Gil Vicente em cena: 1998-2002

Gil Vicente em cena: 1998-2002

Maria Idalina Resina Rodrigues
Faculdade de Letras
Universidade de Lisboa

Fica bem, na conferência inaugural de um seminário, e agradeço a honra, que me deram, de a proferir, presentear os ouvintes com um discurso organizado, ponto de chegada de um saber amadurecido, com princípio, meio e fim e em bom português.

Lamento que o meu enviesado texto não corresponda a tão fundadas expectativas e, pior, não é por modéstia que faço esta afirmação. Não estou, garanto, a refugiar-me no comum tópico da captatio benevolentiae .

O tema, que me tinha proposto, e com o qual já baptizei esta intervenção, graças à catadupa de espectáculos que, neste ano, mas particularmente de há uns meses a esta parte, pelo país se têm sucedido, obrigou-me ao confronto com um dilema: ou uma académica (o que quer dizer menos má) articulação de ideias, estilisticamente cuidada, com sacrifício do manancial informativo ou um arranjo meio desarranjado de pessoais apontamentos que a esperada boa vontade de ouvintes e leitores se encarregará de alindar. 1

Optei pela segunda via, porque penso que todos gostamos de saber o que se está a passar com Gil Vicente, o que significa que, estando a escrever e a ver espectáculos quase em simultâneo, e a consultar periodicamente a benfazeja base de dados do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CETFLUL), para algo aprender sobre os que não tive ocasião de avaliar, empurrei para segundo plano a ordenação estética das ideias, o apuro da linguagem e sei lá o que mais.

No entanto, e para cobrir, em parte, esta ligeireza (?), alinhavarei uma introdução que recapitule o que, para todos nós, possivelmente, é ciência há muito adquirida, mas terá a benesse de uma compartimentação já fixada, quanto mais não seja porque o passado tem sempre uma (pseudo)dignidade que o presente ainda não conquistou.

Um passado a ter em conta

Popular em vida, embora de uma popularidade, por certo, muito confinada a certos meios, se nos sintonizarmos com o que hoje entendemos por popularidade, Gil Vicente teve, na segunda metade do século XVI, os seus continuadores, muito menos brilhantes, seguramente, do que ele, mas, ainda assim, um tanto injustamente remetidos para o rol dos imprestáveis, dada a tendência para, com a sua produção, se comparar à do nosso dramaturgo. 2

Igualmente lhe cabe o mérito de ter imposto um perfil de teatro com o qual a comédia classicizante de um Sá de Miranda ou de um António Ferreira nunca foi capaz de competir, tristemente votada a um ostracismo que em Espanha tem o seu paralelo; ou seja, os ibéricos sempre se mostraram mais afeiçoados ao auto tradicional, em verso, de raiz nacional, adverso a regras, alheio a preocupações de separar cómico e trágico, sem espartilhos de rigidez argumental. Tenha-se em conta uma boa parte da posterior e excelente dramatur­gia de um Lope de Vega ou de um Calderón de la Barca. Desses , porém, não curaremos nós agora. 3

No século XVII, d. Francisco Manuel de Melo que o considera "o primeiro, mais cortesão e engraçado cómico que nasceu dos Perineus para cá", bem de perto segue os seus ensinamentos no Auto do fidalgo aprendiz (escrito entre 1644 e 1646 e publicado em 1665) 4 ; a verdade, porém, é que, em regime de monarquia dual, fora o teatro espanhol, o que em Portugal se representara, e, quanto a edições, aliás, em época em que muito se não leria, era a da Copilaçam de 1586, fortemente mutilada pela censura inquisitorial, a que alguns conheceriam, e não a completa (?) de 1562. 5

O ilustrado século XVIII praticamente desconheceu o nosso autor; não temos notícias de representações e os críticos encartados ignoram-no ou fingem ignorá-lo: nem Verney ("Carta sétima" do Verdadeiro método de estudar , 1746) nem Francisco José Freire ( Arte poética , 1748), por exemplo, têm para ele quaisquer apontamentos judicativos.

Foi então necessário que os primeiros românticos, empenhados como andavam em debates e querelas sobre a arte dramática, mais inclinados para Shakespeare do que para Racine, apaixonados pelo grande teatro barroco espanhol, apóstolos da liberdade na arte e inimigos declarados de constrangimentos preceituais, atentamente redescobrissem Gil Vicente, sem dúvida entusiasmados com a publicação da Copilaçam de 1562, a partir de um exemplar encontrado na Alemanha por Barreto Feio e J. G. Monteiro (Hamburgo, 1834), o primeiro dos quais, por sinal, companheiro de exílio de Garrett em França; Garrett que, em 1838, faria representar Um auto de Gil Vicente , que imagina em tarefas de encenação, retomando personagens, réplicas e alusões a assistentes, no quadro de uns engenhosos amores entre Bernardim Ribeiro e a infanta dona Beatriz.

Complementarmente, críticos como Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas e outros mostrar-se-iam bons entendedores do teatro vicentino, encomiasticamente o colocando em lugar de destaque a abrir uma larga galeria em que figuravam os grandes espanhóis. 6

Ao inaugurar-se o Teatro Nacional de D. Maria II, na década de 40 de Oitocentos, a sua estátua ficaria bem patente na frontaria do edifício e um novo espaço se disponibiliza para a sua convivência com o público. 7

Mais tarde, entre séculos, e estou naturalmente a queimar algumas etapas, com a aproximação do quarto centenário da Visitação , Afonso Lopes Vieira vai ser o grande obreiro moderno da revisitação de Gil Vicente ( Uma campanha vicentina , 1915, disso nos põe a par); ainda em 1897 ou 1898 prepara a dramaturgia do Auto pastoril português , em 1902, leva à cena a Inês Pereira e, entre 1909 e 1910, a Visitação . 8

O programa cultural da República (1910) não carecia de atenção ao teatro, mas as lutas dos partidos, os problemas sociais, a participação na Grande Guerra retiraram-lhe as oportunidades de cumprir o prometido, não só, mas também, nesta área cultural.

Há então que esperar pela fixação da Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro no Teatro Nacional, a partir de 1929 (até 1964, no mesmo edifício), para, em anos sucessivos, se assistir a sucessivas récitas vicentinas, as primeiras das quais ainda com colaboração dramatúrgica do referido Lopes Vieira. Privilegiam-se, então, os autos pastoris e a sequência "Todo o Mundo e Ninguém" da Lusitânia , nos anos 30, a Barca do Inferno e a Alma , na década de 40, a Índia na de cinquenta (e, talvez, O velho da horta e a Inês Pereira , duas peças de enredo).

No entanto, sobretudo no que às Barcas respeita, mas não só, entre 1938 e 1968, os seus grandes arautos são o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e, mais tarde, o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC); o primeiro com direcção do professor Paulo Quintela levou Gil Vicente a África, ao Brasil, à Europa, apresentando espectáculos já marcados por critérios de modernização evidentes no tratamento do texto, na encenação, no aparato cénico, no jogo de luzes; o segundo, empenhado numa ainda mais funda actualização dramatúrgica foi, em muitos aspectos, o seu complemento avançado. 9

Novas comemorações em 1965 (tendo em conta uma possibilidade de nascimento do autor cerca de 1465, como em 1937 se admitira celebrar um centenário do falecimento). Recordo-as ainda: plano de uma boa edição, congresso, debates dispersos, representações, naturalmente.

Entretanto, e com o rodar dos anos, ao trabalho do Teatro Nacional e de alguns grupos já conhecidos, outros grupos vieram somar o seu: o Teatro dos Estudantes do Porto, TEP (n. 1953, representa Gil Vicente em 1964), o Teatro Experimental de Cascais, TEC (n. 1965, representa Gil Vicente em 1966), a Comuna (n. 1972, representa Gil Vicente em 1972), a Cornucópia (n. 1973, representa Gil Vicente em 1988), o Centro Dramático de Évora, CENDREV (n. 1975, representa Gil Vicente em 1978), a Barraca (n. 1976, representa Gil Vicente em 1976) e outras companhias que, ou arrancavam com Gil Vicente, ou a ele se acolhiam depois de diferentes tentativas, o que, evidentemente, algo quer dizer quanto à recepção do público.

Talvez de 1966, data um perfil de realizações que se vulgarizou em seguida, o das colagens: textos de Gil Vicente em justaposição ou de excertos vicentinos e excertos de outros autores, ligados por fios temáticos, pela similitude de tipos sociais, por idênticas posturas críticas ou pela presença de um apresentador que vai comentando o que se passa; simultaneamente, as adaptações tornaram-se mais ousadas, funcionando a obra de partida quase como uma mera sugestão para a obra de chegada. 10

Caminhando a passos tão largos, mas, relativamente a alguns espectáculos atrás sugeridos, permitindo um certo recuo, chegamos a 1974 e somos colocados claramente perante a desmesurada insistência no Auto da Índia .

Bem-sucedida a revolução dos cravos e feita (nem sempre optimamente) a descolonização, entraram os encenadores na euforia de mostrar (ou tentar mostrar) que sempre tinha havido bons espíritos a condenar a largada das naus para longes terras; interpretação com uns pozinhos de exagero, concordemos, mas com uma boa intenção a motivá-la.

No entanto, nem por isso se viram costas às experiências de justaposições, cruzamentos ou pessoalíssimas leituras dos textos, assim se prolongando feituras e ousadias que dão sinais de uma certa via de continuidade relativamente ao que se começara no período anterior: trocam-se lugares nos desfiles vicentinos, acrescentam-se ou suprimem-se figuras, cola-se Gil Vicente a Gil Vicente (muitos títulos se poderiam inventariar; é possivelmente o que mais se fez), Gil Vicente a Brecht ( A ceia , Comuna, 1974), a Ruzante ( Histórias de fidalgotes e alcoviteiras , Barraca, 1976), a António José da Silva ( Réus e juízes , Teatro de Almada / Teatro de Campolide, 1985), a Jarry ( Mas, afinal, quem é o Frank? , Efémero-Companhia de Teatro de Aveiro, 1995) e a muitos outros.

Talvez nem valesse a pena acrescentar, porque é óbvio, desaparece quase por completo o tratamento arqueológico dos textos, com a modernização de cenários e de figurinos, de cantares e até de registos discursivos, o que, evidentemente, provocou discordâncias, aplausos, troca de pontos de vista, pelo menos.

Afinal, passa-se com o teatro português o que, um pouco, se vai passando por todo o mundo na nunca suficientemente discutida questão das adaptações dos clássicos, problemática a que a nossa vizinha Espanha, de rica e sempre louvada dramaturgia, muita atenção tem vindo a dar.

Será que assim vão continuar as coisas? Traria a aproximação das celebrações do quinto centenário do Monólogo do vaqueiro uma maior atenção a cada obra unitariamente considerada? Continuariam as acomodações a esconder de nós o verdadeiro texto vicentino? A esquivarem-se à reconstrução de unidades dramático-teatrais com o rosto que o autor lhes deu?

Eram perguntas que a nós próprios íamos fazendo.Teremos respostas?

Quatro anos de Gil Vicente

Antes de as procurar, porém, sinto-me obrigada a identificar a razão de 1998 como ponto de arrranque: era preciso encontrar um, e nesse ano transcorria a Exposição Universal em Lisboa; uma representação em pleno Tejo , pela Barraca, chamou a atenção para novas potencialidades das sempre amadas Barcas e para um interessante circuito sobre determinadas vertentes da criação vicentina, numa leitura de aproximação entre séculos distantes.

Esclarecimento feito, voltemo-nos para o que agora mais nos importa, ou seja, saber como se vai reagindo ao problema colocado (que Gil Vicente se mostra ao público?); inviabilizado, por razões de tempo e espaço, um historial (quase) completo da fase, que balizei, tentarei, no entanto, inventariar linhas de força com apoios em representações vistas ou, se necessário, em notícias colhidas, preferindo esboçar perfis a hierarquizar méritos, uma vez que, do não visto, não é lícito ajuizar e, do visto, não pretendo ser cardeal diabo .

Há, claro, os afectos que levarão à excepção que confirma a regra. Aqui e ali, inevitavelmente.

Sempre com a preciosa ajuda da base de dados do CETFLUL, posso aparentemente alinhavar alguma informação de conjunto para o período transcorrido entre 1998 e 2002, após o que me atreverei ao convite para uma visita um tanto mais circunstanciada a certas representações. Insisto no aparentemente porque as bases de dados, como muitas vezes a imprensa, oferecem títulos, elenco de encenado­res, actores e outros responsáveis pelo espectáculo, mas só com razoável avareza nos comentam a dramaturgia. O que, aliás, é natural; muito fazem elas.

Dou frequentemente por mim enredada em alguns sarilhos porque muitos espectáculos há que mantêm títulos vicentinos, mas levam tão longe as adaptações que os originais quase nos saem do alcance. Ou seja, um auto da Mofina Mendes de Gil Vicente, por exemplo, pode estar perfeitamente travestido num auto do senhor fulano de tal.

Isto não é à partida uma censura, é antes um conselho de precaução e um desabafo: quando tal sucede, uma explicação nos deveria ser dada em bons textos de apoio, pelo menos. Não estou a negar a importância de uma dramaturgia criativa, estou de acordo com os que defendem que respeitar um clássico não é embalsamá-lo, só que há formas e formas de o trazer até nós, umas desvirtuam, outras não.

De qualquer modo, tentemos arrolar esses tais fios catalisadores de interesses dos últimos quatro anos, procurando que neles fique implícito um esboço de tranquilidade para as nossas inquietações.

Aqui os temos connosco:

- raramente se apresentam traduções de obras espanholas; 11

- ao encenar obras bilíngues, porém, tende-se a recorrer a versões parciais (ou totais) para português dos fragmentos espanhóis; 12

- verifica-se um certo equilíbrio na escolha entre as obras religiosas e as profanas, mas não é raro que se atenue, nas primeiras, a carga doutrinária; 13

- foi possível rever, uma ou outra vez, a apresentação conjunta das três Barcas ; 14

- ampliou-se o leque de opções no quadro da dramaturgia vicentina; saudaram-se assim algumas estreias e regressos aos palcos de autos tão genuinamente vicentinos como o Pastoril português e a Cananeia ; 15

- o Auto da Índia e o Auto da barca do Inferno continuam nos tops ; a Barca sempre foi muito querida dos portugueses; a Índia , aliás, uma bem urdida peça, não desceu nas sondagens. Julgo que isto tem também a ver com a inclusão de ambos os textos nos programas do ensino pré-universitário; 16

- Inês Pereira , também encaixada nas opções do Secundário, baloiça um pouco na popularidade; 17

- certas localidades como Évora e a Covilhã apostam ainda, uma vez ou outra, num critério de escolhas que vem um pouco de trás, ou seja o de representar autos que, com as suas regiões, algo têm a ver ou porque ali foram mostrados pela primeira vez (Évora, Romagem ) ou porque situações e personagens remetem para as regiões de que fazem parte (Covilhã, Clérigo ), mas a verdade é que, relativamente ao passado próximo, essa tendência se vem esbatendo e a gente de teatro está a libertar-se de tal condicionante (que nada tem de condenável, evidentemente);

- o fenómeno da itinerância alargou-se; as companhias têm viajado mais, sobretudo no país, mas não só; é frequente passarem a Espanha e até a nações mais afastadas;

- relativamente ao elenco das colagens/montagens, subiu a percenta­gen dos espectáculos que se ficam pela reposição de textos individualizados (autênticos ou transformados, que isto não esqueça);

- nas colagens (e não só), a selecção orienta-se normalmente para o que tem a ver com a crítica social e com as sátiras ao poder; e é pena, porque se perde muito Gil Vicente.

 

Um punhado de colagens

De colagens falámos, para o bem e para o mal, e com elas vamos encetar este apartado quadrienal.

No marco de uma enumeração que, reconheço, pode ressentir-se de uma busca não exaustiva, deixo alguns títulos, breves informes retirados da imprensa ou de programas e um par de notas pessoais sobre aquelas de que fui espectadora.

Começo com os primeiros.

Em 2000, o Inatel (Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos trabalhadores) juntou a Visitação , partes(?) da Barca do Inferno , da Índia e da Inês Pereira , num espectáculo intitulado O monstro verde (texto este de diferente autoria, suponho, que deu nome ao arranjo), arranjo que um periódico apresentava como "cabaret vicentino em tom fadista-trapalhão, a partir da Barca do Inferno , Auto da Índia , Farsa de Inês Pereira , a que se juntam personagens de Garrett"; cinco actores estiveram em cena. 18

Entre dezembro de 2000 e janeiro de 2001, no Teatro Maria Matos, de Lisboa, foi essencialmente pensada para a juventude escolar uma reposição simplificada das Barcas a que, segundo nota de um crítico de teatro, se agregaram, "sem nada de monótono ou de poeirento", réplicas da Feira e do Breve sumário , procurando uma reflexão sobre "a criação do mundo, o tempo, a morte, segundo o cristianismo". Ao todo deu-se o título de As barcas - Viagens de vida e de morte . 19

Para a Casa da Comédia (Lisboa), foram encenadas Mulheres de Gil Vicente (2000-2001), vasta galeria de "pastoras que discutem o casamento, mães solteiras, criadas, parteiras, senhoras adúlteras, meninas casadoiras, casamenteiras e ciganas", num painel de validade intemporal que liga os pecadilhos e os preconceitos de Quinhentos aos dos nossos dias. 20

No Convento de S. Francisco da sua cidade, primeiro, e depois noutros espaços, o Teatro de Portalegre começou (?) neste ano de 2002, em março, uma curiosa associação da Visitação , de Farelos e da Índia . Com o primeiro dos autos pretendia-se comemorar o seu quinto centenário, os dois restantes eram mostrados como se de uma continuidade se tratasse: a protagonista (solteira) de Farelos vinha a ser a Constança (casada) da Índia , ambas (ou uma só) representadas por um travesti (José Mascarenhas, director do grupo); na terceira peça, aguardava-nos ainda a surpresa de um marido despido de ingredientes cómicos.

Rapidamente retransmitidos estes poucos dados que, com excepção do que ao Teatro de Portalegre diz respeito, só por alheia transmissão apanhei, volto-me com mais à vontade para três representações a que gostosamente assisti, mantendo, porém, a promessa de atenuar encómios e censuras.

Há dois anos (2000), o Teatro da Cornucópia aventurou-se ao enlace da Frágua d'Amor e da Floresta de enganos , obras ambas dadas ao público pela primeira vez em Évora, uma em 1524 e outra em 1536 (talvez a derradeira de Gil Vicente). Ao todo chamaram Amor/Enganos . Obras bilíngues, foram os fragmentos castelhanos traduzidos por José Bento, uma vez que falhara o projecto inicial de um trabalho conjunto da companhia de Luís Miguel Cintra com uma companhia espanhola. 21 Novos cantares, acompanhamento de gaita e foles, razoavelmente deixados à improvisação dos actores, presença de uma espécie de narrador que acumula funções do Peregrino da Frágua e do par Filósofo-Parvo da Floresta , floresta que, aliás, compõe o cenário, toda de azul, carregada de símbolos e com uma escada para o céu.

Textos povoados de enigmas, como estes, deixam naturalmente abertura para uma pluralidade de leituras, de entre as quais se retirou, nesse caso, a da mudança de identidades (gente que se perde e transforma numa emaranhada floresta), sem nunca se desvirtuar o registo vicentino. Nos dois textos, à Terra desce o deus do Amor, nos dois, nessa interpretação, sai perdedor: a sua frágua não consegue mudar por completo certas personagens (o Negro é um bom exemplo); é burlado por uma humana a quem pretendia burlar, mas por quem estava sinceramente apaixonado.

Palavras do programa:

 

E foi assim que demos por nós a inventar um conto "Os desastres de Cupido". É na Floresta de Enganos, metáfora do Mundo, a que preside, como procuradora de Deus a deusa Ventura, que tudo decorre. O menino Cupido fugiu da deusa Vénus, sua mãe, e desce à terra para fazer a festa com um grupo de Serranas e de Planetas transformados em ferreiros duma forja do Amor, vem mudar os corações dos portugueses, transformar os homens, pôr o mundo a direito, dar-lhe alegria. Mas o mundo é uma floresta de enganos em que o próprio Cupido se viu enredado.

 

Em Mestre Gil (Teatro Há-de Ver, 2002), com três actores, num palco quase nu, apenas com certos objectos que oportunamente vão sendo utilizados, cantigas e algumas vestes dos nossos dias, e esperando a participação do público, João Ricardo "desenhou", palavra sua, um guião com colagens de variadíssimos textos do dramaturgo, que homenageamos, aqui e ali introduzindo algo da sua lavra para permitir as ligações.

Gil Vicente, personagem também, e das principais, vai-nos dando conta do seu percurso de criador, ora lendo versos em fase de composição, ora conversando com gente da corte, como d. Leonor, sua protectora ou com os que contra ele intrigavam ou inquisitorialmente o perseguiam. Há, assim, vozes estranhas aos escritos fundadores, para além das do próprio autor, como a Rainha Velha, uma Mulher, um Nobre, dois Velhos, dois membros do baixo clero, um Bispo.

 

Importante salientar, num espectáculo com fragmentos tão diferenciados, a capacidade gestual e a rápida movimentação dos três actores.

No programa, pede o encenador a nossa atenção para os seguintes aspectos:

- Caracterização da personagem de Gil Vicente e o papel dos textos do autor nessa mesma caracterização;

- Diferenças / semelhanças entre os diferentes tipos de peças [.];

- Comparação crítica entre o texto escrito / lido e o texto falado / dramatizado;

- Influência de guarda-roupa e adereços;

- Papel da mudança de personagens e de guarda-roupa dentro do palco [.].

 

De uma montagem com três actores passamos para outra com apenas dois, simultaneamente fazendo de homens e de mulheres, de velhos e de jovens, de presentes em cena e de ocultos nos bastidores; idêntica forma de conceber um espaço nu, onde de início unicamente vemos um malão do qual, a pouco e pouco, irão saindo os ingredientes que caracterizam as personagens. Estamos na Casa de Teatro de Sintra a assistir a e a intervir em Desconsertos , com encenação de João de Melo Alvim. 23

O nosso primeiro encontro será com os compadres e com as comadres da Feira , já sabemos que cada qual se queixando do cônjuge que lhe caiu em sorte.

Numa ida à feira não fica mal pensar na compra de farelos e, assim, passamos para o atabalhoado diálogo entre os dois criados de Quem tem farelos? , meio vicentino, meio alterado, mais em português do que em castelhano, dando de seguida o lugar ao aparecimento do Escudeiro galanteador, este com novo perfil, pois, diferentemente do seu antecessor de Quinhentos, é bronco, canta mal e corteja ainda pior.

Teatralmente muito explorados são os ruídos de cães e gatos que dificultam a vida ao galã, bem como o soletrar cómico de cantigas que não chegam a ser cantadas.

Gatos miam e o seu miar dá um bom pretexto para a entrada no auto da Índia , quase na íntegra apresentado, com personagens fortemente caricaturadas (sobretudo Constança), talvez, um Lemos e um Castelhano menos diferenciados do que no original e um marido mais tonto. Terminado o espectáculo, fica-nos sobretudo a lembrança do forte jogo histriónico: gestos, esgares, constelação de movimentos, acompanhando ou sobretudo substituindo-se às palavras, rapidez nas alterações de tonalidades e ritmos são as testemunhas melhores da força desta representação.

Palavras da imprensa, enquadrando outras do director da companhia:

 

Segundo a apresentação de Melo Alvim, o [.] espectáculo, evidenciando o "desconcerto do mundo, projectado no desentendimento entre os seres humanos", é "encenado em registo de farsa" e baseado na arte de representar dos clowns [.]. 24

 

Que se fez com estes textos?

Anúncios de obras levadas até ao público não nos faltam; informação complementar há alguma, mas mais são as lacunas do que as certezas relativamente a dramaturgia e encenação. Em todo o caso, prestemos contas de um (parcial) elenco de exibições, assinalando as que a diversos grupos interessaram, para, de seguida, algo mais ponderado podermos acrescentar sobre a actividade recente das duas companhias que, em meu entender, com relativa continuidade, mais de perto têm aproveitado as sugestões vicentinas: a Barraca e o Centro Dramático de Évora (CENDREV).

Entre 1998 e 2002, os portugueses puderam entreter-se com o Auto pastoril português (CENDREV, 1999), o menos divulgado dos autos pastoris natalícios de Vicente, e, por isso mesmo, escolhido pela cidade alentejana para assinalar a passagem ao ano 2000; O juiz da Beira (Grupo de Teatro do Odeon, Cascais, 1999 e itinerância); o Pranto de Maria Parda (Teatro Taborda, Maria 99 , e CENDREV, 1999); o Auto da Cananeia (apoio do CETFLUL, 2000-2001); a Romagem de agravados (Beja, Companhia Arte Pública, 1999 e Caldas da Rainha, Escola Técnica Empresarial do Oeste, 2000); a Comédia de Rubena (Companhia Baal, Serpa, 2001); o Auto da visitação (Teatro Nacional de São João, Porto, 2002 e Teatro Experimental de Cascais, 2002); O clérigo da Beira (Teatro das Beiras, 2002); a Farsa de Inês Pereira (UBATI, Universidade Bracarense da Terceira Idade, Braga, 2002); um Auto das fadas parente afastado de Gil Vicente, mas, de qualquer modo interessante ( @uto das fadas 2.2 , Mandrágora, 2002), descrito como "brincadeira multimédia" pela imprensa, 25 mas cujo autor, com quem contactei, faz saber que se trata de uma pessoal reescrita dramática e justifica intenções:

 

Pegar no clássico e memorizar as imagens sugeridas foi o princípio; em seguida, introduzir uma grafia que nasce do gesto incontrolado da mão; a mão, que reescreve, desenha perante um olhar que observa sem, no entanto, intervir [.]. 26

 

Acerca do cenário, diz-nos:

 

Espaço branco. Instalação plástica com computadores que serão ligados pela Feiticeira, ao entrar em cena. Um vídeo poderá apresentar as personagens. Os ambientes sonoros deverão estar relacionados com as novas tecnologias. Ao serem ligados, os computadores deverão projectar como primeira imagem uma gravura de Gil Vicente [.]. 27

 

Mas, atenção, esta escrita acolhe todas as personagens da obra quinhentista, a par e passo acompanhando o desenrolar do seu flexível argumento.

Revisitações da Índia , é facil de adivinhar que não faltaram: o Grupo Focus, no Belém Clube, em 1999 (há referências a figurinos streetwear , a erotismo, a ligeireza) 28 ; o Teatro do Sopro em Almada, 2000; o Teatro Oficina em Guimarães (Festival de Teatro do Vale do Ave, 2001).

Em 2002, todavia mais. O Sonho, em Portimão, para alunos do Ensino Básico; a Casa de Teatro de Sintra, (marionetes?); o Teatro Maria Matos, em Lisboa; o Teatro Nacional D. Maria II, com entrada gratuita para alunos do Secundário; o Ergteatro, de Câmara de Lobos, no Funchal.

A Almagro, ao Festival Internacional de Teatro, a Crinabel, uma escola de crianças deficientes, levou uma Índia que fez sucesso; por desentendimento na informação, não consegui assistir ao único espectáculo mostrado em Lisboa; sei apenas que, para dar possibilidade de participação a toda a escola, se criava um razoável número de figurantes, como que uma comunidade de vizinhos que se despedia na largada das naus e as aguardava.

Possível seria ir mais longe nos afectuosos acenos a esta farsa, possível mas sem muito interesse porque me limitaria a prolongar uma lista que já se vem tornando bem sensaborona.

Deixemos, então, o caminho para o Oriente para ir dizer o nosso adeus aos que embarcam para o outro mundo de onde, verdade seja dita, nunca nos deram notícias.

Terá havido das Barcas ou, pelo menos, da Barca do Inferno , alguma representação em que a fidelidade ao guião vicentino fosse dominante, apesar das indispensáveis tarefas de dramaturgia? Com a mesma ordenação das figuras, texto mais ou menos respeitado, identidade de objectivos (não só fazer rir e criticar, mas também ensinar)? Confesso que disso não tenho notícia fidedigna; aguarde-se, no entanto, o que adiante terá de ser dito sobre a mais recente reposição da chamada trilogia , enquanto um conjunto de notas soltas dará azo à escassa satisfação da nossa curiosidade sobre quem se salva e quem se perde, com o nosso olhar cruzando o do antepassado Gil Vicente.

Num festival Gil Vicente 2000 , o grupo O Sonho representou, na Universidade do Minho, a primeira das três embarcações, em outubro de 1999; no Teatro Maria Matos, em 2000, parecem ter-se mostrado as três (?); dois anos mais tarde, em Vila do Conde, com coro da matriz e participação de gaiteiros, professores e estudantes retornava-se ao velho texto (será Os mitos da barca dos mortos de que recolhi uma sucinta notícia? Será o grupo Formas Vivas o responsável?); Filandorra, Teatro do Nordeste, lembrou-se de, com o Inferno , comemorar o dia mundial do teatro em março passado, entre a Guarda e Vila Real, num troço da estrada IP4 particularmente perigoso, para o que lhe não deve ter sido difícil reunir boa colaboração da PSP, da GNR e da Associação de Utilizadores.

Mais fácil e produtivo me foi, porém, o contacto com o Trigo Limpo (actuações em Ermesinde e no Porto) que, procurando macular o menos possível o texto de Gil Vicente (assim me disseram), parece ter apostado numa original encenação: Anjo e Diabo confundiam-se num mesmo actor, com idênticas técnicas de sedução, mas ambos acabavam vítimas das burlas do Parvo que chegava ao ponto de os engaiolar; diante do público, o Fidalgo ia-se desdobrando nas outras figuras, diversamente ordenadas e privadas da aparição dos Cavaleiros.

Outras e outras Barcas navegaram pelo meu país, mas delas não sei história que mereça ser contada.

A não ser a única que se seguirá às prometidas apreciações dos trabalhos do CENDREV e da Barraca a que tive ensejo de assistir.

Começo com a Romagem de agravados (CENDREV).

Vi a representação numa pequena aldeia, perto de Montemor-o-Novo, numa noite de julho, meio iluminada pela lua, meio iluminada pelos focos artificiais; muita gente nas cadeiras improvisadas, algumas para actores que junto de nós viriam sentar-se, criando curtas ilusões de teatro no teatro ou de uma cumplicidade actuante.

O texto era totalmente vicentino, os trajes em grande parte, excepção feita às Regateiras, cujas saias muito curtas as deslocavam de Quinhentos, de um fidalgo que poderia lembrar um nobre de entre os séculos XIX e XX e sobretudo de frei Paço, qual sacerdote moderno no vestir, nos ademanes e nos múltiplos registos da fala; ao fundo, uma cortina "pano de boca e reposteiro áulico" 29 com os símbolos heráldicos; uma passadeira alcatifada suportava o desfile das personagens, vivas, muito vivas, dum modo geral, saindo de trás de um músico que assinalava cada entrada, colocado exactamente no ponto oposto àquele em que mais frequentemente se encontrava frei Paço; pequenos truques de modernização como a foto assinada que o incompreendido enamorado traz consigo; remate muito festivo com a celebração da Primavera e as provas de alegria pelo nascimento do príncipe.

E, porque sobre função ao ar livre se escreveu, voltemo-nos para uma Maria Parda (reposição de anteriores apresentações) a prantear-se pela falta do vinho, num espaço rodeado de vinhas, em Guimarães de Tavares, junto a uma centenária mansão; como cenário , um alpendre mais comprido do que largo e algumas colunas; ao fundo ripas de madeira, a meio, uma pipa que, virada ao contrário, servirá de barco da Morte, quando, desesperada, a protagonista se agarrará ao esqueleto, que a corporiza, e com ele embarcará.

O pranto avulta sobre o testamento (a peça comporta duas partes) e, talvez por isso, pode-se admirar sem reservas a sabedoria de Maria do Céu Guerra que, sobretudo na primeira, inteligentemente alonga o texto com movimentos, gestos e esgares de dor e de esperança, parciais repetições de versos ou palavras soltas, a ela competindo também a imitação das negaças indesejadas dos inquiridos taberneiros. 30

De louvar ainda uma certa preocupação pedagógica que permite, como se de notas de rodapé se tratasse, actualizar alguns vocábulos quinhentistas.

A palavra para a encenadora, chamando a nossa atenção para o lado sério da suposta farsa:

 

O Pranto de Maria Parda.

Fundamentalmente o itinerário de uma privação.

Privação dolorosa, insustentável. Privação que

Impõe a figuração da Morte.

[...]

Maria Parda no barco de Dionísio, à volta do

Mundo do vinho e do teatro. 31

 

P'la mão de Gil Vicente se intitula um dos projectos da Barraca para este ano de comemorações vicentinas, projecto que, além desta reposição, inclui exibições de O velho da horta , já admirado por muitos, em pleno verão, no passeio marítimo de Belém, do Auto das fadas , da Farsa de Inês Pereira e da Comédia de Rubena de que pude também ser espectadora. 32

De acordo com um padrão hoje comum no teatro, o vazio do palco é apenas quebrado por uma peça de varas metálicas, colocada a meio (servirá de cama, berço, caixão, compartimento de uma casa), por um longínquo instrumento talvez de fiandeiras que, a partir de certo momento, com cantares e curtos diálogos, acompanham o desenrolar do argumento e com árvores de um lado e do outro, acusando os câmbios de iluminação.

Fundamentalmente em português, conserva um cantar em espanhol, logo traduzido, e naturalmente muitos são os excertos musicados (às vezes com baile), até com efeitos cómicos, como é o caso das tentativas melódicas da ama, a evidenciar a chamada voz de cana rachada .

Espectacular a actuação dos Diabos que se prolonga para além do texto, com o envolvimento do fumo infernal, bem-sucedida a actuação das carpideiras que, hipocritamente, vão interrompendo a hipócrita fala da Beata, acentuada a importância estética do Eco e divertido o desvario do Velho apaixonado.

Para Rubena e Cismena, ouçamos ainda a encenadora:

 

E, se no caso desta peça, que conta duas histórias, uma que acaba mal, a de Rubena, e outra que acaba bem, a de Cismena (o que lhe autoriza a designação de comédia) se tem dito que é feita ao gosto da corte do tempo e que marca uma opção pelo entretenimento puro, não podemos ter dúvidas que a empatia está colocada na personagem que transgride, que é abusada e que é mal sucedida.

É por isso que penso que Rubena e Cismena, ao contrário do que tem sido feito, não devem ser interpretadas pela mesma actriz, nem sequer devem ser parecidas em sinais de encenação. Porque não devo dar nenhum sinal que atenue o destino dramático de Rubena. 33

 

E as "Barcas" atracam no Rossio

Não consegui, em 2000, ajuizar, no Porto, da encenação da por muitos ainda chamada trilogia das Barcas ; para complementar, em actas, uma amistosa intervenção num colóquio em homenagem à professora Cleonice Berardinelli, sobre viagens e viajantes destas alegóricas embarcações, recorri às críticas mais autorizadas e às opiniões de alguns amigos.

 

E escrevi:

Por enquanto, fica, nesta nem sempre teatralmente muito feliz contemporaneidade, isolada a ditosa iniciativa do Teatro Nacio­nal de S. João, pela qual o ano 2000, vicentinamente falando, ainda que outras experiências não tivesse conhecido, poderia considerar-se bafejado pela sorte; exactamente por essa oportuna subida ao palco principal do Porto, das Barcas , encenadas por Giorgio Barberio Corsetti, com dramaturgia de João Grosso, aliás, ajustadamente vestindo a pele de Diabo, entre um excelente elenco de dezasseis actores, a que o falecimento inesperado, tristemente, arrancou Fernanda Alves, por sua vez, destinada a representar o Anjo.

Confessando não conhecer os textos antes da solicitação de Ricardo Pais, o encenador, e parcialmente cenógrafo, fez deles uma estimulante leitura, pela conciliação da sua nunca discutida actualidade com traços linguísticos epocais (terá conseguido caracterizá-los?), mantendo em castelhano o que em castelhano estava (toda a Barca da Glória ) e acentuando determinadas reali­za­ções fonéticas, como, por exemplo, a pronúncia das sibilantes.

Ficou visível o cuidado textual, até pela preferência dada, dum modo geral, à primeira edição da Barca do Inferno (1518), como visível ficou complementarmente a modernização do cenário, sempre o mesmo, de barcas só conservando vestígios pela presença de mastros distorcidos e de remos semi-furados; um primeiro plano preenchido por dois montes (à esquerda, o ancora­dou­ro do Inferno, com sinais de instrumentos de tortura e, à direita, o do Paraíso, apenas com uma cadeira onde se sentava o Anjo), entre os quais se processava o desfile dos recém-chegados, e um segundo plano, a sugerir um rio lentamente se espraiando, impunham um espaço despojado, agreste e inóspito que não convidava à permanência.

Para serem representados na íntegra, só faltaram aos autos a figura da Moça ( Barca do Purgatório ), por imprevisível impedimen­­to da actriz escolhida e, o que diferentemente se traduz por uma alteração da proposta final de Gil Vicente, a não realização cé­nica da didascália final ( Barca da Glória ) que indiciaria a salvação dos pecadores arrependidos pela directa intercessão de Cristo.

Trajes modernos para as figuras do primeiro auto, onde, aliás, Anjo e Diabo apareciam inicialmente tomando o sol em roupão, a cada passo, a alertarem para parecenças com actuais burgueses apressados e interiormente empobrecidos, e para as do segundo, preenchido por gente simples, apegada a um dia-a-dia campesino e despretensioso; trajes quinhentistas para o terceiro, a cobrir de densidade o julgamento dos grandes, com uma Morte totalmente de branco a despegá-los dos desnecessários adornos e um Diabo que, de andrógino sedutor no início (saltos altos) e, de friorento e fragilizado, pelo meio (casaco de peles), se torna no grande inquisidor que, no final, estende o dedo aos pecadores, resolvendo pelo castigo o trágico conflito que os dilacera.

Em consonância com falares, gestos e simbologia espacial, as luzes e a música intervinham activamente nas atmosferas desejadas, também elas sacudindo o espectador que Corsetti pretendeu abalar, muitos séculos depois de Vicente, mas como seu bom imitador.

Recolhamos algumas das suas palavras:

- Ler as Barcas como se tivessem acabado de ser escritas.

Como pode prender-nos, a nós laicos e modernos, a componente devota e litúrgica que é fundamental na poesia de Vicente?

- O além, a outra vida em todas as suas possíveis representações, terríveis e grandiosas, é um lugar que visitamos na nossa vida profunda, nos nossos sonhos.

[...]

- Pensar que as personagens do Inferno e do Purgatório possam encontrar-se ainda num qualquer mercado, num qualquer tribunal.

Pena que, como inicialmente estava previsto, o espectáculo não tenha podido repetir-se no Porto 2001, capital europeia da cultura. 34

 

Passaram dois anos e tive, há pouco tempo, a possibilidade de assistir, no Teatro Nacional D. Maria II, à sua reposição, com ligeiríssimas modificações, desde logo, no elenco de actores.

Apressadamente tomei as seguintes notas:

- não sei se alguma vez se tinha visto em Portugal uma representação tão fiel ao original, apesar de, em Lisboa, se ter desistido um pouco da imitação da pronúncia da época;

- ao agrado do recurso à edição de 1518 para a Barca do Inferno (com escassas alterações), soma-se, insisto, o da recuperação do castelhano da Glória , com raras incursões nos nossos palcos, e, mesmo assim, em tradução portuguesa; 35

- nunca é demais acentuar o papel das luzes e da música, componentes fundamentais deste espectáculo, apesar de a crítica lisboeta não ter sido especialmente elogiativa quanto ao acerto melódico; 36

- reparei na imobilidade do Anjo (regresso de Glória de Matos ao teatro), apenas quebrada na Barca do Purgatório , em que a própria Virgem, como ele, passa por entre os mortais;

- medi para mim mesma a altura e a inacessibilidade do monte em que, normalmente, ele se mantém, em claro contraste com aquele em que os diabos dão ordens e os ocupantes se contorcem;

- fui sensível aos meios encontrados para teatralizar a segunda Barca , sempre mais desprezada do que as outras e, não raro, apenas valorizada pelos excertos líricos;

- Acompanhei, com concordância, a presença actuante dos remos, a cada passo, funcionando, nos dois últimos textos, como barreira às tentativas do Diabo;

- guardei, da Glória , o jogo do branco e do preto, a hábil rapidez no retirar das roupas aos grandes deste mundo e o aparecimento do Cristo da Ressurreição, omisso no Porto, mas que, quanto a mim, é fundamental para não atraiçoar a mensagem vicentina: salvam-se os arrependidos. Ainda assim, gostaria de uma presença cristológica mais forte;

- uma grande interrogação me ficou: Por que os trajes tão militariza­dos para os Cavaleiros? Com tão agressivas armas, como iriam para o Paraíso?

Para ajudar a acompanhar de longe a dramaturgia, fragmentos de uma entrevista com João Grosso.

Sobre a ausência de barcas em cena e sobre a actualização de figurinos:

 

Essa era uma das premissas da encenação do Corsetti; fazer uma aproximação livre aos textos e, em vez de explicitar tudo cenicamente, criar em palco estímulos para a imaginação do espectador. Daí que [.] não haja barcos em palco. [.] Os figurinos têm, de facto, referentes actuais no Inferno e no Purgatório, porque aquelas personagens, que ali falam, podiam ser gente de hoje. [.] 37

 

Sobre a referência a insígnias das personagens:

 

O Corsetti reduziu ao essencial esses adereços. A Brísida Vaz aparece praticamente nua, embrulhada num enorme lençol e com três almofadas. O que define desde logo a sua condição de alcoviteira. 38

 

Sobre a alteração na pronúncia, menos quinhentista em Lisboa:

 

Nesta remontagem achei que tanto os actores como os espectadores deveriam fazer menos esforço para dizer e compreender o texto. 39

*

Cai o pano, vão-se as naves, e eu não sei se me dê por salva nesta aventura em que embarquei.

Sem diabos por estas bandas, não vou perder a esperança.

Mas o mais grave, o gravíssimo, é que não estou arrependida.

Por que arrepender-me de, uma vez mais, mergulhar em Gil Vicente ?

 

 

Notas de Rodapé

1 Na realidade, muitas têm sido as companhias independentes a interessar-se por Gil Vicente, sobretudo desde junho; em Coimbra, que será em 2003 capital portuguesa da cultura, os espectáculos vão prolongar-se com a visita de grupos de outros pontos do país e continuação do trabalho da Escola da Noite (prestigiado agrupamento local); a Barraca (Lisboa) prossegue igualmente com um projecto que inclui a apresentação de diversas peças. E outros exemplos poderiam ser dados. Pena que os Teatros Nacionais não tenham revelado igual entusiasmo, apesar da representação das Barcas de que adiante falarei.

2 Este teatro esquecido está felizmente a ser recuperado, sobretudo no que com edições tem a ver, pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e por um grupo de investigadores da Universidade da Extremadura (Cáceres); um Auto de Santiago , de Afonso Álvares, foi entretanto publicado com introdução de Juan Carrasco (Biblioteca-Arquivo Teatral, 2002).

3 Lembre-se a flexibilidade de um texto preceptivo como El arte nuevo de hacer comedias , de Lope de Vega (1609).

4 D. Francisco Manuel de Melo, Hospital das letras , introdução, fixação e notas de Pedro Serra, Braga / Coimbra, Angelus Novus, 1999, p. 61.

5 Sobre a questão da censura às obras de Gil Vicente, é ainda válido o estudo de I. S. Révah, " La Censure Inquisitoriale et les Oeuvres de Gil Vicente", Bulletin d'Histoire du Théâtre Portugais , I, 1, Lisboa, 1950.

6 Ocupei-me, de passagem, do assunto em "Teatro espanhol e teatro francês: o parecer crítico dos românticos portugueses", Estudos Ibéricos , Lisboa, ICALP, 1987.

7 O programa da actual encenação das Barcas historia o percurso de Gil Vicente pelo palco do Teatro Nacional D. Maria II.

8 Recordemos que, na sua adaptação da Barca do Inferno , a mais conhecida, Lopes Vieira, pensando num público impreparado, reduz consideravelmente a sequência protagonizada pelo Frade, omite um dos homens de justiça (menos latim) e a figura do Judeu, corta algumas réplicas e destaca a exibição da Alcoviteira.

9 À frente do CITAC esteve o encenador argentino Victor García conhecido pela ousadia das suas encenações.

10 A primeira, que recordo, é da autoria de Sttau Monteiro e intitula-se Auto da barca do motor fora da borda (Lisboa, Ática, 1966).

11 Há boas traduções, por exemplo, do Auto da barca da Glória e do Dom Duardos .

12 O Teatro da Cornucópia, por exemplo, tem utilizado os dois critérios e dado as suas justificações.

13 Na encenação das Barcas vista no Teatro Nacional de S. João, no Porto, em 2000, não se dava expressão à didascália final do Auto da barca da Glória , o que significava que as figuras não beneficiavam da misericórdia divina.

14 Como ficou parcialmente adiantado, pelo menos, no Porto, em 2000, e em Lisboa, em 2002.O espectáculo será mostrado também em Coimbra.

15 É provável que a Cananeia não subisse aos palcos desde a década de 40 do século XX.

16 As obras propostas para leitura no ensino pré-universitário são Barca do Inferno , Alma ou Feira , Inês ou Índia . E ainda se fala de reduções.

17 Em todo o caso, esteve em cena, no ano corrente (2002) encenada por umas quantas companhias. O espectáculo da Barraca, que vi depois de apresentada esta comunicação, sugeria, na armação, que suportava a casa de Inês, uma capoeira (Inês presa ao aborrecido quotidiano?), exagerava o judaísmo dos Judeus e as lágrimas na despedida da Mãe, assim ampliando os efeitos cómicos; o Escudeiro cantava mal e os assistentes à cantoria iam adormecendo para só acordarem com cantares mais animados e conhecidos.

18 Informação da Base de Dados do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

19 Diário de Notícias , 15 jan. 2001.

20 Informação do programa.

21 Informação do programa.

22 Recordo, por exemplo, a cantiga que acompanhava o genérico de uma telenovela então muito popular em Portugal.

23 O espectáculo seguinte seria a Índia .

24 Diário de Notícias , 03 out. 2002.

25 Correio da Manhã , 27 mar. 2002.

26 Almeida e Sousa, @uto das fadas , Tavira, Mandrágora / Bicicleta, 1999, p. 5.

27 @ uto das fadas , p. 7.

28 Público , 16 out. 1999.

29 Informação do programa.

30 A representação feita no Rio de Janeiro ressentiu-se naturalmente da surpresa do palco em arena.

31 Informação do programa.

32 Ver nota 1.

33 Informação do programa.

34 Izabel Margato (org.), Figuras da Lusofonia : Cleonice Berardinelli, Lisboa, Instituto Camões, 2002, p. 202-204.

35 Algumas vezes se representou a versão de Paulo Quintela.

36 Diário de Notícias , 14 out. 2002.

37 Informação do programa.

38 Informação do programa.

39 Informação do programa.