Gil Vicente em cena: 1998-2002

Anchieta e Gil Vicente: linhas de prumo, linhas de flutuação

Vilma Arêas
UNICAMP

1. A aproximação de Gil Vicente e José de Anchieta é um lugar-comum da crítica, seja porque pertençam ao século XVI, seja porque escreveram peças teatrais. O fato de que o teatro de nosso jesuíta tenha sido elaborado principalmente para efeitos da catequese dos índios brasileiros não costuma constituir empecilho a essa aproximação. É verdade que no nível do caráter popular desse teatro, podemos estabelecer entre ambos um fio de ligação: nos espetáculos de Gil Vicente também se abria espaço às práticas cotidianas populares, embebidas de magismo e de maravilhoso e na crença nos poderes do Diabo, 1 traços que também encontramos em Anchieta, com as variantes exigidas pelo trabalho missionário. Ao lado disso, uma parte da crítica é sensível ao caráter teatral da maioria da obra anchietana, além das peças propriamente ditas, ponderando-se, com alguma verdade, que os poemas do canarino também poderiam ser incluídos sob a égide do teatro. Assim o faz Joel Pontes, referindo-se à "especial mímese" exigida para a interpretação dessa obra, e caracterizando certos textos como "poesias encenáveis" 2 . Mesmo aqui, entretanto, as afirmações se equilibram precariamente. Décio de Almeida Prado 3 afirma, por exemplo, que é difícil classificar as peças de Anchieta e que sua obra cênica não deve ser pensada como um capítulo igual aos outros da história do teatro. Julga que "quanto mais a encaramos como teatro no sentido específico da palavra, menos a compreendemos e menos lhe fazemos justiça".

De outro ponto de vista e no mesmo item das concordâncias, não são poucos os que levam em consideração as limitações do ofício e do meio para a plena realização dos dois autores. Ronald de Carvalho, por exemplo, sublinha o peso das circunstâncias na atividade artística de Anchieta, que "possuía as virtudes indispensáveis para ser um grande poeta", não podendo entretanto realizar-se enquanto tal.

O mesmo argumento é invocado quanto a Gil Vicente, certamente com outros matizes 4 , não teria podido o teatrólogo desenvolver seu gênio, de um lado pela falta de antecedentes - afirmação polêmica - e pelo gosto de um público visceralmente vicia­do no desconjuntado dos "pequenos quadrinhos" teatrais da época; a isso acrescentam-se o capricho dos mecenas e exigências de seu cargo de "mestre de espetáculos". Tudo isso seriam impedimentos a seu gênio dramático, sem condições de ultrapassar a fonte espanhola onde bebeu.

Essas considerações embasam motivos inspiradores do enlace Anchieta/Gil Vicente, freqüentemente trazido à tona. Às vezes tal relação é estabelecida de modo razoável, como a observação do professor Leodegário A. de Azevedo Filho 5 , que considera os autos de catequese simples variantes dos autos de devoção da tradição medie­val, gênero também exercitado por Gil Vicente, "que aliás exerceu visível influência na técnica de Anchieta". Mas nem sempre reina o bom senso: Alcântara Machado e o padre Luiz Gonzaga Cabral, por exemplo, delirantemente colocam nosso jesuíta acima do extraordinário homem de teatro que foi Gil Vicente. 6 

O meu propósito é o de pensar um pouco sobre essa aproximação sempre invocada entre os dois autores.

Começo por levantar certas linhas tangenciais na vida e na obra de ambos. Em primeiro lugar, estavam mergulhados no clima da época, nas conseqüências das navegações peninsulares e na agitação ideológica levantada pelo cisma religioso. Catequista e missionário um, teatrólogo da corte, outro, um na periferia do poder - mas inserido no programa jesuítico de constituir nas Américas um império religioso -, outro no centro dele, não se poderiam postar ao largo das questões e contradições do século.

 

O acaso também propicia lances curiosos. Assim é que de Gil Vicente, vivendo no interior do império português, desconhecem-se as datas de nascimento (segunda metade do século XVI) e morte (talvez 1536), embora não pairem dúvidas quanto à autoria da obra; quanto a Anchieta, invertem-se os termos: sabemos quando nasceu e morreu (S. Cristóvão de la Laguna , capital de Tenerife, Canárias, 1534/ Espírito Santo, Brasil, 1597), mas tal certeza não abraça sua produção, que é posta em dúvida. "Existiu mesmo um autor chamado José de Anchieta?" - pergunta-se Décio de Almeida Prado 7 , acrescentando que é ao processo de canonização do missionário - mais de um século após sua morte - que devemos a preservação dos cadernos com os escritos supostamente de sua autoria. A pergunta não contém nenhuma dose de escândalo. As noções de autor ou de obra não eram as mesmas de hoje e o melhor seria adotarmos em relação a Anchieta o que a crítica modernamente propõe em relação a Gregório de Matos, ao se verificar a impossibilidade da total especificação autoral.

Não é novidade que as dúvidas sobre a biografia de Gil Vicente têm levantado problemas, provocando controvérsias até mesmo a respeito da identificação do teatrólogo com o ourives 8 , criador da maravilhosa custódia de Belém, feita com o primeiro tributo em ouro conseguido por Vasco da Gama do soberano de Quíloa, depois de uns convincentes mergulhos que lhe mandou aplicar nos "mares nunca dantes navegados". Desconsiderando detalhes semelhantes, outros estudiosos inclinam-se a uma posição prudente, como Stephen Reckert, frente às baldadas investigações sobre o autor: "[...] a única resposta útil [às perguntas] continua a ser que era, e é, o conjunto de textos dramáticos e poéticos que levam seu nome" 9 .

Prosseguindo nas linhas cruzadas dos autores, verificamos que ambos foram organizadores de festas: Gil Vicente na corte, em datas celebrativas da cristandade ou da fidalguia, Anchieta na colônia, também em datas celebrativas da cristandade, ou em recepções a religiosos, como foi o caso de Cardim, que nos deixou uma descrição minuciosa do teatro anchietano. Claude Henri Frèches afirma os autos de Anchieta serem "lições de catecismo", embora não seja errado considerá-los "embriões de peças de tese ou comédias de costumes" 10 .

Um outro cruzamento diz respeito ao bi ou plurilingüismo dessas obras. Embora dois terços da obra vicentina estejam escritos em português, compôs também peças inteiramente em espanhol e outras, mescladas dos dois idiomas. Já Anchieta, como sabemos, escreveu em quatro idiomas: espanhol, português, latim e tupi, obedecendo à tradição e à evidência do público misto que assistia às atividades. Devemos mesmo sublinhar, com Edwaldo Cafezeiro, que no plurilingüismo da babel colonial, a atividade teatral funcionava como instrumento de comunicação, "paralela, e mesmo integrada, àquela prestada pela língua geral dos indígenas brasileiros" 11 , reprimida por Portugal no século XVIII.

Mas neste ponto começamos a separar as linhas.

Indubitavelmente Gil Vicente é o fundador do teatro português, estendendo-se sua atividade de 1502, com o Monólogo da visitação , a 1536, com a Floresta de enganos , quando então, curiosamente - foi a data da instalação dos tribunais da Inquisição em Portugal - perdeu-se o rastro do teatrólogo. Antes dele não se conhecem textos dramáticos, o que não significa que não tenham existido. Há referências vagas e episódicas a textos e documentos que citam representações anteriores, arremedillos e momos , de intenção crítica e imitativa, além de um teatro religioso representado por laudes , milagres , moralidades . Como se sabe, arremedillos e momos "refletiam sobretudo o flagrante predomínio do espetacular sobre o literário, da representação plástica sobre um texto propriamente dito" 12 . O que deve ter dificultado sua inclusão no item do teatro.

Já em relação à afirmativa de que Anchieta tenha fundado o teatro brasileiro, as certezas não são assim tão evidentes. Décio de Almeida Prado 13 , interessado como Antonio Candido no processo de formação da literatura brasileira, abre seu livro com o seguinte comentário:

 

O teatro chegou ao Brasil tão cedo ou tão tarde quanto se desejar. Se por teatro entendermos espetáculos amadores isolados, de fins religiosos ou comemorativos, o seu aparecimento coincide com a formação da própria nacionalidade, tendo surgido com a catequese das tribos indígenas feita pelos missionários da recém-fundada Companhia de Jesus. Se, no entanto, para conferir ao conceito a sua plena expressão, exigirmos que haja uma certa continuidade de palco, com escritores, atores e público relativamente estáveis, então o teatro só terá nascido alguns anos após a Independência, na terceira década do século XIX.

 

Entre o modesto início dessas atividades - o convite de Nóbrega a Anchieta para que reformasse o teatro na colônia, dando um fim às "indecências das igrejas" - até o final do século, alguns historiadores, diz o crítico, "chegam a enumerar 25 espetáculos, incluindo-se neles peças e simples diálogos, montados pelo jesuíta" 14 . Em seguida, apoiando-se na carta que o padre Cardim endereçou a Lisboa, em 1585, relatando a viagem de inspeção que vinha fazendo havia dois anos na Província do Brasil - era secretário do padre visitador Cristóvão Gouveia -, Almeida Prado sublinha pontos de interesse: a interpenetração da arte e da religião 15 , e a confraternização nessas ocasiões da cultura européia e da cultura indígena em relação às tribos já cristianizadas. As conclusões apontam o teatro concebido como parte de uma festa maior, mesclando-se religião com aspectos profanos e divertidos, diálogos ocasionais, "não necessariamente ligados entre si", quando a procissão se detinha por momentos; o cenário era natural, as figuras, simbólicas e sacras (a Cidade, a Sé, o Anjo), e o Diabo, fonte de comicidade (aliás comum na comédia); os instrumentos musicais originavam-se das duas culturas, os papéis eram interpretados por alunos etc. "Acima de tudo" - finaliza Almeida Prado - devemos frisar "o aspecto lúdico do teatro, entendido como jogo, brincadeira, porta imaginária através da qual entravam com enorme entusiasmo os índios [.]".

Não será difícil perceber que o crítico comunga com Antonio Candido quando compreende, nessas e noutras semelhantes atividades, "manifestações teatrais", e não o teatro propriamente dito, embora não seja peremptório. Nosso teatro apareceria como formado "com certa continuidade de palco, com escritores, atores e público relativamente estáveis" somente no século XIX, já que se perderam os documentos da arte na época arcádica embora dela haja referências.

Um outro ponto em que nossos autores se cruzam e se separam diz respeito ao lugar que ocupam na linha divisória entre Idade Média e Renascimento. Lugar contraditório, tecido de fios ligados ao passado e à modernidade renascentista. A Companhia de Jesus é um bom exemplo dessa ambigüidade, combinando modernos recursos de conquista do meio, esforço de adaptação e sedução didática, com o espírito conservador, reacionário às orientações reformistas da época. Como quer Wilson Martins 16 , "num processo dialético de extrema sutileza, a Companhia de Jesus assimilou a orientação cultural do Renascimento, na linha de uma empresa renovada de sobrevivência medieval: a Contra-Reforma". Diante de tal perigo, urgia uma prática religiosa eficaz, não longe de um certo "maquiavelismo apostólico" 17 , a justificar os meios pelos fins, a integração explícita da Ordem no mundo, para sua conquista.

Por seu turno Gil Vicente também espelha o clima ideológico renascentista e as profundas contradições de Portugal pós-descobrimentos - contatos com novas civilizações, fluxo de riquezas, destruição da sociedade agrária; contudo a problemática religiosa afasta-se da rigidez inaciana, aproximando-se antes da postura erasmista, embora não cismático, como observa S. J. Révah 18 . O professor H. Houwens Post 19 , da Faculdade de Letras de Utrech, baseando-se nas conclusões de Carolina Michaëlis 20 ("Nunca o arvorei em 'precursor de Erasmo'. Mas continuo a descobrir nele [...] tendências críticas congeniais às do humanista de Rotterdam [...]") e em O declínio da Idade Média , de Huizinga, analisa e enumera em nove itens as coincidências entre Gil Vicente e Erasmo. Antes de mais nada, haveria "um vago parentesco de espírito", diz ele, baseando-se também no fato de que as idéias erasmistas "andavam no ar", repercutindo na península Ibérica e em Portugal, onde a crítica anticlerical sempre fora tradicionalmente acerba. De qualquer modo, ambos pareciam descrer do diabo e do anjo medievais enquanto entidades puramente transcendentes e exteriores, apresentando-os como a moralização das forças que representavam. Para além de meras figuras cênicas, o que importava era que o homem fosse "salvo espiritualmente a partir do reconhecimento de que Cristo é o chefe espiritual e Redentor da humanidade"; defendiam também a necessidade das "boas obras" em detrimento das meras cerimônias exteriores.

Como Erasmo, também Gil Vicente desejava uma reforma da Igreja, entretanto em seu interior e não de fora. Assim é que vemos nas moralidades, no Auto da Alma , nos autos das barcas, no Auto da feira , e demais obras, críticas à Igreja, ao papado, à crendice (cf. Carta a d. João III, de 26 de janeiro de 1531), a questões teologais, como a Graça e o Livre-Arbítrio ("no quiero arguir se el fruto vedado/ Si era manzana o pera o melón"), à venda de indulgências e às guerras religiosas.

Se nos acercamos mais de possíveis exemplos, verificamos que certos textos em confronto exemplificam as diferentes posturas que Anchieta e Gil Vicente assumem diante de um mesmo fato, por exemplo, o da mobilidade social da época, ao que tudo indica desejada por parte da população do reino. Nesse terreno as dificuldades se impõem, pois obviamente aquele não era um problema que dissesse respeito a Anchieta, dedicado à catequização e à defesa do poder jesuítico nos trópicos. No entanto, podemos dizer que a questão comparece no teatro anchietano pelo avesso, através de sua versão de poemas laicos portugueses, 21 intitulada O pelote domingueiro 22 . Os poemas originais, quatro glosas ao mote "Já roubaram ao moleiro/seu pelote domingueiro", discutem a perda de um pelote "de mil cores" pertencente a um pobre moleiro, trabalhador migrante ou "ratinho", que o conseguira após muito trabalho e sacrifício; termina por recuperá-lo (versão de uma variante), ou comprar outro em Sevilha (outra variante), casar-se com a filha do patrão (outra ainda) etc. O tema não deixa de ser surpreendente, não só pela posse de tal vestimenta por um homem da "arraia miúda", "de baixa mão" - circunstância proibida pela rígida hierarquização da sociedade portuguesa da época 23 - como também pelo casamento com a filha do patrão. Os dois fatos sublinham a possibilidade de ascensão social que, segundo Godinho, 24 era censurada mesmo pelos mercadores e industriais, queixosos do alastrar do luxo, que contagiava a gente "meã e meúda", desejosa de vestir panos de seda e fina lã. Nas Cortes de 1472 e 1481-1482, exige-se a fixação minuciosa de vestimentas e calçados segundo as categorias. Para camponeses e trabalhadores, "panos de lã mais somenos, assim como bristões (de Bristol), condados (de Flandres) e daí para baixo; e que não tragam 'borzeguins'". Que a mesma incompreensão histórica varasse os tempos servem de prova as leis e provisões de d. Sebastião, em 1570: a diminuição dos gastos de luxo não se traduz em incentivo ao investimento, portanto à aplicação reprodutiva no processo de produção, como logo descobriram outros países europeus, mas na preferência pelos bens de raiz e pelo entesouramento em metal precioso. Portanto, um "ratinho", pertencente à fatia inferior do terceiro estado, considerado entre aqueles que não vivem "limpamente", vestir, apesar disso, um pelote "de mil cores", não deixa de incluir-se na esfera da fantasia. 25

Podemos portanto afirmar como conclusão que os textos discutem fundamentalmente, e com grande humor, a possibilidade, a aceitação ou não, de uma certa mobilidade social na rígida estrutura portuguesa, através da imaginação ou teimosia de um elemento da arraia-miúda. 26 De algum modo as glosas também apontam a instabilidade no campo. Os primeiros sinais de alarme são com a crise de 1371, quando as Cortes discutiram a situação: insatisfação dos assalariados agrícolas, que abandonavam seus meios de trabalho para ganhar mais dinheiro, a situação precária dos lavradores independentes e as vantagens para os mercadores e comerciantes; por último, a migração interna, com o aumento de poder dos grandes proprietários. Tudo isso funciona como mola propulsora da ação das Trovas . A miragem das navegações como solução para os problemas do campo comparece com a citação de Sevilha em uma das versões, cidade que atingiu o seu auge no século XVI, porto de entrada das mercadorias do Novo Mundo e conexão deste com o resto da Espanha e de toda a Europa. Podemos dizer que a defesa do tema das glosas é rara e mesmo o Cancioneiro geral atesta a "corruçam" dos costumes: "e também os lavradores,/com suas más novidades/querem ter as vaidades/dos senhores".

Ora, essas glosas fornecem a Anchieta o ponto de partida para a construção de seu texto, deslocando entretanto o conflito para a esfera espiritual: a história do homem, da expulsão do Paraíso (perda do pelote) à sua recuperação com a vinda do Messias, o "capitão". Coerente com outros trabalhos 27 do jesuíta, nosso Adão tupiniquim vem associado ao diabo, assim como seus costumes e seus ritos. A transformação desse universo supostamente bárbaro não rejeitava os valores fundamentais da sociedade mercantilista, que se misturavam ao modelo religioso segundo a duplicidade da doutrina. Por exemplo, o narrador do "Pelote" une a Graça divina à circunstância de que fora dada de graça aos habitantes do Éden brasílico. Paralelo a tal mescla, certas convenções teatrais fatalmente perdem o prumo. Décio de Almeida Prado 28 , de forma brilhante, a que não falta certa ironia, comenta que na espécie de "concílio do Mal" formado por quatro demônios e presidido por um deles, a certa altura, sentam-se os primeiros:

Sabemos que o ato de sentar, quando a personagem nada tem a dizer, devendo contudo reaparecer mais tarde, é freqüente em tal tipo de peça, resolvendo, para o autor, o difícil manejo das entradas e saídas de cena. Assim mesmo, causa espécie, como uma contradição entre forma e conteúdo, ver personalidades dramáticas usualmente tão dinâmicas, de tanta vivacidade verbal e corporal como as provenientes do Inferno, em posição tão estática - talvez os quatro primeiros diabos sentados de toda a história do teatro ocidental.

 

Como observei no início, o problema da mobilidade social não tinha sentido para o projeto jesuítico nos trópicos, e só pode ser lembrado pela rasura do que aparece nos poemas portugueses que funcionaram como modelo. Na paródia desses textos permanece entretanto a referida vinculação pelo seu avesso, na sombra de um enredo e no uso da redondilha popular.

Sobre o mesmo tema, de Gil Vicente recordarei de maneira sumária o Auto de Inês Pereira 29 , iluminado a partir da perspectiva da mobilidade da gente do campo para a cidade e dos novos valores adquiridos, sem esquecermos, com Vitorino Magalhães Godinho 30 que Portugal, até o século XIX, era antes um país de vilas e grandes aldeias do que de verdadeiras cidades. Pode-se considerar complexo o quadro geral no século XVI, composto das relações entre nobreza, realeza e mercadores, o grupo efetivamente inovador, quase invisível em Gil Vicente. Quanto aos primeiros, tiveram o poder destruído por d. João III, quando fez degolar publicamente em Évora, em 1483, o duque de Bragança, implicado em negociações com Castela. Além disso, o empobrecimento dos lavradores, expulsos das terras, é atestado pela situação do Escudeiro, que finge ser da corte 31 , e seu Moço.

O jogo dos protagonistas, Inês Pereira e Pero Marques, funcio­na por dentro do jogo estabelecido pelas convenções cômicas e estabelece os lugares dessa contradição. A primeira é vilã, isto é, moça da vila, lugar que abrigava faixas muito diversificadas da população. Filha de um artesão 32 , sabendo ler e escrever, Inês é moça "fantesiosa" que despreza Pero, seu pretendente, embora este fosse um camponês ainda com recursos, mas sua adesão aos valores de outrora ofende a mentalidade moderna da jovem. O encontro dos dois assinala o despreparo do campo em relação à vila, tema cujo exame chega ao paroxismo em O juiz da Beira 33 . Pero desconhece o universo da vila, desde os objetos mais cotidianos até o traquejo corriqueiro das relações, funcionando portanto como o clown da tradição. Inês acaba por escolher outro pretendente, um escudeiro pilantra que tentara encontrar na política expansionista uma saída para sua situação. Tiranizada por este, Inês compreende o equívoco de sua estratégia e à morte do marido faz acordo com a Igreja 34 , na figura do Ermitão, utilizando para isso o próprio Pero, transformado em segundo marido. O camponês, portanto, aparece claramente depenado pela vila, que "namora" o clero, à semelhança do que fazia a aristocracia. O que Pero possui continua inoperante para lutar com o aparato da vila: não sabe as palavras, não conhece objetos ou valores novos. Inês, repito, finalmente compreende que a incorporação dos ideais da corte exige pragmatismo, aliança de classe e desprezo da honra tradicional, pois vemos que as relações são sempre baseadas no interesse e na mentira, com exceção do despreparado ou anacrônico Pero Marques.

O que vemos, portanto, é que a mobilidade social, que marca a sociedade portuguesa desde os finais do século XIV, acentua-se com novos ingredientes no período expansionista e é motivo de crítica de toda a obra vicentina. A crítica anchietana é de outro matiz, dizendo respeito tanto ao destino espiritual das almas como à organização do trabalho na colônia, para o lucro mercantilista. Assim é que a suposta preguiça dos indígenas é um dos grandes pecados; de igual modo estão do lado da virtude a necessidade de trabalhar dia e noite, tendo o colonizador direito de vida e morte sobre o escravo. No poema de Anchieta, o pecador Adão-indígena é espancado pelo "amo", "com a raiva que houve dele" por conta de sua preguiça. Foi então "contado com as bestas para sempre trabalhar".

Concluindo, podemos talvez afirmar que o lugar de onde falam esses autores ilumina aspectos das respectivas obras e que a utopia do passado presente em ambos é de qualidade diversa: atento ao endurecimento da servidão camponesa, ao abandono do campo e aos desmandos éticos do tempo, Gil Vicente não tem aplausos para a empresa ultramarina, assim como não se entusiasma com a Contra-Reforma nos moldes da Companhia de Jesus. Anchieta é mais contraditório pois também presa das contradições do inacismo 35 . Assim, é retoricamente moderno 36 , mas a defesa do mercantilismo, o que seria também moderno, arrasta consigo todas as contradições com respeito à escravidão. Além disso, a construção do mundo futuro significava um retorno ao passado. Creio, portanto, que a propalada semelhança do teatro anchietano e vicentino se sustenta mal, seja nos conteúdos, embora fiéis aos desdobramentos do complexo contexto do século, seja na forma. Principalmente na forma, pois opõe-se a construção exigente do escritor-ourives à fragilidade do teatro anchietano, se mirado do estrito ponto de vista estético.

 

 

Notas de Rodapé

1 Cf. Laura de Mello e Souza, Inferno atlântico - demonologia e colonização século XVI-XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 1993. Nos autos anchietanos, à semelhança de peças populares religiosas de todos os tempos, o Diabo é um dos principais personagens.

2 Joel Pontes, Teatro de Anchieta , BRASIL, MEC/Serviço Nacional de Teatro, 1978. Em Teatro do sacramento (São Paulo, Editora da Unicamp/Edusp, 1994), Alcir Pécora também entende a oratória jesuítica portuguesa do século XVII como teatralização retórica da teologia política.

3 Décio de Almeida Prado, Teatro de Anchieta a Alencar , São Paulo, Perspectiva, 1993.

4 Laurence Keates, O teatro de Gil Vicente na corte , Lisboa, Teorema, 1962.

5 Leodegário A. de Azevedo Filho, "A poesia dramática de Anchieta", in: José de Anchieta, O auto de S. Lourenço , Edições de Ouro, s.d.

6 Cf. Julio Garcia Morejón, "Las intenciones poéticas del Padre José de Anchieta", Revista de Letras , vol. 7, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, 1965.

7 Décio de Almeida Prado, "O teatro jesuítico", in: ---, Teatro de Anchieta a Alencar , op. cit.

8 Depois de Braamcamp Freire parece não restarem dúvidas quanto à identificação.

9 Stephen Reckert, Espírito e letra em Gil Vicente , Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983.

10 H. Frèches, "Le théatre du Anchieta: contenu et structure", ANNALI , III, I, Napoli, Istituto Universitario Orientale, 1961.

11 Edwaldo Cafezeiro, "O teatro no Brasil colonial", Dionysos , nº 18, 1974.

12 Pedro Serra e Ángel Marcos de Diós, Historia de la Literatura Portuguesa , Salamanca, Luso-Española, 1999.

13 Décio de Almeida Prado, op. cit.

14 Décio de Almeida Prado, op. cit.

15 Não podemos nos esquecer de que na época a religião possuía um papel integrador, sendo ao mesmo tempo a forma dos debates, aquilo que hoje chamamos política (Kurtz, 1999) contra a forma desintegrada da sociedade moderna. Hoje parece não pairarem dúvidas de que a demonologia é um campo complexo de conhecimento, relacionada com o surgimento do pensamento cien­tífico e politicamente vinculada à centralização política da Europa (Laura de Mello e Souza, op. cit.).

16 Wilson Martins, História da inteligência brasileira , I, São Paulo, Cultrix/ Edusp, 1976.

17 Cf. Sonia Siqueira, A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial .

18 S.J. Révah, in: Jacinto do Prado Coelho, Dicionário das literaturas portuguesa, brasileira e galega , Porto, Figueirinhas, [s.d.]

19 H. Houwens Post, "Gil Vicente proto-érasmien", Cahiers du Monde Hispanique et Luso-Brésilien (Caravelle) , Toulouse, Université de Toulouse, 1967.

20 Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Notas vicentinas , Lisboa, Revista Ocidente, [s.d.].

21 Os autores referidos no título são três, Luís Brochado (natural de Tânger, autor de numerosas obras jocosas e contemporâneo de Anchieta), António Leitão e João Couto, mas no texto da primeira glosa aparece Marcos Fernandes, sapateiro e "natural de Montemor". (Cf. Teófilo Braga, Antologia portuguesa , Porto, Livraria Universitária, 1876) e Mello Nóbrega, Um poema de Anchieta (O pelote domingueiro) , Revista da Sociedade Brasileira de Romanistas , vol. XII e XIII.

22 Vilma Arêas, "O pelote domingueiro", in ACTAS DO QUINTO CONGRESSO DE LUSITANISTAS, Universidade de Oxford, 1998.

23 Cf. A.H. de Oliveira Marques, A sociedade medieval portuguesa : aspectos de vida quotidiana, 2 ed, Lisboa, Sá da Costa, 1971 e verbete sobre Gil Vicente em Joel Serrão , Dicionário de história de Portugal e do Brasil , vol. III, Porto, Figueirinhas, 1985.

24 Vitorino Magalhães Godinho, A estrutura na antiga sociedade portuguesa , Lisboa, Arcádia, 1971.

25 Eneida Bomfim anota que, a partir do século XVI, houve uma tendência à homogeneização, talvez não das classes, mas das marcas de classe, e uma simplificação nos hábitos de vestir em Portugal. (Cf. O traje e a aparência nos autos de Gil Vicente , Rio de Janeiro, PUC-Rio/Edições Loyola/Instituto Camões, 2002.)

26 Analiso os poemas no texto citado.

27 Apenas num deles, O auto de S. Lourenço , o demônio possui, por momentos, traços universalizantes, momento em que os diabos-índios dialogam com os imperadores Décio e Valeriano, algozes do mártir no século III; mas como esses algozes começam de repente a falar tupi, tal universalidade é destruída.

28 Décio de Almeida Prado, "O teatro jesuítico", in: Teatro de Anchieta a Alencar , op. cit.

29 Em Gil Vicente : sátiras sociais (Mem Martins, Europa-América, 1975) há preciosas anotações de Maria de Lourdes Saraiva, de que muitas vezes me vali.

30 Vitorino Magalhães Godinho, op. cit.

31 Aos fidalgos de solar opunham-se os que tentavam salvar as aparências, com ar de grandes senhores. A pobreza não impressiona a protagonista que, seduzida pela ideologia da época, prefere um homem "avisado", "ainda que pobre e pelado", "discreto, feito em farinha".

32 Seu nome todo é Inês Pereira da Grã, isto é, lã tinta de escarlate, devendo ser ela filha de um tintureiro. (Cf. Maria de Loudes Saraiva, Gil Vicente : sátiras sociais, op. cit.)

33 O tema tem uma longa duração na tradição cômica, conforme sabemos, mas concretiza-se a cada vez através dos pormenores dos contextos e dos tipos particulares apoiados nos tipos abstratos da tradição.

34 O serviço eclesiástico, como a corte, era uma saída para o campo. Esse ermitão da Inês era apaixonado por ela na juventude. Na Farsa dos almocreves o capelão era um antigo ratinho.

35 A Companhia de Jesus definia-se como "ordem mista", nem só ativa, para servir ao próximo, nem só passiva, dedicada à contemplação. No exame do candidato a suas fileiras, constavam como impedimento: "se for herege ou cismático, homicida ou infame, se vestir hábito religioso de outra Ordem, se está ligado por vínculo matrimonial ou de escravidão". (Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa/Portugália, Rio de Janeiro/ Civilização Brasileira, 10 vols., tomo I, p. 10).

36 Cf. o poema "O rosário", em que este é comparado a uma espingarda etc.

 

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