Gil Vicente em cena: 1998-2002

Apresentação

Estão reunidas neste oitavo número da Semear palestras apresentadas no X Seminário Internacional da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, realizado em outubro de 2002 na PUC-Rio. Durante três dias, a figura homenageada - o dramaturgo português Gil Vicente - tornou-se a principal motivação para que, sob a autoridade de especialistas, não só fossem apresentadas análises renovadoras da obra vicentina, mas também se construísse um intenso espaço de debate sobre as relações entre teatro e sociedade no decorrer dos cinco séculos (1502, ano de estréia do teatrólogo português; 2002, ano de seu quinto centenário) durante os quais a palavra e o corpo dos homens se ofereceram para a criação da apaixonante arte do palco.

No conjunto dos textos diretamente voltados para a dramaturgia de Mestre Gil, encontram-se aqueles que se dedicam a uma meticulosa pesquisa sobre temas obrigatórios da bibliografia vicentina, tais como a atilada crítica às instituições ("De clérigos, cônegos e frades", de Cleonice Berardinelli), a apropriação de gêneros literários medievais ("A permanência da novelística cavaleiresca no teatro de Gil Vicente", de Ronaldo Menegaz), as características de ordem lingüística e procedimentos que definem a teatralidade vicentina ("Uma leitura dos autos de Gil Vicente: o Auto da festa ", de Eneida Bomfim). A contextualização histórica e a filiação filosófica do inesgotável teatro do dramaturgo português recebem novos acentos em "Gil Vicente e o mundo em desconcerto", de Flávia Schlee Eyler, e "A corrigir o Cérebro-Ocidente (Erasmo de Rotterdam e Gil Vicente)", de Roberto Corrêa dos Santos.

A presença da obra de Gil Vicente na atualidade dos palcos portugueses foi reconstituída no trabalho de Maria Idalina Resina Rodrigues - "Gil Vicente em cena: 1998- 2002" . Superpondo o olhar de espectadora atenta e curiosa ao profundo conhecimento do teatro do autor, a professora descreve-nos a progressiva modernização do teatro vicentino, principalmente em encenações que optam pela pesquisa cênica e pelos múltiplos usos de procedimentos dramatúrgicos da colagem. A contribuição dos especialistas de universidades portuguesas ao tema central do seminário enriquece-se com o texto "As 'Partes d'Além' e os 'Pomares de Oriente': sinais do Império no teatro de Gil Vicente", em que José Augusto Cardoso Bernardes analisa de que modo as leituras documentalistas da obra vicentina forjaram, de modo desfocado, apreciações de tópicos sobre os Descobrimentos e a constituição do Império. O pesquisador apresenta-nos, diferentemente, a perspectiva de uma visada crítica interessada nos processos de constituição do cânone das literaturas nacionais, que tem como propósito rever o grande projeto identitário formulado em torno da obra do dramaturgo português.

O diálogo de Gil Vicente com o teatro de outros lugares e tempos funciona como mote para diversos estudos aqui publicados. Há os que refletem sobre a presença de obras dramatúrgicas em cidades e sociedades distantes do Portugal quinhentista como "O teatro e a pólis: Shakespeare e Londres", de Marlene Soares dos Santos; "Anchieta e Gil Vicente: linhas de prumo, linhas de flutuação", de Vilma Arêas. Há os estudos que partem de obras determinantes ou de temas, formas e figuras vicentinas para analisar produções do teatro brasileiro e português do século XX e de nossos dias, como em "Gil Vicente e o teatro moderno brasileiro", de Tania Brandão; em "Depois da Barca, cenas de outros infernos nas dramaturgias de José Cardos Pires e Oduvaldo Vianna Filho", de Maria Helena Werneck, e em "A barca do nosso Inferno: Apocalipse 1,11 do Teatro da Vertigem", de Silvana Garcia.

Este número da revista abriga ainda trabalhos que, sem fazer citação direta da obra de Gil Vicente, apontam para dois caminhos, entre tantos, que a linguagem teatral freqüentemente percorre. Um primeiro deságua no reprocessamento de formas populares como o melodrama, revisitado no texto " Se gostardes, plaudite - As formas do melodrama", de Pina Coco, e a comédia, gênero analisado no artigo de Cleise Mendes, "O comediógrafo, seu público, seu ofício". O segundo caminho aponta para o experimentalismo dramatúrgico, para o salto sem rede da invenção que desconstrói formatos e referências, quebrando os limites do palco. Neste caso, situa-se o teatro do brasileiro Oswald de Andrade, cuja obra O santeiro do Mangue é analisada por Renato Cordeiro Gomes no texto "As radicais experiências do teatro de Oswald de Andrade: entre o estético e o ideológico". E também o teatro simbolista, cujo projeto altamente renovador está contemplado no artigo de Walder Virgulino de Souza "Disjunções e outras formas contemporâneas de desmembramento e reconstrução do diálogo entre O marinheiro de Fernando Pessoa e Anticleia ou os chapéus-de-chuva do sonho de Pedro Barbosa, um dramaturgo do Porto".

A documentação do X Seminário Internacional completa-se com a transcrição da mesa-redonda, em que, sob a coordenação de Bernardo Jablonski, os autores e encenadores Hélder Costa (diretor do grupo A Barraca, de Lisboa), Luiz Fernando Lobo (diretor da Companhia Ensaio Aberto, do Rio de Janeiro), Eduardo Tolentino (diretor do Grupo Tapa, de São Paulo) e João Falcão, dramaturgo pernambucano radicado no Rio de Janeiro, apresentaram depoimentos sobre o tema Teatro e dramaturgias: visões contemporâneas .

Como de costume, a seção Varia abre-se para colaborações especiais - "Dois tempos da literatura: Antonio Candido, Silviano Santiago e o Modernismo", de Pedro Duarte de Andrade, e "Ver é estar doente dos olhos", de Sergio Mota, que contribuem para a renovação do campo de estudos da literatura e da cultura em língua portuguesa, que a Cátedra Padre António Vieira tem determinado interesse em fomentar.

 

Maria Helena Werneck