Gil Vicente em cena: 1998-2002

O teatro e a pólis: Shakespeare e Londres

Marlene Soares dos Santos
UFRJ

O famoso diretor inglês Peter Brook inicia o seu livro O teatro e seu espaço com as seguintes palavras: "Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu" 1 . Não é difícil demonstrar a veracidade desta afirmação: desde a Idade Média, temos o teatro itinerante, quando os atores se apresentavam ao ar livre - nas praças, feiras, jardins e pátios das igrejas - ou em ambientes fechados - nas universidades, prédios públicos, mansões e castelos. Estes espaços vazios podiam estar em terra firme ou a bordo, como no caso das naus portuguesas dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, segundo a pesquisa de Carlos Francisco Moura 2 . Hoje em dia, tanto o teatro de rua como o teatro na rua - que pode ser encontrado nos parques como o Parque Lage carioca, o Hyde Park londrino e o Central Park nova-iorquino - continuam explorando a tradição de acontecer em palcos nus. Assim como o teatro marítimo português, há representações teatrais em movimento que se realizam tanto nas barcas como nos trens do metrô e até nos elevadores, segundo a prática de Augusto Boal.

Entretanto, Steven Mullaney, um crítico norte-americano, argumenta:

 

O drama, ao contrário da poesia, é uma arte territorial. É uma arte de espaço tanto quanto uma arte de palavras, e que requer um lugar próprio, todo seu, dentro ou acerca de uma comunidade [...] De todas as artes, o drama é a mais social, na verdade, a mais metropolitana: é político no sentido mais exato da palavra, intimamente relacionado com a pólis da qual ele depende e, ao mesmo tempo, recria de uma forma ou de outra. 3

 

Também não é difícil comprovar essa asserção: a tragédia grega está intimamente associada a Atenas assim como o drama shakespeariano está intimamente relacionado com a Londres elisabetana; da mesma maneira que não se pode separar nem a Broadway de Nova Iorque, nem a Comédie Française de Paris e nem o West End da Londres contemporânea. O teatro requer público para a sua sobrevivência e este só pode ser encontrado em cidades prósperas e populosas; e, sendo a mais social das artes, ele necessita de um contexto sócio-político-cultural em que possa ser inserido e estimulado a criar, propor, combater e dialogar.

E com que espaço cênico ficamos? Com "qualquer espaço vazio" - o espaço temporário - ou com "o lugar próprio" - o espaço permanente? Felizmente, é o próprio Peter Brook que, em A porta aberta , nos recomenda cautela ao interpretar as suas palavras anteriores: "não se deve tomar tudo que está no livro como dogma, nem como classificação definitiva, tudo está sujeito ao acaso e à mudança" 4 . E a mudança de um teatro itinerante para um fixado em um lugar todo seu em uma grande metrópole é sugerida em Hamlet . Quando Rosencrantz anuncia que uma companhia de atores está a caminho do castelo de Elsinore, o príncipe pergunta: "Que atores são esses?" Ao ouvir que são "os trágicos da cidade", ele estranha: "Por que estão viajando? Ficar em casa seria mais útil para a sua reputação e para seu proveito" 5 .

Podemos deduzir que, para "os trágicos da cidade", "ficar em casa" significava representar em "um lugar todo seu" duplamente vantajoso em termos de fama e de dinheiro. (É interessante lembrar que a palavra que designava "teatro" em inglês seiscentista era playhouse - "a casa de representar".) Ao príncipe, viajar parece um retrocesso na medida em que depois de conquistar um lugar permanente, erigir um edifício, contar com um público fiel e pagante durante seis dias na semana em uma cidade densamente habitada e ávida de divertimentos, os atores, por conta de outras companhias rivais, vissem-se obrigados a enfrentar todos os percalços das incertas e inseguras turnês.

Graças às trupes itinerantes, a tradição teatral inglesa se desenvolveu e se consolidou. O lugar preferido dos atores era a cidade de Londres, que lhes proporcionava os maiores lucros. Cada vez mais freqüentemente, eles se apresentavam lá, nas arenas de espetáculos de animais, nos pátios das estalagens e nas tabernas, passando o chapéu no final das peças e atentos à remuneração, que dependia da maior ou menor generosidade dos espectadores. Então, um dia, alguém percebeu que os londrinos gostavam tanto de teatro que estariam até dispostos a se locomover até ele e pagar para vê-lo. A primeira tentativa se deu em 1567 com o Red Lion e não foi bem-sucedida; quase dez anos mais tarde, em 1576, foi construída a primeira casa de espetáculo inteiramente dedicada à arte de representar e que se chamou - muito apropriadamente - The Theatre. Foi um marco na história do teatro em geral e do teatro elisabetano em particular. Como nos lembra Stephen Orgel, "até este momento o conceito de teatro não incluía o sentido de lugar [...] De repente, o teatro se tornou uma instituição, uma propriedade, uma corporação [...] se tornou real [...] era uma localidade, um edifício, uma posse - uma parte visível e estabelecida da sociedade" 6 . Entretanto, como a trupe de atores de Hamlet nos lembra, o teatro elisabetano nunca deixou de ser "qualquer espaço vazio" que, no presente caso, era um "palco nu" em algum aposento do palácio real da Dinamarca; mas que, após a representação, deixava de ser palco. Uma concepção de espaço cênico não suplantou a outra.

Da segunda metade do século XVI em diante, Londres se desenvolveu de maneira surpreendente: no final do século já era a maior cidade não só da Inglaterra como da Europa, com uma população de aproximadamente duzentas mil pessoas. A cidade propriamente dita ainda era cercada - ao norte, leste e oeste - pelas muralhas construídas pelos antigos romanos com os sete portões originais e outros três que lhe teriam sido acrescidos mais tarde; o rio Tâmisa servia como uma muralha natural ao sul. Tais muralhas não serviam mais para a defesa da cidade; tinham outra função: delimitar a área que estaria sob o controle das autoridades - o prefeito e o seu Conselho Administrativo. Aqui se concentravam os centros comerciais e financeiros, com o maior mercado e o maior porto da nação, estabelecimentos educacionais como as Inns of Court - onde se preparavam os futuros advogados -, igrejas, a arquitetura impressionante da Catedral de São Paulo, da Torre de Londres, da Bolsa de Comércio, dos prédios das diversas guildas, da Ponte de Londres com lojas e casas residenciais. Contando os londrinos com o mais alto índice de alfabetização da Inglaterra, as tipografias e os livreiros ali prosperavam com a venda de exemplares da Bíblia, contos populares, poemas, baladas, panfletos religiosos, peças, etc. Devido a um excesso de população havia uma parte bem menos atraente dentro da própria cidade: a dos pobres, com ruas estreitas, sujas, sem esgoto e com moradias tão mal construídas, invadindo de tal modo as estruturas umas das outras que o sol não conseguia penetrar nelas; o mau cheiro podia ser sentido a léguas de distância alcançando até as zonas privilegiadas. Além dessa área claramente delimitada, a grande Londres, por assim dizer, também compreendia a corte - o centro do poder - com suas riquezas - e os subúrbios - com suas misérias. 7 

A corte se encontrava onde a rainha Elisabete e, mais tarde, o rei Jaime I estavam: a rainha, mais do que o rei, mudava-se de um lugar para outro durante o ano. Em geral, para os palácios de Richmond e Greenwich durante a primavera; Windsor e Hampton Court durante o outono; Whitehall no inverno e, no verão, ela viajava pelo país, hospedando-se nas mansões e castelos dos nobres. Estes deslocamentos tinham várias funções: não só a rainha economizava as despesas de manutenção dos seus palácios durante dois ou três meses, como a sua ausência também permitia que eles fossem limpos para a próxima temporada; o mais importante, porém, é que ela também tinha a oportunidade de exibir a sua "visibilidade privilegiada" na expressão do crítico Stephen Greenblatt, que explica que "um monarca sem um exército permanente, sem uma burocracia altamente desenvolvida, sem uma extensa força policial" era "um governante cujo poder se constituía em celebrações teatrais da glória real e em violência teatral desferida contra os inimigos daquela glória" 8 . Elisabete se mostrava ao povo em todas as ocasiões possíveis - festas, comemorações, paradas - e de todas as maneiras possíveis - a cavalo ou em uma liteira, na sua carruagem ou na sua barcaça - perpetuando, assim, a tradição iniciada pelos seus antecessores já que "os alicerces da fundação da monarquia dos Tudors foram levantados sobre o conceito da suntuosidade principesca" 9 . As exibições de poder e status por parte do rei e da corte se constituíam em eficientes instrumentos de propaganda para os públicos interno e externo.

É importante ressaltar a consciência que os monarcas ingleses possuíam da espetaculosidade do poder porque isso os aproxima do teatro, do qual eles se tornam ardentes defensores. Como veremos mais adiante, o teatro popular elisabetano cresceu e se desenvolveu sob a proteção da corte. Elisabete, em um comentário que se tornaria famoso, teria observado que os monarcas se encontravam permanentemente em um palco, à vista de todos. Em estados absolutistas como o elisabetano, e, mais tarde, o jacobino, a atuação dos governantes tem muito a ver com a arte de representar. Arte esta praticada à perfeição pela rainha: "uma atriz nata", que desempenhava diversos papéis de acordo com os roteiros que ela mesma escrevia e dirigia. 10 Ela soube fazer do seu talento histriônico um instrumento poderoso da arte de governar. Já o seu sucessor, ator medíocre, plantou as dissensões que iriam afetar profundamente o teatro e o trono ingleses: a vitoriosa revolução puritana fechou os teatros em 1642 e condenou à morte o seu filho Carlos I em 1649.

A corte era, definitivamente, marcada por uma extrema teatralidade em que todos representavam; monarcas e cortesãos tinham à disposição uma série de livros que lhes ensinavam não só os princípios de bem governar, mas, também, sugestões de auto-aprimoramento e regras de comportamento e etiqueta. Estou-me referindo a obras como O príncipe de Niccolò Macchiavelli (escrito em 1503 e publicado em 1536), O cortesão de Baldassare Castiglione (terminado em 1518, publicado em 1528 e traduzido em 1561) e The book named the Governor de Sir Thomas Elyot (1531). De acordo com Stephen Greenblatt

 

a teatralidade no sentido de disfarce e de auto-apresentação histriônica surgiu de condições comuns a quase todas as cortes renascentistas [...] Os manuais de comportamento cortês que se tornaram populares no século XVI são essencialmente manuais para atores, guias práticos para uma sociedade cujos membros estavam quase sempre no palco. 11 

 

Para além das fronteiras da cidade - as muralhas romanas e o rio Tâmisa -, ficavam os subúrbios que eram conhecidos pelo sugestivo nome de " the Liberties ". Na complicada jurisdição da época, eram áreas que escapavam às autoridades de Londres - o prefeito e os membros do Conselho Administrativo -, mas que não eram exatamente submissas nem à Igreja nem à corte; o que não impedia que, ocasionalmente, ambas se arrogassem a prerrogativa de impor a lei dependendo de cada caso. Nessa terra de ninguém, estavam alojados os leprosários, os hospícios, os asilos dos pobres, os hospitais e as prisões - edifícios cujos nomes, populares na época, ficaram imortalizados graças aos dramaturgos elisabetanos. Havia, também, os edifícios associados ao prazer ou ao pecado dependendo da visão de quem a eles se referia: as casas de jogo (de cartas, dados ou xadrez), as arenas menores para brigas de galo, as arenas maiores para lutas de cães com ursos e touros, tabernas, bordéis e... casas teatrais. A cidade expulsava de suas fronteiras tudo que a ameaçava de contaminação - da doença ao teatro. A sua periferia era habitada não só por aqueles que, por força de suas condições, tinham de permanecer confinados, como os doentes e os presos, mas também por aqueles que só ali podiam gozar um pouco da liberdade que lhes era vedada na cidade. Acima de tudo, os subúrbios acolhiam os excluídos da sociedade altamente hierarquizada da época - criminosos de várias espécies, assassinos fugidos, salteadores de estradas, ladrões de bolsa, refugiados da justiça, jogadores inveterados, soldados desmobilizados, desempregados, vagabundos, bêbados, mendigos, aleijados, leprosos, loucos, doentes, prostitutas, alcoviteiras, taberneiros e... os homens de teatro: os donos, os dramaturgos e os atores.

Os homens de teatro, como não possuíam uma categoria social definida, estavam sujeitos a uma lei de 1572, denominada Lei de Punição de Vagabundos, Patifes e Pedintes Inveterados. As autoridades - civis e eclesiásticas - da cidade de Londres não se faziam de rogadas para aplicar a lei aos infratores e marcar-lhes com ferro em brasa um "V" de vagabundo no dedo polegar. As objeções eram de todos os tipos - sociais, econômicas e morais. O teatro era acusado de dar mau exemplo porque desrespeitava a Lei do Vestiário, uma vez que homens pobres, sem status social definido, ousavam vestir-se como nobres e reis, e, além disso, também vestiam trajes femininos, o que era imoral; encorajava a desordem e a subversão; afetava a economia porque não só os autores e atores não produziam nada de útil, como também afastavam os aprendizes do trabalho, incentivando a preguiça, a vadiagem e a perda de tempo; o dinheiro dos cidadãos deixava de ser investido no comércio para o bem de todos e era desviado para mãos de vadios; as peças eram moralmente nocivas porque ensinavam a infringir regras e a desrespeitar leis, induziam ao pecado ao apresentar as ações de homens e mulheres de reputação duvidosa, substituindo a religião pela libertinagem e disputando os fiéis que trocavam a ida à igreja - a casa de Deus - por uma visita ao teatro - a casa do Diabo. Em uma era assolada por epidemias de peste bubônica, o pregador puritano Thomas White em uma famosa diatribe contra os atores na Catedral de São Paulo em 1577 chegou à seguinte conclusão: "se prestarem bem atenção, o que causa a peste é o pecado; e a causa do pecado é o teatro; portanto, a causa da peste é o teatro" 12 . Em tempos de epidemia, os teatros eram sumariamente fechados - não pelas razões morais invocadas pelo pregador, mas sim por medidas sanitá­rias para evitar a propagação da doença; mas, para o desespero das autoridades, eles eram sempre reabertos logo que a saúde retornava à capital.

Para escaparem da prisão e poderem exercer sua profissão proibida em Londres, os atores buscaram proteção na corte junto à rainha e à nobreza. Enquanto a soberana manifestava o desejo de manter a tradição de incluir a representação de peças como parte de suas distra­ções pessoais e das festividades palacianas, alguns de seus súditos pode­rosos se comprometiam a emprestar os seus nomes às companhias teatrais que passavam a ter o direito de usar as suas librés - o que assegurava à gente de teatro um lugar definido na escala social com o conseqüente afastamento das ameaças de prisão. Assim nasceram a Companhia do Conde de Leicester, a Companhia do Almirante, a Companhia do Camarista da Corte etc. Elas se comprometiam a se apresentar na corte ou nas residências da aristocracia todas as vezes em que fossem chamadas; enquanto isso usariam os teatros dos subúrbios para "ensaiarem" e se "aperfeiçoarem". É interessante assinalar que, se no reinado de Elisabete os atores eram patrocinados pela nobreza, no reinado de seu sucessor, Jaime I, eles passaram a ser prestigiados pela própria realeza: a companhia de Shakespeare, a melhor da época, passou a usar o nome e a libré do rei, enquanto a rainha Ana e o príncipe herdeiro Henrique emprestavam seus nomes a duas outras companhias. Podemos aventar a possibilidade de que, na segunda cena do segundo ato de Hamlet , Shakespeare tenha-se inspirado nas relações amigáveis entre a corte e o teatro. O príncipe, enlutado e sombrio, alegra-se com a chegada dos atores que, de acordo com a informação que nos é passada por Rosencrantz, são os mesmos que Hamlet costumava ver com muito gosto na cidade. Depois de lhes dar as boas-vindas, brincar com eles e pedir a um que lhe recite um monólogo, Hamlet se despede deles, recomendando-os a Polônio:

 

Meu bom senhor, poderíeis encarregar-vos de acomodar os atores? Lembrai-vos que devem ser muito bem tratados, pois são o resumo e a crônica de nosso tempo; seria melhor terdes um mau epitáfio depois de vossa morte do que a sua maledicência enquanto estiverdes vivo. 13 

 

Vistos com muita simpatia pela realeza e a nobreza e com total antipatia pela Prefeitura e pela Igreja, os atores passaram a ser o terreno em que o poder real e o poder citadino mediam forças e trocavam hostilidades em diferentes graus de intensidade, pois o confronto aberto e declarado não interessava a nenhum dos dois. A cidade sabia que as áreas das "Liberties" estavam fora da sua jurisdição e, que, além disso, a corte era mais forte; por outro lado, não interessava à corte se incompatibilizar com quem sempre lhe socorria em tempos de necessidades financeiras - tempos que eram freqüentes e necessidades que eram muitas. Havia, porém, uma parte do terreno que era comum a ambas e na qual era possível estabelecer um modus vivendi - a necessidade de vigilância. A prerrogativa real de censura e controle das peças era exercida pelo Master of the Revels (Mestre de Cerimônias) que não só se encarregava de planejar e viabilizar as apresentações das companhias na corte, mas também de autorizar a formação de companhias, o funcionamento dos teatros e ler - e se fosse o caso censurar - todos os textos teatrais antes de serem representados. O momento histórico ditava a maior ou menor severidade com que a prática da censura era exercida. Assim, marginalizado e execrado por um poder, acolhido e protegido por outro, mas vigiado e controlado por ambos, o teatro elisabetano se estabelece e se desenvolve em meio às relações complexas entre a cidade, a corte e os subúrbios.

A situação dos homens de teatro elisabetanos era extremamente ambígua, uma vez que eles se encontravam precariamente equilibrados entre dois mundos - o medieval e o moderno - e seus característicos sistemas de patrocínio - o mecenato e o comércio. Quem lhes oferecia proteção e libré eram os aristocratas, mas quem lhes possibilitava casa e comida era o público pagante. (Não nos esqueçamos de que Shakespeare e os dramaturgos seus contemporâneos trabalhavam para um empreendimento comercial.) Esse público era popular na acepção mais abrangente da palavra, incluindo-se representantes de todas as classes com exceção dos paupérrimos. Então os autores tinham uma responsabilidade muito grande: agradar aos dois patrões - esforço esse que acarretou a mistura do erudito e do popular que caracteriza essa dramaturgia. Entre os espectadores se incluíam as mulheres que, para a indignação dos moralistas e a surpresa dos estrangeiros, eram freqüentadoras assíduas dos teatros. Há uma evidente preocupação em reconhecer e elogiar a presença feminina em algumas peças de Shakespeare e de outros dramaturgos.

A situação geográfica dos teatros é emblemática da ambigüidade que estamos focalizando: ao mesmo tempo que foram empurrados para fora da cidade, eles atraíam espectadores que vinham de dentro dela, atravessando a ponte de Londres ou utilizando o Tâmisa. Nas ocasiões em que eram chamados a representar na corte, em algum castelo ou mansão, os atores tinham de deixar a periferia e cruzar a cidade, às vezes, vestidos a caráter. Os teatros se tornaram uma grande atração turística - cartas, diários e opiniões documentadas atestam o olhar de admiração dos visitantes - ingleses e/ou estrangeiros - que se reportavam ao tamanho e à beleza dos prédios (o teatro Globe de Shakespeare era um dos mais elogiados) e à excelência das encenações. Como agora, o fluxo de turistas trazia grandes lucros financeiros para o comércio e a Prefeitura. Entretanto, o puritano John Stow que escreveu o que hoje se chamaria um guia da cidade ( The survey of London ), quando o publicou pela primeira vez em 1598 fez apenas uma breve alusão a dois teatros - The Theatre e The Curtain - mas ele os retirou da segunda edição em 1603 e simplesmente ignorou todos os outros. Na bem-amada Londres de Stow, não havia lugar para aqueles "antros de perdição" 14 .

Que os espetáculos teatrais tiveram uma importância fundamental para a vida da metrópole é facilmente atestado por alguns números. Sabemos que entre o ano de 1576 quando foi construído o segundo teatro público inglês, e o ano de 1613, quando Shakespeare se aposenta, foram registrados mais de oitocentos títulos de peças das quais só nos restaram pouco mais da metade. No mesmo período, houve um instante em que Londres chegou a contar com uma dezena de estabelecimentos teatrais em pleno funcionamento, muitas companhias permanentes, mais de uma dúzia de dramaturgos famosos e outros nem tanto, competindo entre si ou colaborando uns com os outros para atender à demanda enorme e urgente de peças para um público sempre ávido de novidades nos repertórios. Até as autoridades citadinas se renderam à competência do teatro em termos de espetáculo e contratavam os serviços de alguns dramaturgos para criarem quadros de tableau vivant e pequenos esquetes para serem representados nas festividades e comemorações cívicas. O que se pode depreender desse quadro é que a cidade de Londres e o teatro elisabetano desenvolveram uma dependência mútua; entretanto, a pólis se recusava a reconhecer isso e insistia na sua repressão: o teatro paradoxalmente era parte dela, mas não podia estar nela .

 

Talvez devido às ambigüidades que o cercavam, o teatro floresceu com uma independência surpreendente para a época, pois ele não dependia totalmente de ninguém - nem da corte, nem do público, nem das autoridades civis nem das eclesiásticas. Os puritanos, os moralistas, os poderosos não deixavam de ter razão: o teatro era perigoso. A própria concepção de alocar espaço em que os melhores lugares não necessariamente pertenciam aos que estavam no topo da escala social mas àqueles que podiam/queriam pagar mais, demonstrava a temida mobilidade de classes. O teatro era, possi­vel­men­­te, o único espaço público - excetuando-se a igreja e o mercado - em que as mulheres podiam circular (devidamente acompanhadas) não só sendo vistas, mas vendo também. Sabemos que vendedores de cerveja, vendedoras de maçãs, ladrões, prostitutas, alcoviteiras, soldados, aprendizes etc. mostravam aos mais bem-nascidos uma parcela da sociedade londrina com que eles não teriam contato tão estreito se não fossem até a periferia e se reunissem como um único público. Mas o caráter subversivo do teatro elisabetano não se evidenciava só na platéia: o que se representava no palco também poderia levar os espectadores a refletir, duvidar, questionar. Quem sabe se peças sobre a corrupção da república romana, tragédias de vingança com as próprias mãos e comédias de filhas que desobedecem aos pais para casarem com os homens que amam não provocariam comparações indesejáveis com o que acontecia na realidade? Claro que o teatro era basicamente ético, moral e religioso: os maus sempre eram castigados; mas, às vezes, a teatralidade atropelava o enredo e os bons também o eram, por exemplo, o caso de Rei Lear de Shakespeare. Afastados dos centros de poder e, conseqüentemente, da sua vigilância, os atores conseguiam driblar a censura dos textos com a variedade de recursos extralingüísticos a sua disposição - gestos, expressões faciais, entonação de voz. O território de ninguém das "Liberties" funcionou como uma zona de segurança para os homens de teatro que se permitiam exercitar sua liberdade de expressão até além dos limites da audácia - denunciando, criticando, expondo, mas sempre divertindo. Porque o teatro na época não era considerado uma arte.

Os dramaturgos elisabetanos tinham plena consciência do débito que possuíam para com os habitantes de Londres que, desafiando a oposição do prefeito, do Conselho Administrativo e da Igreja, iam prestigiá-los concorrendo para a sua sobrevivência. Pode-se sugerir que a City Comedy que surge no fim do reinado de Elisabete I e continua por longo tempo durante o reinado de Jaime I seria uma homenagem aos londrinos e a sua cidade. Ben Jonson, o grande contemporâneo de Shakespeare, escreve com indisfarçável orgulho no prólogo da sua peça The alchemist de 1610: "Nosso local é Londres, porque gostaríamos de tornar público/ Que o humor de nenhum país é melhor que o nosso" 15 . Além de Ben Jonson, Thomas Dekker, George Chapman, John Marston, Thomas Middleton, Thomas Heywood, Philip Massinger, Francis Beaumont e John Fletcher - individualmente ou em colaboração - escreveram comédias que se passam em Londres, palco maior das transformações sociais da época e cujas personagens são predominantemente os representantes das diversas classes da sociedade local, os arrivistas e os novos-ricos, oriundos da economia mercantilista. Eles satirizam comerciantes, nobres arruinados e todos aqueles que só visam o dinheiro, praticam o oportunismo financeiro e enriquecem através de transações fraudulentas. Este é um tipo de comédia que se propõe ser moral e instrutiva, pois castiga e condena à exclusão aqueles que podem dar a Londres uma reputação ruim.

O que causa espécie, entretanto, é que no crescente cânone shakespeariano (hoje ele já consta de 39 textos teatrais) não há nenhuma peça que se passe na Londres elisabetana. As tragédias se localizam em Verona, Dinamarca, Veneza, Chipre, Escócia e Bretanha; as chamadas comédias românticas acontecem em Éfeso, Atenas, Ilíria e em diversas partes da Itália e da França; as comédias conhecidas como "romances" transportam o leitor/espectador de lugares exóticos como a Sicília, Boêmia, Antioquia, Tiro, Tarso, Mitilene e Pentápolis até uma ilha deserta. Há referências tópicas indiretas em Noite de reis , Muito barulho por nada , e principalmente, em Medida por medida , que, como já foi notado por diversos críticos, nos mostra uma Viena dissoluta e pecaminosa extremamente semelhante às "Liberties". A única comédia que se passa na Inglaterra é As alegres comadres de Windsor : Londres fica perto, londrinos chegam e perturbam a vida da comunidade, mas a capital permanece apenas um ponto de referência.

As peças históricas shakespearianas privilegiam as cenas de Roma e da Inglaterra. Claro que Londres - a capital do reino - está presente nas duas tetralogias em que o grande tema é a Guerra das Rosas e em Henrique VIII ; apenas Rei João desenvolve a sua trama longe da metrópole. O que já acontecera em Medida por medida se repete em Henrique IV (parte I) , Henrique IV (parte II) e em Henrique V : a gangue chefiada por Falstaff, rufião maior, movimenta-se por tavernas, estalagens e bordéis que faziam parte dos subúrbios dos pecados e/ou dos prazeres onde Shakespeare e outros tinham os seus teatros.

Merece registro o fato de que, possivelmente a partir de 1609, os atores finalmente conseguiram fixar-se em Londres sob a égide da lei. Desde a época da rainha Elisabete, os acionistas do Globe haviam arrendado o prédio do antigo convento dos frades dominicanos (Blackfriars), que havia sediado uma companhia de crianças, mas que, vazio, a comunidade se recusava a permitir que uma companhia de adultos o ocupasse. Acontece que essa companhia era agora The King's Men - a Companhia do Rei - e esse fato deve ter contribuído para a permissão dada aos atores para usarem este teatro nos meses de inverno e o da periferia no verão. Uma vitória dos atores, sem dúvida, mas que aponta para uma futura derrota do teatro: acontece que o Blackfriars era mais caro, o seu público mais selecionado e ele já não comportava quase todas as classes sociais como o Globe. Até onde se sabe, o repertório era o mesmo; mas era o início da elitização do teatro.

Concluindo, pode-se afirmar que as relações entre Londres e Shakespeare foram mutuamente benéficas. Se a cidade lhe propiciou fama e fortuna, o poeta, por sua vez, contribuiu enormemente para a sua glória, passada e presente. Pode-se, também, perguntar se colorações afetivas tingiram essas relações. Como outras perguntas referentes à vida e à obra de Shakespeare, essa será mais uma a ficar sem resposta. Mas, a partir de alguns dados, cabem algumas especulações. Como já vimos, Shakespeare nunca expressou na sua obra nenhuma deferência especial para com a Londres de sua época ao contrário de outros dramaturgos, seus contemporâneos. Nascido no condado de Warwickshire, mas vivendo e trabalhando na capital, ele nunca levou sua família para morar lá com ele. Todo o dinheiro que ganhava ele empregava em Stratford-upon-Avon, comprando casas e terras. Em 1613, perto de se aposentar, ele teria adquirido uma casa perto do Blackfriars, por razões até hoje desconhecidas, apesar das muitas pesquisas dos seus biógrafos. Ele voltou para a sua cidadezinha natal, onde faleceu e foi enterrado, transformando-a em um importante centro turístico, com três teatros - o Royal Shakespeare Theatre, o Swan e o The Other Place - onde as suas peças são permanentemente encenadas.

E Londres? Se o Bardo de Avon parece tê-la ignorado, ela parece ter retaliado da mesma maneira. Até muito recentemente, acadêmicos e intelectuais ingleses sempre se constrangiam em admitir que, excetuando uma placa meio enferrujada colocada pela Sociedade Shakespeariana de Leitura em 1908, em uma ruela escondida em Southwark, nada mais assinalava a passagem do maior dramaturgo de língua inglesa pela cidade. Claro que suas peças eram repre­sentadas em Londres, mas não havia nenhum prédio especialmente erigido para abrigá-las. Para maior constrangimento dos londrinos/ingleses ainda, réplicas do teatro shakespeariano foram construídas em diversos lugares ao redor do mundo: nos estados de Utah, Oregon, Texas e Califórnia na América do Norte, em Ontário, no Canadá; em Perth, na Austrália; em Neuss e Berlim, na Alemanha; e, até em Tóquio, no Japão. 16 

Um dia, um grande ator e sonhador - Sam Wanamaker - iniciou uma campanha para a construção de um teatro semelhante ao Globe de Shakespeare, no mesmo lugar em que ele havia existido e que escavações haviam descoberto. Depois de anos de poucas verbas e muitas lutas, o Shakespeare's Globe foi finalmente inaugurado em 1997 com a peça Henrique V . Infelizmente, o seu idealizador não pôde ter a alegria de ver a sua obra realizada: Sam Wanamaker faleceu em 1993. Um detalhe muito interessante: Sam não era inglês, era americano.

Esses são os fatos; a partir deles poderemos especular - e mais do que isso não é possível - sobre as relações entre o poeta e a pólis. O resto é silêncio.

 

Notas de Rodapé

1 Peter Brook, O teatro e seu espaço , trad. Oscar Araripe e Tessy Callado, Petrópolis, Vozes, 1970, p. 1.

2 Carlos Francisco Moura, Teatro a bordo de naus portuguesas nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII , Rio de Janeiro, Instituto Luso-Brasileiro de História e Liceu Literário Português, 2000.

3 Steven Mullaney, The place of the stage : licence, play, and power in Renaissance England, Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1988, p. 7.

4 Peter Brook, A porta aberta , trad. Antonio Mercado. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 51.

5 William Shakespeare, "Hamlet", in: _____, Hamlet e Macbeth , trad. de "Hamlet" Anna Amélia Carneiro de Mendonça, trad. de "Macbeth" Barbara Heliodora, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 76.

6 Stephen Orgel, The illusion of power , 2 ed., Berkeley, Los Angeles e Londres, University of California Press, 1991, p. 2.

7 Roy Porter, London : a social history, Londres, Penguin Books, 2000, p. 45-81.

8 Stephen Greenblatt, Shakespearean negotiations , Berkeley e Los Angeles , University of California Press , 1988, p. 64.

9 Alison Weir, Henry VIII: king and court, Londres, Pimlico, 2002, p. 20-21.

10 David Starkey, Elizabeth , Londres, Vintage, 2001, p. 89.

11 Stephen Greenblatt, Renaissance self-fashioning, Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1986, p. 162.

12 Park Honan, Shakespeare: a life, Oxford , Oxford University Press, 1998,
p. 100.

13 William Shakespeare, " Hamlet ", in: ---, Hamlet e Macbeth , op. cit., p. 82-83.

14 John Stow , The survey of London (1598/1603), Londres, J.M.Dent, 1970.

15 Ben Jonson, Douglas Brown (ed.), The alchemist , Londres, Ernest Benn Limited, 1966, p. 7.

16 Ian Wilson, Shakespeare: the evidence, Londres, Headline, 1993, p. 420.

 

Bibliografia

BROOK, Peter. A porta aberta . Trad. Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

---. O teatro e seu espaço . Trad. Oscar Araripe e Tessy Callado. Petrópolis: Vozes, 1970.

GREENBLATT, Stephen. Renaissance self-fashioning. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1986.

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