A situação da narrativa no início do século XXI.

Em busca d' A Quinta Essência: saudades de Cao Xueqin

Mônica Simas
PUC-Rio

[...] A esta terra, que se desenvolveu em torno da presença portuguesa, faltou sempre unidade de memória.
Questão de abundância.
Cada comunidade tem a sua. No pequeno território de Macau acotovelam-se várias comunidades distantes. Logo, memórias a mais para tão pouco espaço. De onde o conhecimento dos factos ainda por esquecer ser diferente de comunidade para comunidade. [...]

(Henrique Rola da Silva - Mulher de Jejedias)

Em A Quinta Essência,1 de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1999 - data índice da transferência da soberania de Macau para a República Popular da China - repercutem fios das relações luso-chinesas que se iniciaram com os Descobrimentos e se desenvolveram ao longo desses quase quinhentos anos. Se críticos do colonialismo e do pós-colonialismo como Saïd, Bhabha, Spivak, Moore-Gilbert, ou Papastergiadis, entre outros, evidenciam a formação de repertórios culturais e o esfacelamento de uma pretensa consistência dos mesmos, apontando para narrativas alternativas e revisionistas da história, escritores contemporâneos, como Agustina Bessa-Luís, tendem a reabilitar o imaginário do passado, modulando desordens desses arquivos.

Pensar sobre "O que seria narrar devidamente, hoje" - questão nuclear proposta neste IX Seminário Internacional - significa, neste ensaio, especular sobre as possibilidades das incertezas de uma escrita que passa por diversas fronteiras epistemólogicas e que acumula restos dos antigos repertórios da sinologia.

Junto às falências de coesão das soberanias dos regimes imperiais e coloniais, o ato narrativo, proposto n' A Quinta Essência, tende a refletir um descentramento da soberania de um tipo de fala protagonista acerca do outro. No final desse romance, o narrador dirige-se ao leitor com a seguinte argumentação:

Como é possível que um protagonista duma história tão cheia de sabedoria, cheia de dragões e de lendas encantadoras, seja afinal um louco? É assim que a vida decorre, caros leitores. Aprendei que um pé ou uma mão, ou a orelha de Lao Tsé, podem ser perfeitos, mas que o cérebro humano não é assim. Tem sempre qualquer toque, como a cerâmica feita num torno que cambaleia.

Numa história em que as charadas não são resolvidas nem os mistérios são compreendidos, só podemos dizer, como Cao Xueqin no fim de cada capítulo d'O Sonho no Pavilhão Vermelho: "Quem quiser saber o que se segue, não tem senão que remeter-se [sic] às explicações da próxima narração".2

Indo para Macau com o objetivo de conquistar a filha de um dos capitães de abril, vingando-se daquele que teria sido responsável pelos infortúnios de sua aristocrática família do Porto, o protagonista José Carlos acaba deixando-se envolver na "história da cidade, que era abundante de peripécias amassadas durante quatro séculos".3 Num deslocamento anacrônico por várias épocas históricas, Macau torna-se o alvo da projeção infinita de especulações. Matérias historiográficas são vertidas em um sedutor jogo de charadas, compartilhado por esse protagonista e por Iluminada, filha do capitão Sequeira na mira da sua vingança. Da mesma maneira que a história inacabada de Cao Xueqin, O Sonho no Pavilhão Vermelho, a aventura de José Carlos, pela China, passa por personagens e episódios inacreditáveis, destinos desordenados, histórias de governantes, de mulheres e de amores, enigmas que atiçam o fluir da imaginação e que ficam por resolver. A "abundância de memória" de Macau, mencionada por Henrique Rola da Silva e posta em circulação no livro de Agustina Bessa-Luís, abriga uma reflexão labiríntica sobre as possibilidades da memória de um espaço complexo e multifacetado.

Os relatos, depoimentos e crônicas que são recolhidos por esse candidato a sinólogo não chegam a completar uma figura exata de um quebra-cabeça, mas aglutinam sentidos que abrangem outros quebra-cabeças cheios de novas lacunas. Versões diferentes acerca das origens de Macau entrecruzam-se nessa dinâmica.

Para compreendê-la, é preciso observar que Macau surgiu no cruzamento de operações de diferentes formações de identidades nacionais. Efetuaram-se, ao longo do tempo, construções narrativas históricas portuguesas e chinesas paralelas e divergentes acerca do seu passado. O historiador Fei Chengkan4 buscou referências históricas e arqueológicas chinesas para mostrar que desde a época neolítica apareciam evidências de que antepassados chineses teriam passado pela área hoje conhecida como Macau, pelos portugueses, ou como Ao-Men (em mandarim ou Ou-Mun em cantonês), pelos chineses.

Desde então, a área teria sido palco de fatos históricos importantes como o final da resistência armada do povo do sul da dinastia Song contra o exército da dinastia Yuan no séc. XIII. Feichenkang procurou trazer evidências de que já havia, nos séc. XIV e XV, uma povoação naquela península a fim de questionar a versão geralmente aceita no Ocidente de que, até meados do séc. XVI, Macau seria uma terra desabitada. A pequena povoação situada perto do templo da deusa A-Ma (de onde parece ter surgido a designação portuguesa da toponímia) tem uma significação própria dentro de narrativas chinesas.

Numa série de reportagens sobre os 500 anos de contatos luso-chineses, Oliveira5 ressaltava ainda que a noção de tempo histórico seria bastante diferente para chineses e portugueses pelo fato de a China ter uma continuidade na sua evolução como civilização e cultura de pelo menos quatro mil anos.

Portanto, enquanto Portugal entenderia as Viagens como um evento bem longe no tempo, os chineses as conceberiam como um acontecimento da época moderna, quase contemporânea. Dessa forma, a construção das origens de Macau envolveria a elaboração de, pelo menos, duas narrativas paralelas associadas a processos perceptivos diferenciados.

Uma das principais alterações que acompanharam o processo de transição6 que formatou a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM-1987-1999) correspondeu à redefinição das orientações acerca da soberania do território e conseqüente relativização da historiografia portuguesa sobre os processos que legitimaram a sua ocupação. A reformulação de princípios que sustentaram e viabilizaram a autonomia do território não seria plausível sem se ter como referência uma revisão do passado. A equação feita sobre os fatores que teriam levado ao surgimento do território só pôde ser realizada a partir de comparações constantes entre fontes portuguesas e chinesas e ainda de outras nacionalidades.7

Por um lado, inúmeros problemas relacionados à tradução dificultaram o estudo de documentos chineses por parte dos portugueses e de outros estrangeiros; por outro, parece não ter havido mesmo um interesse anterior dos portugueses pelas fontes chinesas que referem o território. A mudança do posicionamento em relação às fontes chinesas foi marcada pela publicação de textos traduzidos de vários autores chineses e macaenses. Nas últimas décadas do séc. XX, desde que o estatuto jurídico de Macau precisou ser clarificado, houve um crescente aparecimento de referências chinesas sobre o território. A ampliação da utilização sistemática das fontes chinesas que referem as origens da ocupação da região - a partir da defesa de tese do macaense Fok Kai Cheong8 - foi fundamental na viragem das reflexões sobre a história do território. Para Fok, o entendimento da ocupação de Macau pelos portugueses deveria abranger a situação complexa formada pelas políticas da dinastia Ming e dos poderes regionais do sudeste asiático. A "fórmula Macau", estruturada por esse historiador corresponde a uma avaliação da política efetuada durante a dinastia Ming, desenvolvida a partir das operações estratégicas realizadas em Macau, cuja fundamentação era a de manter os estrangeiros sob controle, evitando que os elementos subversivos chineses pudessem colaborar com eles. Essa "fórmula" nunca teria sido claramente declarada em quaisquer textos oficiais do governo Ming, mas serviu como estratégia de intermediação entre o governo e as operações comerciais marítimas no sudeste asiático. Na esteira de Fok, abordagens mais complexas surgiram nos estudos historiográficos de portugueses e de chineses acerca do surgimento de Macau.9

A importância da gênese de Macau se deve ao fato de estar nela a base sobre a qual os portugueses se mantiveram na região e constituíram o seu direito de soberania até 1999. Pontos, fatores e equações que preenchem textos historiográficos aparecem habilmente articulados, no livro de Agustina Bessa-Luís, no decorrer dos vários jantares da casa de Siá Debra, bisavó de Iluminada, e durante as investigações de José Carlos sobre a história e a cultura chinesas. Em relação às origens de Macau, primeiramente é revelada uma versão que se identifica com as portuguesas mais antigas, na qual "os portugueses tiveram ocasião para mostrar a sua boa vizinhança ao atacar e destruir a esquadra do pirata Chang-silau que muito afligia a costa meridional da China";10 depois uma outra que se aproxima das versões chinesas mais antigas, na qual os portugueses "eram considerados como um abscesso dentro dum corpo humano e os piratas japoneses, por eles trazidos e consentidos, eram comparados a um 'tigre alado'",11 e posteriormente aparece uma especulação acerca da "Fórmula Macau", estruturada por Fok.12 As versões coabitam na narrativa, abrindo ao leitor a possibilidade de contemplar diferentes pontos de vista.

A busca de uma origem do estabelecimento de Macau corresponde à necessidade comum de se resgatar a unidade das narrativas do passado, dando coerência ao encadeamento dos acontecimentos históricos de Macau. No entanto, na construção narrativa das peripécias vividas por José Carlos, através do passado histórico, essa unidade parece irremediavelmente perdida e os acontecimentos não passam de conteúdos efêmeros que proliferam de forma desordenada. Através da sua reflexão sobre aquilo que considera ser o cerne da original obra de Cao Xueqin, revela-se um plano maravilhoso do caótico enredamento desse romance.

Com o chinês que entendia, sem no entanto o dominar completamente, ele lançou-se na leitura do Pavilhão Vermelho, esperando encontrar nele a solução duns quantos enigmas. O próprio Cao Xueqin, que o professor traduzia afectuosamente por Joaquim, prevenia o leitor da narrativa que, "a bem dizer, podia frisar a extravagância". Inicialmente, o livro chamou-se Memória dum Rochedo, o que parece não solicitar qualquer interesse ao leitor, pelo menos um europeu como José Carlos, criado no plano do positivismo. A deusa Nügua, uma espécie de Deus-Pai no feminino, salvara o gênero humano da sua completa destruição quando se deu a derrocada do céu. Trinta e seis mil, quinhentos e um blocos de pedra serviram para colmatar a brecha aberta no firmamento, quando os deuses se zangaram e deram prova da sua cólera. Mas Nügua utilizou só trinta e seis mil e quinhentas pedras, abandonando a última na montanha. Desprezada como incapaz de servir para encerrar a brecha do firmamento, a rocha lamentava-se duramente, que é a palavra adequada. Interpelando um bonzo budista e um monge taoísta que passavam pelo lugar, o rochedo munido duma certa transcendência pelo tratamento do fogo que a deusa lhe concedera, mostrou-se curioso de conhecer o mundo dos homens. Ouvindo o bonzo e o monge que falavam de coisas fantásticas, tanto poéticas como gloriosas de riqueza e de luxo, o rochedo comoveu os viajantes, que o levaram com eles transformado em pedra de jade. Passados séculos, um padre taoísta que se embrenhara na montanha em busca dos imortais encontrou o rochedo coberto de caracteres que formavam um relato surpreendente. Estas considerações extremamente elegantes e inteligentes sobre a lei da propensão ao movimento à força da imobilidade, ou seja, a criação do ser a partir do não-ser, situam-nos no centro do pensamento de Cao. O monge, a partir do seu encontro com a pedra falante, através da vaidade, distinguiu as aparências; das aparências, deduziu o amor, depois reintroduziu o amor nas aparências, e pelo discernimento das aparências tomou plenamente consciência da vaidade. Nem o próprio Salomão teria feito melhor, pelo que mestre Cao era um gênio apostado a criticar a literatura das dinastias Han ou Tang e a opor-lhe o mérito transcendente das Memórias duma Pedra, uma honesta pedra munida de fogo da deusa Nügua. Não servia para remediar o desastre feito no arco celeste, mas era muitíssimo competente para produzir uma obra original.

- O que me encanta em Cao é a naturalidade das imagens como, por exemplo, "cuspir o arroz ao soprar o riso" - disse o professor. Para ele, Cao Xueqin era um contemporâneo, e bem depressa se lhe afeiçoou como a um irmão ou a um duplo perdido em que todos os talentos e todas as virtudes fossem consumados. Todos nós temos esse sonho sublime, de estar aparentados com alguém até ao mínimo pormenor e que vagueia pelo mundo à nossa procura.

O que Cao trouxe à literatura foi a narrativa íntima, a descrição da vida de família sem omitir nada e sem privilegiar nenhum facto. Até aí, a literatura fazia parte dos ritos, referia-se a cenas escolhidas de glória ou de amor. Mas os sentimentos quotidianos eram escamoteados e só numa proporção insignificante podiam ser observados. [...] No estilo dos "confabuladores nocturnos", Cao Xueqin faz pausas ritmadas como na composição musical e, pela sua extensão, pela ordem das histórias e pela faculdade de as encadear sem, no entanto, lhes determinar o fim, remete-nos para As Mil e Uma Noites.13

A lenda da restauração do universo da deusa Nügua, interpretada por Cao Xueqin para revelar a decadência da família Jia e, indiretamente, a ruína do sistema feudal imperial chinês, reinterpretada na leitura de José Carlos como a consciência sobre a vaidade, implica a aquiescência da condição efêmera do mundo e de uma origem que corresponde ao vazio (uma condição potencial). O Sonho no Pavilhão Vermelho, designado comumente como o ápice da novela clássica do realismo chinês, difundido de forma manuscrita durante uns trinta anos da segunda metade do séc. XVIII, mais tarde proibida, atacada e queimada, abre, na narrativa de A Quinta Essência, uma dimensão que suprime qualquer regulação objetiva do tempo e do espaço. José Carlos "tornou-se na personagem inacabada ao ler o livro prodigioso de Cao Xueqin"14 e tanto ele quanto os três personagens femininos que o rodeiam - Siá Debra, Emília e Iluminada - aparentam-se com personagens das histórias de Macau, instaurando anacronismos no movimento da narrativa. É nesse espaço do maravilhoso que o nome de Iluminada, por exemplo, passa a evocar um famoso episódio em que Vicente Nicolau de Mesquita mata a sua filha, evidenciando algumas das circunstâncias históricas da grande tensão entre portugueses e chineses, em Macau, em meados do séc. XIX. Iluminada surge também como uma espécie de alegoria aos olhos de José Carlos, significando a própria "mestiçagem que consagrava a presença portuguesa no Oriente, alguma coisa de íntegro nas suas redes de interesses e de força de adaptação, e efêmero nas suas opiniões, laços diplomáticos e subtilíssimas relações de corte e de comércio".15 José Carlos, além de tornar-se um personagem inacabado, desdobra-se em personagens históricos que buscaram alcançar um conhecimento sobre a China - o jesuíta Matteo Ricci e o poeta Camilo Pessanha.

Imaginando-se na "pele" de Matteo Ricci, particularmente no seu processo de aproximação da cultura chinesa que o fazia parecer cada vez menos um estranho na corte imperial, era consciente de não ter os mesmos padrões morais do jesuíta. No seu entendimento cultural filosófico acerca da ação de Matteo Ricci, este não poderia ser indiferente ao pensamento de Confúcio, tornando-se um precursor do ecumenismo. José Carlos Pastor acreditava que Ricci "teve uma história confuciana a par duma história cristã" e que ele "encontra uma espécie de salvação na correspondência entre dois universos mentais e espirituais."16

Se lhe fosse possível reproduzir a vida do P. Ricci, o inefável Li Matei para os chineses, e ser fiel às suas preocupações missionárias que o levavam a tentar a aproximação de Confúcio e de Jesus, decerto que a doença seria menos esmagadora.17

Sujeito em contradição, sofrendo de uma estranha doença psicossomática, desloca-se para Beijing, tentando aprofundar as suas investigações acerca dos chineses, exatamente como o jesuíta. Talvez, percebesse um caminho nos passos de Matteo Ricci, para o qual formula uma tese, afirmando que "a China convertia o homem religioso (nomeadamente o jesuíta) nele próprio".18 Não estaria o protagonista de A Quinta Essência buscando converter-se em si próprio, tentando reabilitar a soberania do sujeito?
É interessante observar que Matteo Ricci tenta introduzir os chineses na arte da construção do palácio da memória. Segundo Spence19 , esse palácio compreenderia um sistema mnemônico capaz de armazenar os milhares de conceitos que constituem a soma do conhecimento humano. A primeira imagem, no palácio da memória de Matteo Ricci, foi o ideograma chinês guerra. O jesuíta dividia o ideograma em duas partes, dando origem a dois ideogramas separados, lançar e parar, mostrando que havia embutido naquele ideograma também a possibilidade de o conceito paz prevalecer. A base da construção do palácio da memória de Ricci assentava sobre as possibilidades de resolução dos conflitos humanos. Nessa perspectiva, o leitor pode perceber que a tentativa de cura para o conflito de José Carlos passa pela tentativa de erguer um palácio da memória de Macau, onde a sua admiração pela China transforma-na em "um terreno para avançar", como os jesuítas a entenderam e, ainda, de acordo com as regras estratégicas desenvolvidas por Sun Tsu ou por Han Fei. Cruzam-se, na narrativa, modelos do pensamento ocidental e oriental.

Na perspectiva engendrada no texto, o conceito de guerra ou de conquista, como proposto no livro de Sun Tzu, enfatiza o mundo das mentalidades em detrimento do das armas.

O general competente deve também ser um mestre nas artes complementares da simulação e da dissimulação. Aí estava uma confissão de princípios que o P. Amyot professaria com entusiasmo, já no declínio do poder inaciano e que o fez levar para França A arte da guerra de Sun Tzu. A força chen, directa e agressiva, estava em inferior posição de batalha face à força ch'i, pois representava o poder de distracção e de envolvimento.20

Seduzido pelo mundo chinês e buscando alternativas para formar um quadro da presença portuguesa no Oriente, o protagonista tem a sua vontade enfraquecida. O problema é que, na tentativa de conquistar e dominar o terreno do pensamento chinês, lidará com uma série de perdas que lhe vão revelar os seus próprios limites, chegando à conclusão de que seria impossível seguir os passos do jesuíta Matteo Ricci porque este havia atingido a síntese. Sem vocação para a síntese, "incapaz de amar" mas também "incapaz de odiar", a subjetividade de José Carlos "cambaleia".

De qualquer modo, ao passear pela galeria de episódios de Macau "amassados durante quatro séculos", José Carlos cumpre uma investigação perspicaz, arrastando uma variada gama da família de idéias ou da biblioteca de informações, termos que Saïd usa para identificar o acúmulo sistemático de informações sobre o Oriente formuladas pelo Ocidente, para o campo especulativo das interpretações. Questiona, por exemplo, um relato do final do séc. XVIII do conde de Lapérouse onde acusa os chineses por diversas humilhações impostas aos portugueses; aspectos que envolvem a emigração chinesa; a interpretação de William Dampier, navegador inglês do séc. XVII, acerca do costume dos pés ligados das mulheres chinesas, ou ainda o prefácio de Camilo Pessanha para o livro do Dr. Morais Palha.

Aliás, desde a sua fixação em Macau, que passa a utilizar o sobrenome Pessanha, procurando impressionar Emília Andrade, mãe de Iluminada. A sua interação, com a biografia do poeta, passa por mudanças de recepção. Primeiro se desilude quanto ao seu parentesco, reabilitando o sobrenome Santos Pastor.

[...] Este Pessanha, que os chineses respeitavam com aquela cortesia que lhes é natural, porque passa uma esponja sobre tudo quanto é aparente no homem, inclusive a sua miséria, só é suportável pelo português pelo lado dum cristianismo aforístico ou pela convicção dos privilégios concedidos à marginalidade. Mas pessoas como o letrado José Carlos, preferiam ignorar alguém como o poeta Pessanha que só um neo-romantismo da degradação pôs de moda a partir do apocalipse de Viena, nas artes, no pensamento e na maneira de viver.21

No entanto, essa primeira impressão acerca do poeta será logo rasurada por outras. No início da sua estadia, evita até mesmo ser conhecido pelo mesmo nome, depois começa a esboçar uma curiosidade e, finalmente, dedica-se ao desvendamento da sua personalidade, assimilando parcialmente a sua identidade. Além de se tornar colecionador, havia quem lhe atribuísse o vício do ópio e do jogo quando deixa de freqüentar o Liceu durante meses. Vive, durante algum tempo, numa hospedaria gerida por um chinês e recita, para Iluminada, versos de algumas das elegias chinesas que Camilo Pessanha traduziu. O motivo que o incita a descobrir a personalidade de Camilo Pessanha refere-se à busca de um entendimento acerca da forma como o poeta compreendia a civilização e a comunidade chinesa.

Ainda que o autor dum prefácio que vale como um documento de alto valor antropológico, e em que a China fica mal parada como civilização que tanto se orgulha, Camilo Pessanha vivia à chinesa, era um membro duma sociedade chinesa e era ainda mais: uma pessoa grata na colónia, naturalmente porque ele tinha chegado ali como membro duma tripulação esfomeada e perseguida por toda a espécie de sofrimentos. "Também sabia antes de ir à China o que significava a palavra irmão, mas o verdadeiro e profundo significado da expressão amor fraternal só o aprendi durante a minha estadia e a minha doença na China." Foram as últimas palavras da última viagem de Malaparte na terra. Ele reconheceu, ou aprendeu, que um povo empenhado na luta contra uma herança de miséria pode chegar à quinta-essência da natureza humana. Aquele que passa por todos os graus da escravidão e da injustiça pode resplandecer na bondade, em vez de progredir na dureza do coração.22

Nessas considerações, a busca da quinta essência revela-se na luta cotidiana, pela sobrevivência, também evidenciada no percurso dos inúmeros personagens de O Sonho no Pavilhão Vermelho, ou ainda na emblemática figura de Xerazade. Através da perspectiva do narrador/José Carlos, as peculiaridades da identidade cultural de Macau também são fruto daquilo que as relações da vida privada, em sua condição de sobrevivência, cultivaram.

Aquilo que se chama "a singularidade de Macau", a convivência não sei se só cerimoniosa de línguas e culturas, costumes e modos de pensar, serviu para marcar uma identidade. Identidade que se tornará insubsistente quando um modelo mais planetário neutralizar o estatuto oficial dos portugueses, naquilo que é demasiado subtil para incluir numa unidade política. Não foram os exemplos dos portugueses enquanto gente de religião; não foram também os seus caudilhos das pequenas guerras de tráfico, que deixaram boa memória na mentalidade histórica dos políticos e do povo. Foi esse trunfo modestíssimo da vida privada, em que não se sabe onde acaba o Ocidente e começa o Oriente, com os seus cheiros, comidas, amores, esse lento e poderoso ciclo da pátria genética, em que se misturam desejos e os vagos e sedutores legados da resignação humana. Isso sim, é a arte dos portugueses. Nada de bom, provavelmente; nada digno de elogio. Mas num território próprio que funciona melhor do que os grandes monopólios e as grandes reservas de oiro ou petróleo. 23

Cansado de seu protagonismo, na tentativa de uma compreensão sobre os chineses, através dos arquivos da sinologia, José Carlos volta a Portugal, depois de seis anos, sem a certeza de ter compreendido as relações luso-chinesas. A busca por um princípio ordenador e totalizante do conhecimento acerca do outro parece não ser mais plausível.

Enfrentando a paisagem desconcertante do final do Império, Agustina Bessa-Luís desenrola alguns novelos do passado. Através da desorientação frente aos vários feixes presentes na(s) narrativa(s) de A Quinta Essência, o leitor é transportado pelas dobras do tempo, em uma randômica entropia de imagens. Não sabemos ainda como se dará a próxima narração, mas podemos perceber que os critérios de entendimento das intersubjetividades que habitam as relações luso-chinesas se transformaram.

Referências bibliográficas:

BARRETO, Luís Filipe. O estatuto de Macau (séculos XVI e XVII). Oceanos: Olhares Cruzados. Lisboa, Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos, n. 32, out./dez. 1997.
BHABHA, Homi K. The Location of Culture. London: Routledge, 1994.
BESSA-LUÍS, Agustina. A Quinta Essência. Lisboa: Guimarães, 1999.
FEI Chengkang. Macau: 400 years. Shanghai: The Publishing House of Shanghai Academy of Social Sciences, 1996.
FOK, Kai Cheong. Estudos sobre a instalação dos portugueses em Macau. Lisboa: Gradiva, 1996.
_____. The "Macau Formula": A Study of Chinese Management of the Westerners from the Mid-Sixteenth Century to the Opion War Period. Tese. Hawaii University, 1987.
MOORE-GILBERT, Bart. Postcolonial Theory: Contexts, Practices, Politics. London: Verso, 1997.
OLIVEIRA, Fernando Correia. 500 anos de contactos luso-chineses. Lisboa: PÚBLICO, Comunicação Social, Fundação Oriente, 1999.
PAPASTERGIADIS, Nikos. Dialogues in the Diasporas: Essays and conversations on cultural identity. London: Rivers Oram, 1998.
SAÏD, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
_____. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SPENCE, Jonathan D. O palácio da memória de Matteo Ricci. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
WU, Zhiliang. Segredos da sobrevivência: história política de Macau. Macau: Associação de Adultos de Macau, 1999.

 

Notas:

  • 1 Agustina Bessa-Luís, A Quinta Essência, Lisboa, Guimarães, 1999.
  • 2 Ib., p. 373-374.
  • 3 Ib., p. 73.
  • 4 FEI Chengkang, 1996.
  • 5 Cf. OLIVEIRA, Fernando Correia. Coletânea de artigos publicados na Revista Público, ao domingos, durante o ano de 1999.
  • 6 Em 13 de abril de 1987, Portugal e a República Popular da China assinaram em Beijing a Declaração Conjunta, na qual ficou definido o processo e a data da transferência da administração do território. Portugal assumiu a responsabilidade de governar Macau até 19 de dezembro de 1999, promovendo o desenvolvimento econômico e preservando a estabilidade social. Por sua vez, a República Popular da China aceitou que o território se tornasse a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), em conformidade com o princípio "um país, dois sistemas".
  • 7 Destacamos o importante trabalho de USELLIS, W. Robert. As origens de Macau. Macau, Museu Marítimo de Macau, 1995. Essa monografia foi escrita em 1958 e circulou durante vários anos em versão policopiada numa reduzida comunidade de investigadores. O estudo de Usellis, segundo apresentação de Luís Filipe Barreto e Jorge M. dos Santos Alves, também constitui uma das primeiras investigações sobre o processo de emergência da cidade de Macau, referindo de forma sistemática fontes portuguesas (e outras européias) e fontes chinesas impressas. A sua monografia mostra que, entre os autores portugueses que insistem em dar crédito à história dos piratas, estão Montalto de Jesus, J. M. Braga e António da Silva Rego, Albert Kammerer e T. T. Chang entre outros. Enquanto que Boxer não encontra nada de improvável na história, mas evitando fixar uma versão definitiva, o Visconde de Santarém e o sueco Ljungstedt descartam essa versão. O trabalho citado por Usellis de Tien-Tsê Chang foi reeditado pela Fundação Oriente, em 1997. O texto é um dos primeiros trabalhos a sistematizar o uso de fontes chinesas e portuguesas (e outras européias) no estudo das relações luso-chinesas e, apesar de o livro ter sido editado em inglês em 1934, apenas a partir da década de 70 começou a despertar a atenção dos investigadores portugueses (Ângela Guimarães, António Vasconcelos de Saldanha e Rui Manuel Loureiro) de acordo com Jorge Manuel dos Santos Alves. Mais recentemente, o trabalho de MESQUITELA, Gonçalo. História de Macau. Macau, Instituto Cultural de Macau, 1996, levanta uma grande quantidade de fontes portuguesas e algumas chinesas, retomando novamente a versão dos piratas.
  • 8 FOK, Kai Cheong, 1987.
  • 9 Ver BARRETO, Luís Filipe, 1997. O autor equaciona o surgimento de Macau a partir de três fatores fundamentais:
    "a) A ordem interna e o sistema de relações internacionais da China Ming dos séculos XV e XVI;
    b) A trilateral sinonipoportuguesa, nos planos marítimo, comercial, financeiro e estratégico, que é uma conseqüência natural e direta do primeiro factor e que se traduz na rota Cantão-Macau-Nagasaqui;
    c) A condição portuguesa no Extremo-Oriente que, num processo de aprendizagem a partir de 1513, nos mares e litorais da China, acaba por assentar numa comunidade mercantil autónoma luso-asiática e, no plano cultural, numa internacional latina (com os missionários, em especial jesuítas portugueses, espanhóis, italianos e franceses)" (p. 135). Ainda, segundo o autor, "o estatuto da soberania de Macau, ao longo dos séculos XVI e XVII, testemunha a complexidade contraditória de interesses e de poderes que se movem em torno da rede marítimo-mercantil regulada pela cidade-portuária internacional.
    Testemunha o equilíbrio de poderes e de saberes entre o centro e a periferia chinesas (Beijing-Cantão). Testemunha a capacidade de acomodação dos portugueses à fórmula chinesa, a capacidade de servir como intermediários (ocidente-oriente, sinonipônico) e de, ao mesmo tempo, saber lucrar e desenvolver-se graças a essa rede de serviços. Testemunha também a lógica chinesa de acomodar e integrar a mudança e a presença ocidentais através de uma fórmula de reforço ou, pelo menos, manutenção de hegemonia chinesa, na geo-estratégia da Ásia Oriental.
    A condição de Macau, e o seu estatuto de soberania, só pode [sic] ser o denominador comum de toda esta multiplicidade contraditória: um estatuto fluido que permita sustentar e desenvolver a teia múltipla de interesses e poderes privados, locais, regionais e semi-oficiais"(p. 143).
  • 10 Agustina Bessa-Luís, op. cit., p. 58.
  • 11 Ib., p. 94.
  • 12 Ib., p. 96.
  • 13 Ib., p. 331-333.
  • 14 Ib., p. 150.
  • 15 Ib., p. 200.
  • 16 Ib., p. 349.
  • 17 Ib., p. 277.
  • 18 Ib., p. 351.
  • 19 Cf. SPENCE, Jonathan D., 1986.
  • 20 Agustina Bessa-Luís, op. cit., p. 233-234.
  • 21 Ib., p. 75.
  • 22 Ib., p. 119.
  • 23 Ib., p. 80