta, que possam desviar o encanto reduplicador da ilusão e impedir a imersão mimética do espectador. Seria necessário, portanto, redirigir o olhar que o drama atrai para dentro do tempo suspenso no presente da cena, de modo a fazer esse olhar girar de dentro para fora, de fora para dentro.

Pensando com Walter Benjamin ao estudar o teatro épico de Brecht, o aparentemente sólido aparelho teatral do drama torna-se extremanente frágil quando o palco quer se aproximar da tribuna ou da crônica histórica, sem deixar-se seduzir inteiramente pelo "instinto de propaganda" [5] . Trazer a História para o teatro seria, então, desfazer a idéia de um palco formado por "tábuas que significam o mundo" situado como espaço mágico e, em seu lugar, instalar um palco que seja percebido como "sala de exposição", outra categoria com que Benjamin traduz Brecht. Na sala de exposições apresentam-se as condições de produção viva de uma realidade e não apenas um retrato da realidade. Há, portanto, um contraste fundador neste teatro de exposição, pois ao mesmo tempo que se pretende trazer as condições de realidade para perto do espectador, deseja-se criar oportunidades para que elas sejam afastadas do espectador.

Quando reprocessa o tempo de forma a gerar historicidade (e passamos agora a procurar categorias para analisar as peças escolhidas), isto é, quando cria uma nova topologia situada no ponto de cruzamento entre a cena, a matéria da realidade e o espectador, o espaço teatral passa por um processo de alto espessamento [6] . Ao projetar volume e densidade, a dramaturgia cerca-se de recursos teatrais que impedem a linha linear, rigorosamente constituída por sucessivos presentes, de se desenrolar sem barreira. Propagando-se neste universo de pura tridimensionalidade, o traçado linear pode sofrer uma refração e, em conseqüência, aparecer quebrado, contorcido, repartido, multiplicando-se em tempos e espaços que roteirizam novos percursos para o presente da ação. O espessamento do espaço teatral pode, também, operar por aumento de foco, de ampliação de campos de visibilidade e contato, de tal forma concebidos que as corporalidades dos atores se tornam fronteiras paradoxais entre o território da ficção (a história que portam e recriam como personagens) e o território da referência, onde atuam como pessoas comuns e, portanto, pertencentes à ordem temporal e espacial de mesma natureza que os espectadores.

Nos dois casos, por refração ou aumento desmedido da imagem da empiria, trata-se de encontrar materialidade para a experiência do tempo simultâneo. O que vejo está acontecendo muito próximo a mim, mas o que vejo antes de tudo é o teatro se fazendo. Por contaminação ou por analogia, mas em lugar perto e distante, é a história se refazendo com a pulsação do meu sangue, com o peso de minhas pernas e braços exaustos, com a garganta rouca, mas ainda disposta a calar rabugices e atitudes briguentas e expressar revolta, a palavra recuperada por Kristeva, em Sentido e contra-senso da revolta, em que defende a tese de que "somente uma experiência de revolta pode nos salvar da robotização da humanidade que nos ameaça" [7] .

À procura, então, de diversas poéticas teatrais da revolta face ao tempo presente, vamos à leitura dos textos e dos espetáculos.

Em Papa Higuirte [8] , de Vianninha, a lógica do espessamento do espaço teatral por refração da linha, do traço, produz a figura do deslocamento, melhor dizendo uma topologia da des-localização. Desde a primeira cena, o tempo-espaço construído é o do exílio, o país de Montalva, onde se encontram situados, ou melhor des-situados, todos os personagens: o ditador deposto Juan Maria Guzamon Higuirte, sua amante Graziela, a governanta Grissa, o canditato a motorista Mariz. Originários de Alhambra, carregam para suas novas vidas de exilados certas memórias que doem, mas que, além da dor, podem gastar a vida e comandar atitudes futuras. Estas memórias - a do processo que levou o ditador à deposição (sua reação à modernização industrial do país e repressão à organização dos trabalhadores, que fornecem combustível para a intervenção de países estrangeiros apoiando o novo ditador, Camacho) e as memórias do militante Mariz que, submetido à tortura acabara prestando informações decisivas para a captura e morte de seu companheiro Manito, defensor da luta armada no processo revolucionário - caem no tempo e no espaço do exílio para serem subjugadas, ainda que por um breve período, por uma massa temporal nova em que o passado parece paralisar-se, mas na verdade estará ruminando novas forças que irão impulsionar os personagens para a vingança (Mariz), para a nostalgia (Grissa), para a desesperada ilusão do retorno ao poder (Papa Higuirte).

Na segunda e longa cena de tortura pode-se entender este processo de contatos de temporalidades. Mariz é levado para seu quarto de motorista na residência do ditador. O quarto, espaço do presente da ação, é desdobrado na câmara de tortura do passado. Ultrapassando os dois tempos, apenas um corpo se transfigura: aquele que deverá cobrir-se pelo uniforme profissional já foi violentado pela ordem dos torturadores: "Tira a roupa, comunista". No entretempo, o homem de dorso despido abriga a consciência bombardeada pela lembrança da defesa da lógica do rastilho - um vai primeiro na ação violenta, outros virão atrás, e o personagem começa a ser impulsionado por Grissa a pensar nas decisões a tomar: esquecimento ou vingança. Mas a inscrição de cicatrizes na pele antecipa, de certa forma, o caminho a tomar, quando Graziela, a amante do ditador, procura por Mariz no seu quarto de empregado da casa do ditador. No desespero do precário encontro amoroso, descobre, ao acariciá-lo, a marcas de tortura. O inferno da cena intermediária - o flashback da tortura - já se converteu no inferno da cena anterior e posterior, em que paira a lembrança do ato de revelar o que não podia ser revelado. No corpo expõem-se a dor e a nódoa.

Assim, a contaminação de tempos, ou a exploração cênica de uma temporalidade em suspensão, produz-se quando a dramaturgia cria hiatos no enredo para que a memória retorne [9] . E aí estão as cenas que precedem a derrubada do ditador (tentativas de colaboradores de fazer o ditador renunciar, suas explicações para a decisão do golpe) e as cenas de tortura (em que homens encapuzados produzem a delação de Manito). Quando os hiatos se fecham, a costura é feita através de cenas em que prevalesce o contato físico, produzindo-se o efeito cênico que consiste em aumentar o graus de exposição dos corpos dos personagens. A seqüência de fotos da montagem de 1979, dirigida por Nelson Xavier, com Sérgio Brito, Angela Leal, Tonico Pereira e Dinorah Brillanti [10] , pode nos auxiliar na hipótese de que a exposição cênica instaura a simultaneidade temporal, depurando a referência da pura crônica histórica.

Esta hipótese indica que nossa análise afasta-se, de certa forma, da perspectiva predomina nas principais leituras da obra de Vianninha. Nestes estudos, Papa Higuirte é a súmula de preocupações do jovem intelectual Vianninha na época da escrita da peça. No texto, o autor pretenderia, em primeiro lugar, pensar a resposta do populismo latino-americano face aos modelos internacionalistas de industrialização; em segundo lugar, indicaria suas dúvidas sobre a opção de resistência política feita na forma da luta armada e de formação de vanguarda revolucionária, dando forma dramatúrgica à discussão travada na esquerda brasileira a partir da determinação tática do PCB de mobilização, união e mobilização da classe operária e outras forças democráticas contra a ditadura [11] . Uma vez que a peça, logo depois de escrita em 1968, foi proibida pela Censura Federal, o debate por ela proposto teria ficado anacrônico quando de sua encenação onze anos depois e "o espetáculo (...) não teria conseguido recuperar as questões presentes no momento de sua escrita" [12]

Interessados que estamos na máquina cênica e não na cartilha política, voltamos às fotos e ao texto para lançar a percepção segundo a qual o espetáculo cria uma temporalidade perfeitamente comunicável ao o espectador do presente. A comunicabilidade instalada pelo estreitamento físico na cena dá ao passado proximidade e distância. [13] A poética da revolta salta das falas para a mínima coreografia executada pelos personagens. Assim, o corpo cansado e doente do velho ditador contrapõe-se aos corpos vigorosos de Graziela e de Mariz. O passado e o presente se cruzam no sexo sem arroubos e sem performances acrobáticas que Papa Higuirte mantém com Graziela, em que ambos estão enfraquecidos pela solidão do estado desenraizado do exílio; na chula desafiadora que Papa Higuirte disputa com seu futuro assassino - balé de gestualidade prenunciadora.

 Antagonista de Papa Higuirte, Mariz, que fraquejara sob a mão dos torturadores no passado, recupera a inteireza de identidade com a conquista da amante do ditador e com a execução desafiante dos passos marcados ao redor de ameaçadores bastões. Na dança e no sexo cria-se uma bela sincronia - há um tempo anterior misturado em medida igual com o tempo do agora nos corpos que dançam, nos corpos que se exibem sensualmente e, por isso, o presente,  prestes a se tornar irremediável, ganha significação de espreita, de espera, que coloca a platéia na mesma dimensão de temporalidade dos personagens e faz os presentes se multiplicarem e se completarem, deslocando e reatualizando as mensagens para o aqui e agora da encenação.

A decadência e seu antípoda frustrante - a aposta no futuro como tempo zero após o acerto de contas - condensam a visada poética de Vianninha em Papa Higuirte. Vem dali, do que acontece aos olhos dos espectadores, pousados na linha quebrada das cenas, o chamado para se estabelecerem novas conexões com a cronologia da sucessão histórica. Assim, principalmente através de movimentos intensos de contato físico entre os personagens, a teatralidade abre a perspectiva de se compartilhar a simultaneidade e de se refletir sobre como as formas de se atuar criticamente na a sociedade.

Na peça Corpo-Delito na Sala de Espelhos. Auto e Confrontações [14] , de José Cardoso Pires, o palco de exposição da história constrói-se por ampliação da visibilidade, por estreitamento da distância entre a platéia e os atores, desfazendo os limites do proscênio, como se a querer dizer "Vejam bem, toquem estes senhores, toquem naqueles que reivindicam para si as mãos limpas, que dizem ter agido sob ordens e utilizado técnica asséptica nos atos de violência política sob ordens." A lógica desta dramaturgia, que a encenação de Fernando Gusmão procurou confirmar, é a de provocar o assombro como sentimento que leva ao interesse [15] . Assombrar será a forma de desconstruir a banalidade da PIDE, que, depois do 25 de Abril em Portugal, tentou-se disseminar na opinião pública [16] . No período da Ditadura porém, lembra o ensaísta Eduardo Lourenço, a polícia política tinha na sua capacidade de impregnação sem alardes no cotidiano de Lisboa, a razão de seu sucesso: "A Pide foi uma repartição, situada num local anódino mas bem central da Lisboa oitocentista, todos os dias passejada pelo lisboeta, paredes meias com embaixada e teatro. Entre o mundo da Pide e a cidade (e o cidadão) a osmose era perfeita". [17]

Então, como tornar o trivial assombroso? Exacerbando a trivialidade de modo a torná-la incomum, assustadora. Atravessando a parede a meias, demolindo a parede a meias. Trazendo o lado de lá - o lugar da violência - para o lado de cá - o lugar onde prevalesce a revolta e a vontade de justiça. A longa rubrica inicial parece indicar que o teatro gostaria de se tornar um espaço semelhante a uma sala de exposição [18] . O autor prevê que no hall de entrada da sala de espetáculos, os espectadores se deparem com "uma escultura de museu de cera e em tamanho natural (alguém de rosto oculto, chapéu, óculos escuros, gabardina de gola levantada) com todo o hiper-realismo, a pormenorização e o brilho funerário que caracterizam as obras de Duane Hanson ou de Madame Tussaud. Um esbirro, sem dúvida. E não seria certamente grande risco chamar-se-lhe O Homem da Secreta" [19] .

Mas, à medida que o público vai-se acomodando na platéia do teatro, percebe que o homem de cera ganha vida desdobrando-se em duas figuras de carne e osso que, postadas na frente do palco, olham os espectadores de frente. Planeja-se puxar o público para dentro dos fatos narrados: um terceiro agente levanta-se no meio da assistência e de pistola em punho dá início a um inesperado movimento de perseguição. Com a correria imprevista, abre-se a cortina e o público se depara com um "labirinto de planos" - uma sala de tortura em plena preparação cenográfica, outras instalações interiores do prédio central da Pide, um apartamento de encontros de Sigla, um agente, e sua amante Nina.

As formas de cera ganham movimento em corpos fantasmagóricos. Sua entrada no espaço cênico torna todo o espaço palco-platéia uma imensa sala de tortura. Assim, nas cenas iniciais da primeira parte acontece o inesperado seqüestro do espectador para dentro das paredes da PIDE. O prisioneiro que tentara escapar, provocando os primeiros movimentos do espetáculo justifica em off as razões por ter-se refugiado num teatro e narra as formas de violência que já sofrera. A iluminação controla a entrada em cena do público que recebe de frente a luz do holofote destinada aos interrogados. Quando a luz é desviada para o prisioneiro, a voz em off segue seu relato no passado, enquanto o Agente Sigla, conduz a marcação, ora dirigindo-se para o interrogado em cena, ora parecendo resumir para si e para todos as condições impostas a quem cruza a fronteira dos espaços da violência: "Ninguém, seja quem for, volta a ser a mesma pessoa depois de ter passado àquela porta. Ninguém. Resista, entregue-se, faça o que quiser, ninguém volta a ser o que era. Nem os próprios agentes, porque não? Seja qual for o seu grau, todo agente deixou de ser o que era porque perdeu o passado logo que entrou aqui. E essa é a regra desta Casa, perder o passado. (Volta-se para o prisioneiro:) Entendido?" [20]

Ainda estamos, portanto,  na sala de exposições pensada por Benjamin para abrigar o teatro brechtiano, mas este modo de conceber a teatralidade, que inclui e exclui o espectador da impregnação do pathos do drama, logo será substituído por um novo modo de apresentação da realidade presente, cujo modo de operação assemelha-se a de um laboratório com aparelhagem de alta definição da imagem. Vigiar os personagens do universo pidesco frente a frente seria um modo de impedi-los de conseguirem o que desejam - passar despercebidos, protegidos pelo tempo que escorre lento na rotina da repressão.

São dois os pólos sobre os quais recaem as lentes dramatúrgicas hiperdefinidoras de Cardoso Pires [21] . Em um deles, a engrenagem da tortura inclui momentos em que a vida comezinha dos agentes é a matéria principal (o jogo de futebol, as doenças familiares, a espera por reconhecimento e condecorações por serviços prestados) e momentos de violência trazida paulatinamente ao palco - em relatos de voz gravados e depois em cena de tortura cruel. Situada ao final da primeira parte do espetáculo, a aplicação da tortura repete o terrível ritual de inquirição que se vale da obtenção de um estado entre a lucidez e a perda da resistência do prisioneiro pela exaustão corporal. O agente Sigla sintetiza mais um princípio de seu sórdido trabalho, que segundo ele mesmo preserva a tradição da Inquisição Católica - obter a verdade através do tormento: "(...) Faz parte de todas as polícias corromper o corpo. Despersonalizar, destruir a identidade e a imagem pela corrupção do corpo. E a polícia também tem o seu corpo, com todos os vícios, os orgulhos e com toda a imagem que a fazem vencer. Aprendemos, sabemos técnicas que já vêm de longe..." [22]

No outro pólo, a vida suja cola-se na pele do agente destacado, que vê sua vida amorosa desarranjada na proximidade do esgotamento que a execução de ordens ordinárias lhe provoca. Enquanto de um lado tudo se ajusta à repetição, de outro há alguém, Nina, a amante do agente da PIDE, que quer interromper o enredo estabelecido. O tempo do teatro íntimo não está mais a salvo do tempo dos acontecimentos históricos. Ao mesmo tempo em que o casal se desacerta, a revolução caminha lá fora.

Assim, numa sucessão de cenas que se intercalam à exaustão, distribuídas em Parte 1 e Parte 2, separadas pelo evento da Revolução dos Cravos, ficam todos encarcerados na sua própria carcaça pré-estabelecida, ainda que cobertos pela máscara branca no rosto ou agasalhados pela comesinha condição de personagens secundários da repressão política. O efeito esperado seria o de torná-los assustadores na sua aparente imobilidade, na sua ignóbil parecença com gente comum. Num palco povoado de forma predominantemente realista [23] , há intervenções épicas sinalizadoras com painéis luminosos, mas a dramaturgia acaba optando por centrar sua via de contato com a temporalidade do acerto de contas nos personagens que compõem o casal. Em Nina, portanto, se deposita o foco principal da estrutura dramática que, tal como numa peça de tese, deseja pesquisar lentamente a fisiologia de uma consciência se fazendo, combustando internamente e intimamente o estado de revolta que se dirige não só contra o algoz, com quem compartilha a vida amorosa, mas contra todos os agentes da repressão política.

Ao apresentar o texto ao encenador Fernando Gusmão, José Cardoso Pires enfatiza que sua peça transfere o conceito de delito para um tempo anterior à vitimização, logo para a ação de torturar: "E Corpo-Delito, um corpo que é simultaneamente o delito e não Corpo de Delito, corpo vitimado, peça do processo judicial". [24] Assim, estariam em evidente delito os corpos dos agentes policiais que praticam a violência contra os prisioneiros. O sujeito em ação abjeta passa a ser o réu principal do "processo criminal" que, de certa maneira, a dramaturgia quer instaurar. O contraste entre a cara limpa do Inspector Sigla e a máscara branca dos demais agentes em cena vem reforçar a idéia de que também na aparente normalidade pode esconder-se a monstruosidade.

Há um interesse de tribuna claro na peça: discutir o processo de humanização dos carrascos levado a efeito pela Comissão de Extinção da PIDE, na palavra de altas patentes do Exército português após a Revolução dos Cravos. A dramaturgia deve dar conta, então, de contradizer o provérbio: "Não se deve, nunca se deve remexer o passado. Aquele que o recorda, perde um olho", tomado por José Cardoso Pires como consenso a ser desmontado, em artigo de alta virulência - Os Pides: uns subordinados como outros quaisquer - publicado dois anos antes da encenação da peça [25] .

O projeto do texto teatral de Cardoso Pires e da encenação de Fernando Gusmão é, em suma, dar vida de carne e osso aos bonecos de cera, tirá-los de seu esconderijo e torná-los odientos em sua medíocre barbárie. A contrapartida seria fazer a platéia entender que é urgente dar vida a um outro boneco. Desta feita não de cera, mas de pano - um Arlequim, que durante quase toda a encenação estará no apartamento do casal como um espectador privilegiado de suas confrontações. O Arlequim aparece na primeira rubrica que descreve a casa de Nina - "Casa de Nina. Poster de Che Guevara na parede. Uma serpentina pendurada no tecto, o Arlequim sentado aos pés do divã. Nina termina ao espelho uma toilette estilo "Anos Vinte". Poses teatrais, abraço alongado numa boquilha imaginária." [26] . Qual uma marionete silenciosa, o Arlequim contracena por várias vezes com Nina, que parece encontrar no boneco de pano um confidente astuto, no melhor estilo da comedia dell arte: beija-o, pede-lhe emprestada a mascarilha, faz-lhe revelações irônicas, oferece ao Arlequim o carinho que deveria estar endereçado ao amante e os desabafos onde se situam os primeiros e determinados momentos de revolta com a atitude do Inspector Sigla:

"Nina: Desculpa, sempre pensei que a Polícia e os juízes fossem da mesma panelinha. Mas, pronto, peço desculpa. Carrasco Midões, papa missas e sermões... Carrasco Midões, calabouço e palavrões... Carrasco Midões tem bentinho nos colhões..."

Estrondo do ponteiro

Sigla: Chega! É demais! É de arrasar!

Nina: Modos... Tenhamos modos...

Disse isso abraçada ao Arlequim.

Como se falasse para ele, muito a sós. [27]

 

Aos poucos, à medida que se deteriora o ambiente no apartamento-esconderijo onde Nina e Sigla se encontram, o Arlequim fica jogado a um canto da sala, tansformando-se em silenciosa testemunha. Em uma das cenas finais, na seqüência que se segue ao primeiro dia após 25 de abril, durante uma discussão do casal, que passa a limpo a sua história amorosa, ao mesmo tempo que pensa as possíveis saídas desta nova clandestinidade a que estarão submetidos se não se entregarem à nova ordem democrática, Nina alcança o boneco, já não precisa dele para confortá-la. A decisão do acerto de contas está tomada. Diz a rubrica:

"Descobre o Arlequim e lança- o para fora da sala. (Sigla como sempre ignora a existência do Arlequim") [28] .

 

A última aparição do boneco ocorre enquanto o Inspetor Sigla escreve a carta que deixará a Nina explicando a sua fuga. São duas aparições prenunciadoras:

"No écran projeta-se o fotograma do Alequim ao mesmo tempo que a voz off de Sigla acompanha a redação da carta"

"O fotograma do Arlequim apaga-se no momento em que mete a carta no envelope. Sigla vai a seguir lá dentro buscar mais roupa; traz também o revólver. Dirige-se ao telefone, junto do qual está a agenda, aberta. Enquanto marca o número e atende a resposta, torna a projetar-se o fotograma do Arlequim e ouvem-se, em off, apontamentos desgarrados da carta de Sigla [29] .

 

Descendente dos Zani da Comédia dell Arte, que encarnam, entre outros papéis, o daqueles que negam os lugares fixos e se introduzem, mesmo quando não convidados no lugar que os expulsa, o Arlequim, reaparece aqui para nos lembramos de outro personagem, o diabo sabido e alegre de Gil Vicente e de Almada Negreiros. Dar vida a este novo Arlequim, não ignorá-lo nem jogá-lo para fora da cena talvez seja, na perspectiva de José Cardoso Pires, a possibilidade de encarar o tempo presente e desmontar as amarras que nos paralisam quando nos instalamos no confortável estado de indiferença ou somos acossados pelo terrível sentimento do medo.

 



[1] De autoria de Isabela Perrota, da Hybris Design, o cartaz do IX Seminário Internacional da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses baseia-se em trabalho de Almada Negreiros para a encenação de O Auto da Alma, que consta do Catálogo da Exposição O Escaparate de Todas as Artes ou Gil Vicente visto por Almada Negreiros, apresentada no Museu Nacional do Teatro, em Lisboa, em setembro de 1993.

[2] Oduvaldo Vianna Filho é autor de 16 textos de teatro, artigos teóricos sobre teatro e cultura e roteiros para televisão. Trabalhou como ator no teatro e no cinema.

[3] José Cardoso Pires  tem vasta obra de narrativa de ficção - romances, novelas contos, crônicas -  e extensa produção de textos de intervenção, mas apenas dois textos teatrais: O Render dos Heróis , escrito em 1960 e encenado em 1963 no Teatro Moderno de Lisboa e Corpo-Delito na Sala de Espelhos, de 1979, encenado no mesmo ano pelo Grupo 4, ambos com direção de Fernando Gusmão.

[4]  Peter Zondi, Teoria do Drama Moderno [1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo, Cosac&Naif, 2001, p.76.

[5] Walter Benjamim, Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985, p.79.

[6] Anne Ubersfeld, Lire le Théatre. 4e. édition. Paris, Éditions Sociales, 1982, p. 140.

[7]  Júlia  Kristeva, Sentido e contra-senso da revolta. Poderes e limites da Psicanálise I. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, p. 24.

[8] Ficha Técnica: Papa Higuirte; Autoria: Oduvaldo Vianna Filho; Direção: Nelson Xavier; Cenografia: Paulo Mamede; Figurino: Mimina Roseda; Expressão Vocal: Maria da Glória Beuttenmuller; Música e Direção Musica: David Tygel; Expressão Corporal: Angel Vianna; Iluminação: Jorginho de Carvalho; Assistente de Direção: Gedivan; Interpretação: Sérgio Brito (Papa Higuirte); Tonico Pereira (Pablo Mariz); Angela Leal (Graziela); Nildo Parente (Peres de Mejía); Carlos Alberto Baía (Manito); Dinorah Brilhante (Grissa); Helio Guerra, Paulo Barros, Miguel Rosemberg (Encapuzados). Estréia: Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro, julho de 1979). Fonte: Programa da peça. CEDOC/FUNARTE.

[9] A valorização do virtuosismo formal alcançado por Vianninha foi uma das tônicas da crítica do espetáculo: "Manejando com aguçado sentido de teatralidade, flash-backs, passado e presente, cenas que se alternam ou até se cruzam, Vianninha jamais perde o fio da meada ou controle das técnicas dramatúrgicas, Um exemplo de autor no auge da maturidade". MARINHO, Flávio. Papa Higuirte: América Latina em cena. In: O Globo, 01/7/1979. Fonte: CEDOC/FUNARTE.

[10] A documentação iconográfica de Papa Huiguirte consultada pertence ao acervo do Arquivo Multimeios da Divisão de Artes Cênicas do Centro Cultural São Paulo.

[11] Esta leitura fortemente referenciada é desenvolvida principalmente nos livros Oduvaldo Vianna Filho, de Maria Silvia Betti. São Paulo: Edusp, 1997 e no estudo Vianninha. Um dramaturgo no coração de seu tempo, de Rosângela Patriota. São Paulo: Hucitec, 1999. É da historiadora Rosângela Patriota a síntese mais contundente: "A construção temática de Papa Higuirte teve como pressuposto a necessidade de pensar a própria experiência latino-americana. Sob a égide da ordem e da modernização, a prática de poder dos governos militares(ou governos sustentados por eles) utilizou procedimentos autoritários. A peça revelou ainda alguns caminhos percorridos pelos que atuavam no campo da esquerda, sobretudo considerando que o advento da Revolução Cubana, a vinda de Ernesto "Che Guevara"para a América Latina e a teoria do "foquismo"de Régis Debray suscitaram atuações que se tornaram uma constante. Ao lado deste as experiências e em oposição a elas, a interpretação dos Partidos Comunistas conclamava à resistência e à necessidade de consolidar e acumular forças para a transformação democrática, que deveria exorcizar os fantasmas da opressão: o populismo, os governos militares, o alto grau de exploração e pauperização das sociedades latino-americanas". (Op. Cit., p. 129)

[12] Rosângela Patrota, op. cit., p. 129.

[13] Estamos mais próximos da visão aguda do crítico Yan Michalski, que defendendo a opinião de que Papa Higuirte "é a primeira - pelo menos a primeira importante - eminentemente latino-americana", chama a atenção para o fato de que "a peça permanece profundamente latino-americana, porque num golpe de grande maestria dramatúrgica Vianninha conseguiu fazer com que os seus personagens fossem não apenas sínteses didáticas de forças políticas, mas também seres humanos em carne e osso, dotados de características psicológicas magnificamente plausíveis; características estas marcadas por um denominador comum, que decorre precisamente da sua origem continental comum." In: MICHALSKI, Yan. Jornal do Brasil, 15/7/ 1979. Fonte: CEDO/FUNARTE.

[14] Ficha Técnica: Corpo-Delito na sala de Espelhos. Auto e confrontações. Autoria: José Cardoso Pires; Encenação: Fernando Gusmão; Cenografia, Direção Plástica; Assistência de encenação: Luís Suarez; Movimentação do Corpo: Vasco Wellenkamp e Lúcia Lozano; Montagem sonora: Moreno Pinto e José Ribeiro; Interpetação: Lia Gama (Nina), Mário Jacques (Inspector Sigla); António Montez (Agente A); Rui Mendes (Agente B); Carlos Gonçalves (Agente C e Chefe da Brigada), Linda Silva (Agente Tralalá), Helena Izabel (Agente Escuta), Carlos Santos (Médico Agente), Basconcelos Viana (Fotógrafo Agente), Morais e Castro (Juiz Midões), António Rama (Prisioneiro), António Anjos (Rôlhas), Adelaide Ferreira (Jovem Universitária), Alexandre Melo (Soldado da M.F.A), Manuel Mendonça (1º Informador), Alexandre Melo (2º Informador), António Anjos (3o Informador), António Garcia, Carlos Alberto, João Moura(Coro); Dispositivos: José Pessoa; Iluminotécnica: António Mileu; Contra-regra: Manuel Mendonça; Execução de Montagem: José Verdades, Joaquim Batista, Manuel da Costa Soares,; Escultura do átrio:  Ferreira de Almeida; Ajudante de Luzes: Octávio de Souza; Administração: Luís Cipriano; Publicidade e Direção de Cena: Rui Mendes; Secretário da Companhia: J. Silva Lourenó; Avisador: António Luís; Bilheteira: Ana Paula; Dispositivos da 2ª parte do espetáculo: João Abel Manta (In: Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar) Estréia 24 de maio de 1979 no Teatro Aberto, Lisboa, Fonte: Programa da Peça. Acervo do Museu Nacional do Teatro, Lisboa.

[15] Walter Benjamin, op. cit., p.81.

[16] Os bastidores da PIDE serão retomados por José Cardoso Pires no romance A Balada da Praia dos Cães, de 1982, que recebeu grande prêmio de Romance e de Novela da APE e foi adaptado ao cinema por Fonseca e Costa.

[17] Eduardo Lourenço, in: José Cardoso Pires, Corpo Delito na Sala de Espelhos. Lisboa, Moraes Editores, 1980, p. xii)

[18] A documentação iconográfica consultada a respeito do espetáculo Corpo Delito na Sala de Espelhos pertence à edição da Martins e Editora (fotos em preto e branco) e ao Acervo do Museu Nacional do Teatro, em Lisboa (fotos coloridas).

[19] José Cardoso Pires, op. cit, p.21.

[20] Id., ibd., p.28.

[21] O crítico Carlos Porto chama a atenção para o principal componente desta polaridade estrutural do espetáculo: "o contraponto entre o espaço da tortura e o espaço do amor que assume formas sadomasoquistas com as quais o inspector compensa as suas relações com o mundo prisional". In: Diário de Lisboa. Revista Sete Ponto Sete, 1 a 7 de junho de 1979, p.7. Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa.

[22] Id., ibid, p.92.

[23] Alguns críticos apontam uma dificuldade da encenação justamente a harmonização das formas de realismo que a dramaturgia propõe. Segundo Tomaz Ribas, "a construção dramatúrgica oscila entre a narrativa novelesca realista e a narrativa dramática épica", sendo que nessa vertente a opção pela linguagem cênica expressionista teria provocado uma perda da qualidade didática do texto. (In: A Capital, 29/5/1979, p. 18. Fonte: Hemeroteca da Cidade de Lisboa). Na opinião de Carlos Porto, "(...) É através das personagens do coro, das máscaras pintadas usadas pelos pides (excepto o Inspector), da ambientação sonora (por exemplo as pancadas que se ouvem nos bastidores e que o Inspector vai ouvir depois de tudo passado) que o expressionismo principalmente surge, contrastando, porém com os aspectos realistas e até naturalistas da encenação. Esta amálgama de estilos não me parece suficientemente mastigada para ser coerente (...)". (In: Diário de Lisboa: Sete Ponto Sete, 1 a 7 de junho de 1979, p. 7. Fonte: Hemeroteca da Cidade de Lisboa).

[24] José Cardoso Pires, "Alguns excertos de uma carta de José Cardoso Pires dirigida a Fernando Gusmão, a propósito da peça." In: Programa de Corpo-Delito. Na sala de espelhos. Fonte: Museu Nacional do teatro.

[25] OPÇÃO. Lisboa, 1/3/1977.

[26] José Cardoso Pires., op. cit, p. 35.

[27] Id. ibid,  p. 43.

[28] Id. Ibid,  p. 122.

[29] Ibidem, p.158.