A situação da narrativa no início do século XXI.

Leituras pós-coloniais de comemorações lusófonas: guerras de realidade & ficção

Jesiel Ferreira de Oliveira Filho*
para a Mônica
e para a Sofia

Ler um jornal é como ler um romance cujo autor tivesse deixado de lado
qualquer idéia de um enredo coerente.

Benedict Anderson

Se lembra quando isso era brincadeira
Fingir ser soldado a tarde inteira?
Mas agora a coragem que temos no coração
Parece medo da morte mas não era então
Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto
Tenho medo e eu sei por que:
Estamos esperando.
Quem é o inimigo?
Quem é você?

Renato Russo

Em abril do ano 2000, enquanto os portugueses preparavam-se para comemorar as vinte e seis primaveras da Revolução dos Cravos e os longínquos quinhentos anos brasileiros, noticiou-se a inauguração no Museu Militar do Porto da exposição "Testemunhos de Guerra", evento que mexeu em mágoas recentes da memória colonial lusitana. É o que nos conta a matéria "A mágoa de homens sós", assinada pelas iniciais A.A.M. e publicada no jornal Público, no dia 13 daquele mês tão comemorativo.
Logo à entrada do recinto expositivo, aguardava os visitantes o busto de um António Salazar com ares de anos 30, representado nos primeiros tempos do seu consulado orgulhoso e isolacionista. As referências e citações à sua volta apontavam, no entanto, para os inícios da década de 60, época em que ao Estado Novo não restou opção senão medir-se de frente com o seu mais perigoso inimigo: a ampliação militar e geopolítica da resistência à exploração colonial portuguesa de terras e de gentes de África, cujo resultado histórico foram as guerras independentistas africanas.

A montagem desse contraste de tempos tem uma significação importante. Naquele intervalo de três décadas, as tensões acumuladas pela política ultramarina salazarista haviam desembocado em insurreições simultâneas e de grande magnitude entre as diversas populações nativas africanas, acontecimentos que puseram em xeque a manutenção das principais províncias no continente - inclusive da "jóia da coroa", Angola. Desde os tempos da lendária rainha Jinga que naquelas paragens firmara-se uma sangrenta tradição de rebeliões pontuais e explosivas contra o colonialismo, mas nunca antes tantos interesses e recursos haviam-se articulado em torno do jogo transnacional jogado sobre os mapas do imperialismo português. A disputa militar e ideológica durante a Guerra Fria e a emersão política dos povos do Terceiro Mundo tinham trazido, com um vigor e uma velocidade inauditos, novidades para aquele envelhecido domínio colonial. Isso ficou bem expresso na enfática convocação para a defesa do Ultramar cunhada pelo, até então, sisudíssimo Salazar: "Para Angola, rapidamente e em força!".

Disseminada do Minho ao Algarve pela jovem televisão portuguesa dos anos 60, a frase nos é recordada por A.A.M. no princípio de sua resenha como se ela ainda ecoasse entre as galerias do museu, instigando os visitantes para o enfrentamento daquele passado.

Não é exagerado supor que a ultrapassagem daquele busto e das palavras de ordem que o assombravam poderia representar, para as velhas e novas gerações que visitavam a exposição "Testemunhos de Guerra", um desafio contemporâneo comparável àquele lançado pelo Adamastor aos marujos lusíadas de cinco séculos atrás. Afinal, naquela travessia pelas memórias tormentosas da história imperial portuguesa, qualquer um corria o risco de deparar-se com lembranças realmente monstruosas. Ao mesmo tempo, se dessa vez se tratava de uma viagem de retorno, nem por isso ela perdia o seu doloroso sabor de iniciação.

Reunindo relíquias e condecorações militares, fotos de corpos massacrados e exemplares de propaganda colonialista e anticolonialista, a exposição procurava apresentar um panorama diversificado daqueles tempos e acontecimentos, sobre os quais ainda pesa um silêncio compreensivelmente traumático.

Embora alguns especialistas considerem-na como um exemplar das chamadas guerras de "baixa intensidade", os treze anos de confrontação entre o exército colonial português e os combatentes dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau deixaram uma contabilidade humana que exibe valores, de fato, assustadores: algumas dezenas de milhares de vítimas, entre mortos e feridos, pelo lado português; algumas centenas também de milhares, no que diz respeito às guerrilhas e às populações africanas. Como se não bastasse a carga de luto e de melancolia que se acumula em torno da lembrança desses números, a própria atualidade trata de manter inesquecível a tragédia, se considerarmos a profunda crise política, econômica e cultural que dela derivou e até hoje repercute nas conjunturas nacionais de Portugal e dos países africanos lusófonos.

Tanto quanto para leituras dos processos de construção identitária operantes no espaço lusófono, a coincidência entre a abertura dessa exposição e o cenário comemorativo dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil bem pode ser útil para uma reflexão sobre as estratégias culturais com que a complexidade, e a brutalidade, da exploração colonial são rememoradas - questões muitas vezes escamoteadas nos discursos celebrativos do "esforço civilizador" europeu, ou relativizadas pelo pragmatismo de quem encara a história como uma mera contabilidade de datas e de cifras. Aliás, espero que não tenha sido por causa dessa possível utilidade da coincidência que os organizadores da mostra tenham desistido do título anteriormente pensado para ela, que era "O Regresso das Caravelas". Segundo A.A.M., a misteriosa modificação foi feita de modo a não "gerar equívocos", embora não se elucidasse com quem ou com o quê. Tendo em vista outra ordem, mais imediata, de afinidades temáticas, dá para se pensar que a mudança visou não gerar mais equívocos do que os que seriam suscitados pelas simultâneas celebrações do 25 de Abril. Período em que, de acordo com a jornalista Isabel Braga, as questões relacionadas a importantes protagonistas tanto desta efeméride como da guerra colonial dispõem de um poder aparentemente institucionalizado para reativar memórias problemáticas: "Todos os anos, com a aproximação do 25 de Abril, os governos despertam para os problemas ligados aos militares."
Com este lembrete a propósito de uma certa sonolência histórica do Estado português, iniciava-se "Abril, o Natal dos Velhos Soldados". Assinada pela jornalista acima referida, essa reportagem reunia matérias dedicadas a vários acontecimentos confluentes que bem demonstravam o quanto as feridas do processo da descolonização permanecem abertas no imaginário e no cotidiano da nação portuguesa. Além da resenha que foi assinada por A.A.M, noticiava-se em outro subtítulo a abertura do I Congresso Internacional realizado em Lisboa sob o tema "A Guerra Colonial: Realidade e Ficção". O assunto de destaque, no entanto, era o reconhecimento pelo Estado português do stress de guerra pós-traumático como "causa de deficiência". Em seu artigo principal, Isabel Braga relata-nos que, depois de um ano de protelação legislativa, Portugal tornara-se o último dos países da OTAN a instituir uma rede nacional de tratamento clínico voltada para os militares afetados por distúrbios psíquicos decorrentes da guerra colonial. Segundo o testemunho do deputado Carlos Encarnação, autor da lei do reconhecimento, "São questões que vinham sendo adiadas há anos, em primeiro lugar porque sai caro resolvê-las. Mas tenho visto tanto dinheiro mal gasto que achei impossível continuar a voltar a cara para o lado".

A ênfase do deputado na questão dos custos merece ser lida numa dimensão para além da financeira. Afinal, agenciar os legados históricos das memórias da guerra colonial - uma tarefa cuja amplitude pode ser mesmo difícil de encarar - mobiliza também outros tipos de forças, investidas em estabelecer o saldo simbólico dessa experiência e em atualizá-lo frente à heterogênea contemporaneidade do presente nacional português. É preciso estar atento ao fato de que co-memorar não é só "lembrar junto" de algo tido por coletivamente memorável, também pode ser "lembrar em simultâneo" - e de coisas simultaneamente parecidas e diferentes. Os aparatos institucionais e culturais ativados durante os processos comemorativos, seja ou não por motivo de festa, propiciam a emersão tanto de variadas versões da história quanto de várias outras histórias, que se entretecem mutuamente perlaborando os sentidos e as sintaxes dos discursos que narram a nação. Reinscritos no espaço agônico da memória nacional - formado pelas múltiplas e conflituosas posições enunciativas que agenciam a "temporalidade de representação"1 da nação -, esses discursos são produzidos e articulados a partir de "estratégias complexas de identificação cultural e de interpelação discursiva que funcionam em nome do 'povo' ou da 'nação' e os tornam sujeitos imanentes e objetos de uma série de narrativas sociais e literárias".2
Na reportagem de Isabel Braga, entrecruzam-se diversas posicionalidades e vozes diretamente relacionadas ao balanço histórico da guerra colonial afro-portuguesa. Além do depoimento do deputado Encarnação, que nos dá acesso a uma faceta importante da abordagem institucional do problema, encontraremos também testemunhos de ex-combatentes vitimados pelo stress pós-traumático, relatos de médicos dedicados ao tratamento desses casos, registros dos debates transcorridos no congresso sobre a guerra e a resenha da exposição. A reportagem prosseguiu nas duas edições seguintes, de 14 e 15 de abril, centrando-se nas acesas, e muitíssimo interessantes, discussões ocorridas no congresso lisboeta.3 Mais adiante, passarei a fazer uma leitura que ponha em evidência "as interseções ambivalentes e quiasmáticas de tempo e lugar"4 inscritas em alguns dos discursos que compõem esse conjunto. Por isso mesmo, acredito que é fundamental levar em conta o valor interpretativo suplementar que as co-incidências co-memorativas assinaladas acima podem adquirir para o desenvolvimento dessa leitura - e, quem sabe, para o esclarecimento do eventual poder delas para "gerar equívocos".

Se toda coincidência indica alguma espécie de simultaneidade, nada nos impede de tentar concebê-las, também, como a expressão de vivências cruzadas do passado, do presente, e de nossos anseios sobre o futuro. O lembrar e o esquecer, forças articuladas que são investidas no registro dessas vivências, acionam em nossos imaginários um jogo de regras sempre muito fluidas, através do qual permutas e recomposições de conteúdos simbólicos vão pôr em movimento a máquina psíquica de produzir a temporalidade. Lembrar, como sabemos, é repetir, é trazer outra vez algo à consciência, embora de maneira variadamente recombinante. Esquecer, menos do que ação oposta ao lembrar, é a operação conjugada de selecionar o repetível, segregando dentre os acontecimentos disseminados nas consciências e no tempo aqueles que devem ficar ativos ou inativos. Aliás, pela etimologia do verbo latino <*excadescere>, relacionada à ação do "podar", o esquecer seria algo aproximável a um trabalho como o de aparar os ramos em excesso, ou demasiado espinhosos, dessa roseira rizomática que é a trama da memória.5 Metáforas à parte, é pela ação do memorar que produzimos nossos campos de referências para a articulação temporal da realidade. Quando se trata da realidade nacional, são as vozes sociais, ou as liminaridades culturais, que agenciam os acordos, e as polêmicas, em torno dos sentidos que devem ser mantidos ou provisoriamente apagados - acordos e polêmicas que alimentam o processo reprodutivo significante da comunidade imaginada da nação.

Quem assistiu ao filme Matrix deve estar lembrado da cena do dejá vu de Neo, sua perturbação diante da reaparição de um gato preto num mesmo lugar em contextos diferentes. As coincidências podem ser consideradas como momentos em que as nossas noções habituais de continuidade entram em curto, visibilizando os sistemas de repetição e seleção que as engendram. Outro exemplo disso podemos encontrar na própria exposição "Testemunhos de Guerra" / "O Regresso das Caravelas", que será abordada neste ensaio como um ponto focal, ou o "gato preto", de algumas das coincidências que rondaram as comemorações lusófonas do ano retrasado. Acompanhemos a descrição que nos faz A.A.M. do módulo expositivo que dá seqüência ao busto agourento de Salazar:

As cruéis imagens do massacre de 15 de Março de 1961, atribuído à UPA, contrastam com a beleza das vistas de Luanda. O paquete "Vera Cruz" surge em grande plano, assinalando as partidas dos soldados do Cais da Rocha de Conde de Óbidos, em Lisboa. Os primeiros contingentes a desfilar pelas ruas de Luanda, nos idos de 1961, e um desembarque no rio Geba, perto de Fulacunda, em Julho de 1972, ilustram duas fases marcantes da guerra colonial.

Pelo que se lê no jogo de contrastes estabelecido pela resenha jornalística da exposição, o princípio de montagem que a orienta investe em outras sutilezas, além da pedagógica justaposição de tempos promovida na abertura. As violências cometidas por militantes da União dos Povos Angolanos ficam ainda mais ressaltadas, quando cruzadas com as belas paisagens da Luanda colonial, pela adjetivação neutra que caracteriza as ações das tropas portuguesas. Mais adiante, são postas em primeiro plano "fotos de lavadeiras, de aulas dadas por soldados" que tornam a contrastar com o destaque oferecido aos "livros editados pelos movimentos de libertação", publicações que visavam desmotivar os soldados portugueses e "tentar corroer-lhes o moral". Do anterior sublinhamento da violência exercida pelos rebeldes, passa-se a uma sugestão da insidiosidade com que as ações "civilizadoras" do colonizador eram reapropriadas por aqueles. A propósito desses contrastes, é oportuno recordar alguns esclarecimentos prestados por Wolfgang Iser a respeito do funcionamento básico de máquinas ficcionais: "Se os elementos escolhidos fazem antes de tudo sobressair um campo de referência, exatamente por esta escolha se mostra o que foi daí excluído... Deste modo, os elementos presentes no texto são reforçados pelos que se ausentaram"6 . Ora, o que temos observado no espaço textual-documental criado pela resenha da exposição7 é que a repetição seletiva de diversos testemunhos de guerra conjuga-se com uma simultânea hierarquização de seus significados, motivada por combinações específicas de realce e de neutralização de sentido que instituem uma perspectiva sobre os fatos apresentados. Ao operar supressões, complementações e valorizações estratégicas sobre os elementos narrativos - as lembranças da guerra -, a transcrição do itinerário expositivo fica então dotada de uma intencionalidade, uma instância de controle do processo de ressignificação dessa memória, que "faz com que determinados sistemas de sentido do mundo da vida se convertam em campos de referência do texto e estes, por sua vez, na interpretação do contexto".8

Ao utilizar-me dos protocolos empregados por Iser para descrever o funcionamento da ficcionalidade, não tenho em vista questionar a "veridicidade" da exposição ou da resenha, mas sim examinar os modos como se constroem os seus regimes de verdade, na medida em que ambas constituem-se como textualidades de (re)ima-ginação cultural. O caso então é de se perguntar em favor de quem, ou do quê, a exposição "Testemunhos de Guerra"... testemunhava. Ao fim do percurso e de sua resenha, A.A.M. detém-se no caso de um visitante especial, um ex-combatente que sabia de cor o número de vítimas registrado durante uma operação realizada em Moçambique por sua companhia: "9 mortos e 19 feridos evacuados". E era também com um valor dolorosamente exato que esse memorioso soldado avaliava o saldo trágico da expedição: "Para nada". Como se sabe, mesmo um "nada", assim como um silêncio, tem a sua dimensão significativa: seu poder de esvaziamento, de supressão, de neutralização. Talvez seja por conta desse mesmo vácuo assim criado, aliás, que tantas outras vozes e histórias acabem, cedo ou tarde, por confluir para ele. Vejamos então que tipo de interseções podemos estabelecer entre essa resenha que culmina no "nada" e um dos subtítulos mais loquazes da reportagem de Isabel Braga: em "Testemunhos", registram-se falas de alguns ex-militares afetados pelo stress de guerra pós-traumático. São depoimentos de cinco homens de meia-idade nitidamente perturbados: M.B., carpinteiro, parece obcecado por uma certa concomitância de datas:

Casei no dia 21 de Abril de 1974, mas só vivi um ano bem, começaram os problemas... No dia 21 de Abril de 1971, apareceu-me um guerrilheiro à frente com uma arma, eu matei-o, a minha vida a partir desse dia mudou. Comecei a ter pesadelos acordado.

M.M., projetista, além de se queixar de "muitos lapsos de memória", tem de enfrentar a disseminação do stress pelo seu corpo, o que prejudica a sua capacidade de trabalho. Já R.S., reformado, e L.C., mecânico, enfatizam magoadamente os tantos anos de descaso com que os Governos pós-25 de Abril trataram seus dramas. Mas, no caso de A.R., que foi radiotelegrafista em Angola, são lembranças de antigas e incompreensíveis coincidências que continuam a atormentar-lhe:

O Ferreira da Costa [locutor da Emissora Nacional, durante a guerra colonial] a dizer 'o seu filho encontra-se bem algures no Norte de Angola e eu a enterrar os meus colegas'. Ninguém se lembra disso mas eu lembro-me todas as noites, todos os dias [acesso de choro convulsivo].

Para experiências de vida tão dolorosamente duradouras, o apoio psicológico torna-se mesmo indispensável, ainda que ele próprio possa continuar a fazer vítimas. É disso que trata a matéria que antecede esses testemunhos, intitulada "Experiência terapêutica muito dura", na qual são recolhidos depoimentos de dois especialistas no tratamento de ex-combatentes. Logo na introdução, o Dr. Afonso de Albuquerque nos alerta para o alargado poder de vitimização dessas guerras que persistem através das memórias:

Os psiquiatras ou psicólogos que tratam destas situações também podem ser afectados pelos traumas dos pacientes, dada a relação de proximidade que têm com eles, daí que os programas terapêuticos incluam sempre normas no sentido da preservação dos próprios técnicos de saúde. Na minha equipa... tive dois psicólogos com depressões.

A Dra. Teresa Infante, psicóloga clínia, parece enfrentar com mais destemor os riscos envolvidos nas terapias do stress pós-traumático, tendo em vista a descrição que ela nos faz de sua técnica de abordagem: "tentar ligar o que eles sentem àquilo a que estiveram sujeitos, ao que tiveram que presenciar... Tenho que saber o que se passou, a história da vida deles". Mas refazer essa ligação entre presentes e passados pode expor até os mais bravos aos piores choques, conforme assinala um estudo da Revista de Psicologia Militar, também citado pela jornalista Isabel Braga:

A equipa terapêutica ficou muitas vezes surpreendida e até perturbada pelos freqüentes relatos de atrocidades e massacres cometidos por estes homens, de uma extensão e gravidade muito para além da que os terapeutas previam.

Tão imprevisível, e incontrolável, quanto o poder ressignificativo dessas memórias retornantes são os modos como elas podem se reencadear ao serem atualizadas, haja vista aquilo que o Dr. Afonso define como flashbacks, ou "fenômenos de intrusão". Segundo ele, vários de seus pacientes "revivem o passado de forma não processada, as memórias traumáticas surgem-lhes como se as coisas estivessem a acontecer agora". A Dra. Teresa afirma ter tratado de apenas um ex-militar que manifestou esse sintoma, mas a riqueza de detalhes desse caso mostra com nitidez o poder recombinante e plurissignificante desses dramáticos refluxos de imagens. Conta-nos ela:

Ele ia a passar no Campo Grande e viu uma mulher a picar folhas no chão do jardim com uma espécie de chuço, um pau com um espigão na ponta. A mulher fê-lo recordar-se do aparelho com que os soldados procuravam minas no chão. O que se sabe é que ele começou a gritar e a mandar-se para o chão, arrastando consigo uma senhora de idade que estava num banco do jardim. Foi essa senhora que acabou por conseguir acalmá-lo. [grifo meu]

Dentre as diversas vozes que se entrecruzam no espaço discursivo constituído pela reportagem, é nesses testemunhos que podemos inequivocamente observar tanto uma "energia não-seqüencial proveniente da memória histórica vivenciada e da subjetividade",9 quanto uma "posição liminar, minoritária, onde... as relações de discurso são da natureza de um conflito armado".10 As sintaxes das suas temporalidades de representação estão marcadas por um poder de iteração que promove uma experiência intensiva da repetição como atualidade e da recorrência como produção do sentido. Do ponto de vista dos velhos soldados, a luta ainda continua não como uma palavra de ordem, mas como a vivência de uma temporalidade disruptora, um modo performativo de reinscrição que rasura e permeabiliza as fronteiras enunciativas entre passado e presente. É interessante agora confrontar essa perspectiva com aquela desenvolvida por um outro velho soldado, o da resenha. A precisão numérica de suas sofridas memórias parece corresponder a um desejo de totalização, de fechamento discursivo, reforçado pelo posicionamento da fala no final da matéria. Aliás, uma posição que estabelece um oportuno contraste em relação à imagem inicial do "jovem" Salazar, explicitando a concepção progressiva do tempo que regula a sintaxe dessa pedagógica reescritura da exposição. Assim, o cruzamento entre o juízo solitário do ex-combatente e as vozes perturbadas dos seus antigos colegas constitui um "espaço liminar de significação",11 no âmbito da reportagem, onde duas distintas temporalidades de representação disputam a autoridade narrativa, visibilizando não só a "'cisão' do sujeito nacional"12 como a tensão entre os investimentos pedagógicos e performativos voltados para o balanço histórico da guerra colonial portuguesa.

Mas há mais o que se tirar do "para nada" que efetivamente arremata a resenha. Nadificar simbolicamente aquela memória é uma maneira de removê-la da contemporaneidade nacional, ainda que seus rastros mantenham-na visível; é torná-la um signo opaco e inatualizável, ao contrário do que ela representa para as vítimas do stress pós-traumático. É de se notar que, nas perspectivas institucional e terapêutica sobre o problema, o destaque conferido à desinserção social e ao poder de contágio desses ex-combatentes igualmente investe na alienação dessa magoada liminaridade co-memorativa em relação ao tempo nacional. Sugiro então que os agenciamentos pedagógicos da f(r)atura cultural gerada pela descolonização - referência histórica básica para a vigente configuração de Portugal como Estado-nação - regulam-se por estratégias, ou intencionalidades, de atualização narrativa correspondentes a uma vontade de esquecimento que ambivalentemente perpassa toda co-memoração do 25 de Abril.

Momento fundador da "nova" coesão portuguesa, nesta efeméride imbricam-se temporalidades iterativas e disjuntivas cuja emersão os investimentos pedagógicos tentam controlar, remetendo para as margens do processo significante as enunciações que interrompem "o tempo autogerador da produção nacional e desestabiliza[m] o significado do povo como homogêneo".13 Friso que se trata de um esforço de controle por deslocamento, pois é impossível recalcar a emersão performativa dessas enunciações. Na resenha de A.A.M, por exemplo, acredito que a dissimulação contrastiva da violência perpetrada pelo exército português serve para produzir a sintaxe paradoxal do "esquecer para lembrar",14 através da qual pode ser superada a ambivalência entre militares-defensores-do-sistema-colonial e militares-descolonizadores-e-refundadores-da-pátria - uma "coincidência" capaz de gerar muitos "equívocos". No entanto, é ainda mais interessante observar como o próprio signo "25 de Abril", que representa tanto a dissolução da nação imperial quanto a re-composição na nação euro-continental, pode ser utilizado para produzir um espaço-tempo narrativo que investe na disjunção e na ambigüidade para integrar. É o que está emblematizado no título da reportagem que tenho examinado. As novas medidas adotadas pelo Estado para apoiar os ex-combatentes são apresentadas como uma espécie de presente fora de época: "Abril, O Natal...". Considerando a expressivíssima carga simbólica familiar que embrulha todo presente oferecido no 25 de dezembro, o deslocamento cronológico parece mesmo dirigido a quem viva apartado numa percepção do tempo bastante peculiar - embora, na mesma medida, não possa ser deixado de fora do agenciamento coletivo da nação.

Perceba-se que não é só a comemoração do 25 de Abril que desperta, ou re-acorda, o Estado e a sociedade portuguesa para os problemas relativos aos ex-combatentes da guerra colonial: a recíproca também é verdadeira. O ambíguo protagonismo dos militares na construção da narrativa nacional acaba pondo em evidência a inscrição conflituosa e quiasmática da descolonização na história portuguesa recente. Seja no "para nada", ou nos testemunhos que reatualizam a memória da violência colonial com "uma extensão e gravidade muito para além" do que as terapias - vale dizer, as formas de controle - podem prever, observa-se nessas vozes liminares aquele poder do "discurso de minoria", mediante o qual se estabelece

o status da cultura nacional - e o povo - como o espaço contencioso, performativo, da perplexidade dos vivos em meio às representações pedagógicas da plenitude da vida... O discurso da minoria revela a ambivalência intransponível que estrutura o movimento equívoco do tempo histórico.15

Da violência institucionalizada, via "política ultramarina", que mantinha a integridade do império resultou a brutalidade da guerra que o esfacelou, abrindo caminho para uma nova configuração da nação portuguesa. Entretanto, a produção da "contemporaneidade do presente nacional"16 decorre em meio a uma guerra discursiva na qual as liminaridades que performatizam vivências daquela memória violenta e desintegradora confrontam-se aos investimentos pedagógicos voltados para esquecê-la controladamente e assim produzir a nação pacificada e reintegrada. As posições enunciativas cindidas e confrontadas no tempo duplo e ambivalente do espaço-nação acabam por visibilizar a heterogeneidade dos processos discursivos que se imbricam na construção do pertencimento nacional. Como se vê, a principal fonte de "equívocos", quando se trata de co-memorar o passado nacional português, é o entrecruzamento das diferentes estratégias com que a memória da violência colonial, simultaneamente integrativa e des-integrativa, pode ser ressignificada no âmbito da sociedade pós-colonial. A violência re-vivida como memória acumulada ou como memória repetitiva da guerra converte-se no signo que impede a totalização do plebiscito diário através do qual se articula a nacionalidade. E é por isso que essa violência só pode ser institucionalmente re-memorada mediante uma simultânea vontade de neutralizá-la, de deslocá-la - de esquecê-la. Daí se compreende o quanto lembrar de caravelas - vale dizer, de outras guerras - em pleno 22/25 de Abril pode se tornar terrivelmente problemático...

Gostaria de muito brevemente comparar esse sistema de interpretação de memórias magoadas operado pela reportagem "Abril, O Natal dos velhos soldados" com algumas características do processo narrativo desenvolvido por António Lobo Antunes em seu romance As Naus. Ficção autodesnudada, esta obra não se intimida diante de temporalidades híbridas nem de estranhas coincidências. Tematizando, de uma maneira que oscila entre a ironia e a amargura, o retorno maciço dos ex-colonos portugueses à metrópole logo depois do 25 de Abril, Lobo Antunes dá voz ao desnorteio desses indivíduos através de personagens que ostentam os nomes de grandes vultos da história imperial: Vasco da Gama, Diogo Cão, Pedro Álvares Cabral, "o homem de nome Luís" etc. Deambulam todos por um Portugal que conhecem sem conhecer, um país delineado por cruzamentos intempestivos de passados e presentes, uma nação ressignificada pelo estranhamento pós-colonial que se instala nitidamente no seu cerne. Tempo e história entrelaçam-se nesta narrativa de acordo com um contrato ficcional que investe no paradoxo e na crítica para enunciar e reavaliar o que até então estivera recalcado: o sentido da experiência colonial a partir da posicionalidade de quem dá voz a esse regresso rearticulando diretamente o passado e o presente.

Esse trabalho de releitura/reescritura da história operado por Lobo Antunes em obras como As Naus assinala outras dimensões do poder transgressivo dos textos ficcionais. É uma pena que nem sempre os jornais - que não deixam de funcionar de acordo com princípios elementares das máquinas ficcionais, conforme vimos - invistam nesse poder, quem sabe por conta do afã de garantir a "objetividade" de seus conteúdos. Em certa medida, essa questão é levantada na matéria "A memória asfixiada", assinada pela jornalista Inês Nadais e publicada no Público do dia 20 de abril. Apresentando as discussões ocorridas durante o debate "Guerra Colonial - Realidade e Ficção", promovido pelo Cineclube do Porto e pela Universidade Aberta, em dado momento é posta em destaque uma fala que, acredito, proporciona uma boa súmula do que está em causa nessas guerras entre o real e o fictício:

É obrigação de um país e daqueles que fazem obras de ficção dar voz às pessoas que experimentaram situações-limite como a guerra. Mas Portugal é um país que abafa a sua ficção. Há algo de estranho nesta nossa vontade de reprimir a memória quando ela nos dói... O 25 de Abril tirou razão aos que combateram, mas, o que é pior, tirou-lhes a voz. A ficção serve para dar voz àqueles que não conseguem exprimir-se. Os soldados precisam de reencontrar na ficção as situações que os fizeram sofrer.

A oportuna declaração do cineasta António-Pedro Vasconcelos coloca em evidência o quanto o espaço de construção do real-institucional pode funcionar como um espaço de recalque, de paralisia das forças vivas da cultura - e o quanto o espaço ficcional pode ser compreendido "como uma realidade que possibilita o esclarecimento de realidades".17 Conforme pudemos observar ao longo deste estudo, nas guerras entre realidade e ficção não existem regras fixas, embora deva-se estar sempre atento para as regras fixadas. No caso das narrativas identitárias, essas regras instituem-se a partir dos mecanismos de controle e transgressão que agenciam as liminaridades do espaço-nação. A construção do personagem Povo - ou do espaço enunciativo da polifonia social - faz-se através de um entrecruzamento contínuo dos campos de referência, movimento que tensiona e põe em conflito a multiplicidade de sujeitos encenados na dimensão agônica das temporalidades ambivalentes.

 

Notas:

  • * Estudante matriculado no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da UFBA, e colaborador do projeto Reconfigurações do Imaginário (PRONEX/FINEP).