Camões e Eça de Queirós

"Auto de Filodemo": o discurso antipetrarquista de Duriano

Ronaldo Menegaz
PUC-Rio

Uma das personagens laterais do Auto Chamado de Filodemo, de Camões, pode, com acerto, ser considerada uma imagem especular, talvez ainda pouco explorada, de uma face da personalidade do autor. Dentro do processo habitual no teatro camoniano de desenvolver, ao lado dos núcleos amorosos centrais de suas peças -, Anfitrião/Alcmena; Seleuco/Estratônica; Filodemo/Dionisa e Venadoro/Florimena - a ação em contraponto de pares amorosos de mais vulgar linhagem: servos da casa, porteiros, aias, moços e moças de serviço, tais como Feliseu e Brômia em Enfatriões; o Porteiro e a Moça em El-Rei Seleuco; em Filodemo, paralelo aos amores centrais dos dois pares, desenvolve-se um triângulo amoroso Solina-Vilardo-Duriano.

Duriano é amigo de Filodemo. Sabendo esse que Solina, Criada e confidente de Dionisa, não é indiferente a seu amigo, parece-lhe que será muito proveitoso um caso de amor entre seu companheiro e a moça de Dionisa. Isso só lhe pode facilitar os encontros com sua Senhora. Por isso, Filodemo pede a Duriano que, nem que seja por fingimento, ele corresponda ao interesse de Solina.

A convenção das relações amorosas no lirismo português dos anos quinhentos é ligada à concepção do amor em Petrarca, que possui raízes essenciais e remotas na filosofia de Platão. Segundo a teoria transcendente do amor platônico, o que o verdadeiro amante busca no ser amado é o reflexo de um Bem supremo que existe em estado absoluto no mundo Ideal, onde esse bem já foi contemplado numa preexistência cuja reminiscência vive em cada um.

Plotino (203-270 DC) é o responsável pela aproximação de certas idéias platônicas com o Cristianismo, onde o Bem supremo se identifica com a idéia da Divindade, que possui em si, e em grau absoluto, todos os predicados encontrados em grau relativo no homem. Em Petrarca, Laura, o ser amado, vem a ser não só reflexo da Divindade em sua perfeição, mas também caminho para a Ela chegar.

Herança do "dolce stil nuovo", a postura de divinização e transcendentalização da mulher e a de conceber o amor como valor ético, agente de ascese para aqueles que cultivam a cortesia, a lealdade de cavaleiro e o senso da honra, passou aos poetas ibéricos dos séculos XV e XVI, encontrando no teatro de Camões expressão dramática. No Auto de Filodemo essa questão é posta em discussão no diálogo entre Filodemo, amante de feição petrarquista e, como tal, adepto do amor contemplativo em que se diz consumir, e Duriano que, preferindo uma visão mais realista do fenômeno amoroso, coloca-se como contraponto às avessas do discurso de seu amigo. Nesses dois amantes, o que ama verdadeiramente e o que se dispõe a fingir que ama, é que se consente ver as duas faces do poeta Camões: a primeira, a do que usa o discurso convencional do amor à Petrarca, aquele que se satisfaz no próprio sentimento, "[...] porque o que lhe quero, consigo mesmo se paga; que este meu amor é como a ave Fênix, que de si só nasce, e não de outro nenhum interesse"[1]
. A outra face é a do Camões feito de carne e de sentidos, que se revela através de Duriano. Este, que se dispõe a amar Solina, zomba dos amantes de convenção. Não parece dever-se atribuir ao acaso a escolha de seu nome, preso à raiz de duro (durus,-a,-um). Algumas de suas expressões metafóricas no-lo fazem crer um antigo marinheiro hoje em terra, mas cuja linguagem tenha ficado marcada pela vida no mar; falando, tocado de despeito pelo galã que lhe roubou a amada ameaça

que se vo-lo eu colho a balravento eu lhe farei botar ao mar quantas esperanças a Fortuna tem cortado à minha custa. Ora tenho assentado que o amor destas anda co'o dinheiro, como maré co'a lua: bolsa cheia, amor em águas vivas; mas se vasa, vereis espraiar até engano, e deixar em seco quantos gostos andavam como peice na água.

E, mais adiante, o aforismo: "Cobras e tostões, sinal de terra" ou ainda, "... o amor e os cranguejos andam às vessas".

Ao final do auto, cabe a Duriano narrar os antecedentes do enredo que já tinham sido anunciados no Argumento do Auto. A narrativa de Duriano faz supor que esse argumento não seria lido em cena, antes de representação: as aventuras do cavaleiro português pelos reinos da Dinamarca, seu amor pela princesa, e volta à Espanha trazendo a princesa grávida, através de um itinerário onde se declinam nomes de mares que intermedeiam as duas penínsulas, a Ibérica e a da Jutlândia: Oceano Germânico (mar Báltico), Bancos de Flandres (costa dos Países Baixos) e Mar da Inglaterra (canal da Mancha). Porventura não conheceria Duriano a rota do comércio com os países do Norte?

Quer parecer que essa função de narrador dos antecedentes da ação dramática confere uma proeminência a Duriano na estrutura do auto: além de personagem, narrador de uma importante anlepse. Como personagem, Duriano seria imagem do autor, Camões, naquela parte de sua dialética em que o poeta paga seu tributo de homem ao plano do sensível. À medida que Duriano assume lugar de maior importância na estrutura do auto, como amigo íntimo de Filodemo e o narrador do passado, ele se torna contraponto mais ponderável do convencionalismo petrarquizante de Filodemo e voz no diálogo que se trava entre os dois aspectos do discurso amoroso do século XVI, "entre a carne, que o Renascimento reabilitava, e o espírito, que avivava no petrarquismo platonizante a mesura provençal"[2]
.

Outro aspecto da personalidade de Duriano que conduz ainda o leitor à identificação da personagem com seu autor, ou melhor, com um lado da personalidade de seu autor, é a familiaridade com que o antigo marinheiro fala dos próceres do pensamento e da estética quinhentista. Ao articular um discurso anticonvencional sobre o amor, Duriano está mostrando seu bom conhecimento do assunto de que faz troça, opondo o amor sensual que ele chama de amores "pela activa" aos amores dos que amam "pela passiva", que não querem mais de sua dama "que vê-la; e ao mais até falar com ela".

Não é só no plano ideológico que Duriano se destaca, sustentando um discurso amoroso anticonvencional. Seguindo neste seu último auto a tendência já mostrada nos anteriores, de opor a pares amorosos de alta estirpe pares de categoria social mais baixa, como já se viu em linhas anteriores deste texto, o autor estrutura sua peça a partir de duas linhas paralelas constituídas pelos romances dos dois pares fidalgos: Filodemo-Dionisa e Venadora-Florimena, dois romances de amor que se desenvolvem em duas linhas distintas, tendo cada uma seu espaço físico: o palaciano de Filodemo-Dionisa e o bucólico de Venadora-Florimena. (É verdade que até a agnórese final, Filodemo é apenas um servo e Florimena não passa de uma pastora.) Os espaços dos dois romances, se não o foram, poderiam ter sido marcados concretamente na encenação do auto. Tangenciando as duas linhas e compartilhando o espaço palaciano, traça-se uma terceira linha da estrutura: a de Duriano e Solina, a fiel confidente de Dionisa. Solina é também requisitada por Vilardo, moço de Filodemo.

Duriano, que se caracteriza pelo discurso de descrédito das convenções amorosas do amor platônico, zombando de Platão, de Petrarca, Bembo, dos que se dizem seguidores de Garcilaso e de Boscán (sem mesmo os terem lido), tenta valer-se do discurso dos que se dizem amadores do amor para vencer as resistências (apenas aparentes) de Solina, embora não saiba manter por mais tempo esse tipo de discurso, sem se desviar e tentar tocar o corpo de Solina e dela conseguir demonstrações concretas, como beijos e abraços. Observe-se como Duriano se mostra um amante convencional, usuário do discurso petrarquista:

Duriano:

Se uns olhos por vos servir
Com amor que vos conquista,
Se atreverem a subir
Os muros de vossa vista,
Que culpa tem quem vos vir?
E se esta minha afeição
Que vos serve de giolhos
Não faz erro na tenção
Tomai vingança nos olhos
E deixai o coração.

A tentativa de tocar Solina desfaz a imagem do amante cortês, instaurando-se um diálogo que revela toda a urgência de Duriano.

Duriano:

Dizei-me, Solina, mana...

Solina:

Que é isso? Tirai a mão!
Oh! Vós sois mau cortesão.

Duriano:

O que vos quero me engana
Mas o que desejo não.
Aqui não há senão paredes,
As quais não falam nem vêem.

Solina:

Está isso muito bem.
Bem! E vós, Senhor, não vedes
Que poderá vir alguém?

Duriano:

Que vos custam dous abraços?

Solina:

Não quero tantos despejos.

Duriano:

Pois que farão meus desejos,
Que querem ter-vos nos braços
E dar-vos trezentos beijos?

Nesse contexto bastante erotizado, o diálogo evolui para um jogo malicioso que vai desfazendo a postura platônica de Duriano, que mostra o que realmente lhe interessa no amor de Solina, e esta, por sua vez, opõe uma resistência mais fingida que real aos avanços de Duriano. Solina também tem seu lado pragmático. O recado que manda a Duriano através de Filodemo é bastante eloqüente: ela não é uma qualquer que precise dele para se casar e tampouco quer seu nome na boca "de gentes".

Solina:

Pois dizei a vossa amigo
Que não gaste tempo em vão
Nem queira amores comigo.
Porque eu tenho parentes
Que me podem bem casar;
E mais que não quero andar
Agora em boca de gentes
A quem se ele vai gabar

No entanto, Solina não pode deixar de confessar a verdade a Filodemo.

Solina:

Mas a vós, como irmão
Descubro este coração:
Sabei que a Duriano
Tenho sobeja afeição.

Impõe-se neste tipo de cogitação, que se tenta levar avante, uma leitura das personagens em oposição, Filodemo/Duriano, como expressão dramática da crise do amor-paixão em certos ambientes no século XVI. Num tempo como aquele, de influência de doutrinas platônicas, parece oportuna a evocação do mito da origem do amor tal como é narrada por Diotima no Banquete. Filho de Poros (a riqueza, a abundância, segundo uns; o dom, a esperteza e a atividade, segundo outros), neto de Métis (a sabedoria, a inteligência prática) e, tendo por mãe Pénia (a carência, a penúria, a pobreza), que se aproveitou do sono pesado de Poros, embriagado pelo banquete com que as divindades se honraram quando do nascimento de Afrodite, para conceber dele um filho, Eros, o Amor, é indigente, rude, insatisfeito, por seu lado materno, e bom, viril, resoluto, ardente, capaz de inventar estratagemas, e ainda, mago e sofista, por seu lado paterno. Por isso Amor traz em si, em razão de suas forças atávicas, o germe do paradoxo. Conforme escreve Geneviève Droz[3] :

O amor, expressão de nossa indigência fundamental, será também o trampolim privilegiado para acender ao essencial: a contemplação do Absoluto.

Esses aspectos contraditórios do amor fazem eco no famoso soneto presente no códice[4] apenso ao exemplar da edição das Rhythmas da Biblioteca Nacional de Lisboa e na edição de 1598 das Rimas.

Amor é um fogo que arde sem se ver[5] ,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

O soneto acima permanece como exemplo da tendência camoniana de jogar com as antíteses e os paradoxos num texto poético que se pode dizer maneirista, já anunciando algumas das linhas dominantes da poesia barroca.

Os aspectos contraditórios do amor nos ambientes palacianos dos anos quinhentos, com seus dois extremos: o amor platônico sujeito a infindas regras e normas, e o amor natural, livre de convenções, sempre à espera do momento de realização - o lado Pénia - e que tem, numa cena em que Duriano se despede de Solina, dois versos de significativo poder de síntese expressiva.

Duriano [a Solina]:

Essas mãos beijo, Senhora,
Enquanto não posso a boca.

Notas

  • 1 As citações textuais são tiradas da edição de Hernani Cidade. Autos e cartas. Lisboa: Livraria Sá da Costa-Editora, 1946. Vol. III.
  • 2 Cidade, Hernani. Luís de Camões. Os autos e o teatro de seu tempo. As cartas e seu conteúdo biográfico. Lisboa: Livraria Bertrand, 1956, p. 136.
  • 3 Droz, Geneviève. Os mitos platónicos. Publicações Europa-América, [1993], p. 49.
  • 4 Pereira Filho, Emanuel. As rimas de Camões. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora / Instituto Nacional do Livro, 1974.
  • 5 O texto do soneto é tirado da edição de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Rimas autos e cartas. Porto: Livraria Civilização-Editora, 1962.

Referências bibliográficas

Cidade, Hernani. Luís de Camões. Os autos e o teatro de seu tempo. As cartas e seu conteúdo biográfico. Lisboa: Livraria Bertrand, 1956.

---. Vol. III Autos e Cartas. Lisboa: Livraria Sá da Costa-Editora, 1946.

Droz, Geneviève. Os mitos platónicos. Publicações Europa-América, 1993.

Pereira Filho, Emanuel. As rimas de Camões. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora / Instituto Nacional do Livro, 1974.

Pimpão, Álvaro Júlio da Costa. Rimas autos e cartas. Porto: Livraria Civilização-Editora, 1962.