A situação da narrativa no início do século XXI.

À guisa de Sherazade

Cleonice Berardinelli
PUC-Rio - UFRJ
A Leandro Konder

Este nosso encontro propõe o desenvolvimento de temas que se originam num tema central - "A situação da narração no início do século XXI", com um subtítulo-epígrafe, interrogativo: "Saudades de Sherazade?".

Estará Sherazade morta neste início do século XXI, para que dela tenhamos saudades? Era o que pensava Benjamin, há sessenta e cinco anos, quando disse: "a arte de narrar está em vias de extinção". E lamenta a nossa privação: "É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências."[1] Se essas palavras fossem escritas mais recentemente, talvez fosse um pouco diversa a posição do ensaísta, que não discutirei, até pelos motivos apresentados a seguir.

Sentindo-me pouco convivente com as obras de ficção contemporâneas, por ter centrado há alguns anos minhas pesquisas, e os cursos delas provenientes, nos séculos que decorrem entre o XVI e o XIX, e ter recuado, neste último semestre, às origens da literatura portuguesa, quis eximir-me de estar neste Seminário como um dos palestrantes, mas, pressionada por Izabel Margato - contra cuja afetuosa insistência não tenho armas que me defendam -, lembrei-me, em meio à aflição, de uma pergunta de Eduardo Lourenço, feita há mais de dez anos, depois de me ouvir a leitura de uma conferência sobre os censores de Camões: "A Cleonice já escreveu ficção, não é verdade?". Esta pergunta lisonjeira, vinda de quem vinha, subiu dos desvãos da memória e me deu a ilusão de ser capaz de produzir um texto narrativo. Antes do mais, era preciso dar-lhe, com urgência, um título. Sem bem saber como me aventuraria por esses ínvios caminhos, chamei-lhe evasivamente "À guisa de Sherazade". Talvez sentisse em mim o efeito mágico da palavra da astuta narradora que, mantendo o interesse do rei da Pérsia, salva a própria vida e a de sua irmã Dinarzade. Não se trata agora de salvar-me a vida, mas o risco que assumi não era (e ainda não é) pequeno. Vem-me à mente um passo de um sermão do Padre António Vieira, patrono da nossa Cátedra, que cito de memória, garantindo-lhe apenas o sentido geral: "E se os ouvintes que aqui vieram, enganados com o orador, saíssem desenganados do seu sermão?" É um risco sério, que me disponho a correr, bastante assustada.

Sem me atribuir, nem por sombras, o talento da jovem narradora, e bem ciente de que as minhas narrativas estarão longe de ter o atrativo das de "Sindbad, o marujo", "Aladim e a lâmpada maravilhosa" ou "Ali Babá e os quarenta ladrões", mas sabedora de que me bastará manter a atenção de meus ouvintes apenas por alguns minutos, aventuro-me a lançar à água o meu "frágil batel", no desejo de que não "se alague cedo"[2] e me leve a "esperança de porto e salvamento."[3]

Estarão os meus pacientes ouvintes dispostos a ouvir-me com complacência?

Minha estória, como a dela, também feita de estórias (é este o único ponto de aproximação entre nós), não provocará a tensão da expectativa, que mantém a atenção sempre acesa; não poderei, como Sherazade, interromper a narrativa para deixá-los mortos de curiosidade (chego até a pensar que foi ela a criadora do gancho...). Dêem-me, porém, um crédito de confiança e deixem-me começar, como Camões e os predecessores que seguiu, Homero e Vergílio, por um pedido de ajuda a uma entidade capaz de dar-ma. Mas qual delas me servirá? Calíope inspirava a poesia épica, a mais antiga forma de narrativa; Clio, a história. Aquela, invocada por Camões, nominalmente, duas vezes no seu poema, é por ele chamada "grão rainha / das musas"[4], em razão do gênero que preside. Decido-me a voltar a Benjamin, por onde comecei, e surpreendo-me em ler que "Mnemósine, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica."[5] Ora, aprendi que Mnemósine era, não a musa da epopéia, mas a mãe das nove musas, que as teve de Zeus, segundo Hesíodo, ou de Febo, segundo a tradição, e surpreendo-me ainda uma vez ao ler que o mesmo Benjamin lhe chama "a deusa da reminiscência", alargando-lhe o sentido:

A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando.[6]

Digo "alargando-lhe o sentido", e digo-o em dois sentidos: um, digamos funcional, pois a vejo também na função de musa inspiradora, como sua filha Calíope; outro, temporal, pois que se estende o seu poder de lembrar ao tempo decorrido no mundo sensível.

A minha surpresa dever-se-á, talvez, a desconhecimento meu na área da filosofia (como Valéry, e com muita pena, tenho de confessar que "La philosophie n'est pas mon fort"), e à antiguidade dos meus conhecimentos que, vindos de Platão, passam por Camões, empregando o termo nas célebres redondilhas "Sobre os rios":

Mas ó tu, Terra de Glória,
se nunca vi tua essência,
como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
senão na reminiscência.[7]

Aferrada ao que aprendi há tantas décadas, é a Clio, musa da história, ou a Calíope, musa da epopéia, que apelo para que cada uma, ou as duas, me ajudem na tentativa de amarrar a um fio narrativo uma série de aspectos, atitudes, sentimentos, que caracterizam, a meu ver, uma faixa bastante larga da sociedade medieval da península Ibérica, recortada por mim do amplo tecido da poesia trovadoresca, escrita por poetas peninsulares - portugueses, galegos, castelhanos, leoneses, aragoneses, e outros mais - cuja produção, repartida entre o profano e o religioso, se constitui de poemas genericamente chamados cantigas, subdivididas as profanas em de amigo e de amor, a que hoje chamaríamos líricas, e de escárnio e maldizer, que denominaríamos satíricas. As religiosas eram, em sua totalidade, dedicadas à Virgem, e por tal se intitulou o seu conjunto Cantigas de Santa Maria.

Não suponho nem pretendo estar-lhes dando informações novas, mas apenas tentando, despretensiosamente, avivar a memória de alguns mais voltados para o presente do que para um passado remoto, datado de seis a sete séculos atrás.

Antes de encetar a minha estória, levei dias a fichar centenas de cantigas, quase todas já muito minhas conhecidas, mas vistas até agora com os olhos de aristarco (que Aristarco da Samotrácia, o grande crítico considerado o pai da filologia em sentido moderno, me perdoe a ousadia...) e não com olhos de Sherazade (a quem também tenho de pedir mercê). É o momento de me assumir como narradora, mesmo sabendo que tenho à frente uma "pedra no meio do caminho", e mergulhar nos primórdios de uma literatura que começa, como sói acontecer, em verso musicado e, embora os seus cultores sejam de nacionalidade vária, expressam-se todos em uma só língua, o galego-português, o verbo poético da Hispânia. Foi nessa língua em formação, da qual perdemos alguns belos vocábulos, como o adjetivo velida, que alterna, no louvor da beleza feminina, com fremosa, louçana, de bom parecer, e foi substituído na língua do século XVI por bonita, bem menos bonito, a meu ver; que os trovadores cantaram, em seu próprio nome, a coyta[8] de amor, a esperança e a desesperança, a confiança e a desconfiança, o ciúme, relacionados à amada, sempre chamada mia[9] senhor, como convinha na linguagem do amor cortês, já que o amante se dizia seu vassalo; foi nessa língua, repito, e atribuindo-se uma voz feminina - que chama ao amado meu amigo - que cantaram os mesmos sentimentos e mais a funda saudade que afligia as mulheres quando os homens iam para a guerra ou viajavam nas barcas do rei; a longa espera, as dificuldades para ir ao encontro do namorado; a alternância entre confiar nele e dele desconfiar, as disputas com a mãe, e, mais raramente, a sanha que a tomava e de que, por vezes, se arrependia, com medo de perdê-lo. Em timbres diferentes, em diferentes tonalidades, com diferentes pontos de vista, cantam variações sobre um tema central de que o amor é a tônica e a coyta é a dominante.

Somarei estas múltiplas vozes para contar, afinal, uma estória de estórias, como prometi, uma estória cujos protagonistas, homens ou mulheres, serão narradores na primeira pessoa, ou interlocutores de um diálogo implícito, raras vezes com resposta, nas cantigas de amor, ou muitas vezes explícito, nas de amigo, uma estória de espaço e tempo quase nunca fixados, naquelas, e mais perceptíveis, nestas.
Desde já, porém, justifico-me de não conseguir ser apenas quem narra, mas estar a intrometer-me como quem esclarece, completa, comenta, mesmo quando, finalmente, eu der início à narração propriamente dita. Afinal, há verdadeiros narradores de romances ou novelas que se fazem presentes, dão-nos a mão, interpelam-nos, desdizem-nos, permitindo, embora, que os desdigamos; por isso privilegio um certo Camilo, o Garrett das Viagens, e o nosso "Bruxo do Cosme Velho". Esta face, que é a minha, e de há muito, por dever de profissão, não conseguirei afastá-la. A outra será, quando muito, a de uma possível heterônima passageira...

Mas passemos à estória, ou à tentativa de estória, começando pelas queixas dos trovadores, em sua própria voz, isto é, nas cantigas de amor.

Cantigas de amor

Dá a lírica trovadoresca os seus primeiros passos, e o possível autor da mais antiga das cantigas, Pai Soares de Taveirós, contemporâneo de D. Sancho I, já morre de amor por quem não o ama e exprime esta dor de modo altamente expressivo, dirigindo-se à sua senhor, sempre a partir de uma comparação com outro amante infeliz, que morreu porque "nunca ben / ouve da ren que mais amou", e ensandeceu, e "não foi ledo nem dormiu"; e, para cúmulo do sofrimento, "a viu levar a quem / a não valia nem a val". Como ele, "ay, mya senhor, assi moyr'eu!". Morre de amor não correspondido, como quase todos, mas com uma agravante de que talvez nos dê o primeiro exemplo na poesia de um autor português: o ciúme, "o monstro devorante" de Bocage, o causador do "inferno de amar", de Garrett.

Um outro lamenta a sua desdita: longe da terra onde está sua senhor, deseja lá ir; chega bem perto, mas não ousa aproximar-se mais, sabendo que ela, a melhor, a mais bela, a mais sensata, a mais bem dotada de todas as mulheres não lhe corresponderá ao amor. Confessa que chorou muito e chamou por Deus, a quem pede que a traga de volta, ou o faça vê-la onde está, mais acessível aos seus apelos: Deus não atende a seu rogo. Tentou esquecê-la, não o conseguiu; tentou amar outra, em vão. Só dela lhe poderia vir bem ou mal. Nem Deus, nem o próprio Amor poderão salvá-lo. Ao Senhor pede que o leve logo, mas receia que nem nisso possa ser atendido, se tudo depende dela. Seu amor não tem paralelo.
Não só ele teria essa convicção; um outro, aceitando ser talvez inferior aos outros em linhagem, poder e outros bens, está convicto de que os vence a todos em amar aquela que o tem em seu poder e de quem só recebe, em troca, grande sanha e má vontade. Em desespero, pergunta ao rei de Portugal se, amando assim, deve ser desamado [por ela]. Que resposta lhe poderia dar o rei, se este fosse, como se julga provável, D. Dinis, que em suas cantigas se queixa das mesmas dores de amor?

Ao rei passo a palavra. Como narrador de si mesmo, confessa que quer deixar de trovar e de amar, quer ir para uma terra onde não possa mais saber dela, nem ela dele, já que o seu viver aqui só causa pesar a ela. Só Deus pode avaliar quão penoso lhe será suportar o afastar-se da amada; nada mais lhe causará prazer, a não ser a morte, mas teme que Deus tarde a dar-lha. Haverá coyta tão grande como a sua, que maior ainda será quando se afastar da terra em que está a melhor de todas, cujo louvor nunca se pode fazer completamente? Confessa ainda, com extrema simplicidade, repetitivo, mas em crescendo suave, a certeza que tem do seu amor por ela: que Deus não atenda à sua súplica, "se não é o coração meu / mais perto dela que o seu." Este é o refrão, encantador de simplicidade, mas há ainda uma finda que, como queria a "Arte de trovar", vem "en acabamento da cantiga": retomo o refrão: "se não é o coração meu / mays perto dela que o seu." E, já agora, a finda: "Que às vezes tem longe o seu / e sempre consigo o meu."

Mas sua dor parece crescer quando lhe pede:

Senhor fremosa e de mui loução
coraçon, e querede-vos doer
de mi pecador, que vos sei querer
melhor ca min

sem resultado. Buscando elementos para convencê-la da grandeza do seu amor, e conhecedor que era da poesia e da novelística de além Pireneus, compara o seu amor aos mais celebrados da época: o de Brancafrol e Flores, ou o de Tristão e Iseu. Não se deixaria o coração da amada tocar pela comparação entre o amor daqueles grandes amantes dos romances da época e o que lhe dedica o rei-trovador, que o afirma inda maior? Parece que não, pois que este se diz, ao terminar a queixa-súplica, coytado, que ensandeceu.

Não referido a personagens, mas à técnica provençal ("Quer'eu, en maneyra de proençal, / fazer agora un cantar d'amor") será o louvor maior que o amante faz à amada, dizendo que nela nada falta: nem valor, nem formosura, nem bondade, nem conhecimento de todo bem, nem afabilidade, nem critério; além disso, Deus nela não pôs mal, mas beleza e capacidade de falar muito bem e rir melhor que outra mulher; ainda mais: é muito leal, de tal maneira que ninguém poderá referir cabalmente as suas qualidades, pois é perfeita. É esse canto de louvor que D. Dinis se propõe a fazer, como ele diz, "en maneyra de proençal". Nesta cantiga, que se poderia dizer de puro louvor, não há espaço para a correspondência ou não correspondência da senhor; não há, pois, espaço para a queixa. Como aqui, não há queixa na seguinte, em que o poeta, sujeito lírico, deixa o tom menor, quase sempre plangente, e retoma, em tom maior, o elogio da amada, que, neste caso, se restringe a qualidades morais e intelectuais, às quais acrescenta um título único, até porque poucos o poderiam conceder.

E, poys sabedes entender
sempr'o melhor e escolher,
verdade vos quero dizer,
senhor que sirvo e servirey:
poys vos Deus atal foi fazer,
érades boa pera rey.

Ao fim de cada uma das três estrofes, este refrão: "érades boa pera rey." Onde ficou o amante infeliz, desdenhado, pedinte, que víamos curvado, talvez de joelhos, olhos postos no alto, onde ele punha a amada ou onde, bem mais raro, estaria Deus? Surgiu em seu lugar um amante que também é e sabe-se rei, e o vemos em postura erecta, a repetir à sua senhor, como quem, sintetizando os seus predicados, lhe apõe uma condecoração: "érades boa pera rey."

Também foge à postura de triste amador a afirmação de que está alegre porque não pode crer que Deus permita que ela, "que não tem igual", possa deixar de retribuir o seu amor. Essa certeza, diz ele, "me faz alegr'andar / e me dá confort'e prazer". Também Airas Nunes está encantado em amar a mais formosa de todas as donas, porque o amor

[...] faz-me alegre e faz-me trobador,
cuiydand'en ben sempr'e mays vos direy:
faz-me viver em alegrança
[...]
e dá-m'esforc'e asperança.

Uma reação inteiramente original, numa breve cantiga de amor, é a de D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, cujas quinze cantigas não chegam a ter a qualidade das do progenitor, autor de mais de cem. Proíbem-no de ver sua senhor, pois bem: ele morrerá; um dia, também ela morrerá e ele está certo de que, se no inferno a encontrar e puder vê-la, não terá mais coyta nem outro mal e ainda sabe que os que lá estiverem nada sofrerão, tal será o prazer de contemplá-la. É uma corajosa afirmação de um amor paciente, que espera, que vai além da morte, que, blasfemo, se realiza no espaço do interdito.

De bom parecer, de bom semelhar, de bom prez, estas senhores não têm sinais que as identifiquem. De uma se diz que canta; é pouco, mas foi o seu cantar e os seus olhos que, unidos ao seu parecer e à sua reputação, despertaram um novo amor no trovador o qual, livre da prisão de uma outra senhor, pensara nunca mais deixar-se prender. De outra se ouvirá dizer mais, porque um poeta, e dos melhores, João Garcia de Guilhade, cometerá (correndo o risco de zangar-se ela), a indiscrição de, revelando aos amigos a grande coyta que tem, explicar-lhe a causa: "Os olhos verdes que eu vi / me fazen ora andar assi." Corajoso!, pensa o leitor, mas, se vai um pouco adiante, ouve-lhe a confissão de que só naquele dia teve a coragem de falar, e muito pouco, com sua senhor; feliz de tê-lo conseguido, fica depois apavorado pelo que lhe disse: não sabe se lhe falou bem ou mal, tanto lhe batia o coração. Mais tímido ainda é Rui Paes de Ribela: consegue aproximar-se da senhor, mas, quando está com ela, não lhe ousa falar. Justifica-se: viu-a tão bela, que não pôde dizer uma palavra.

Corajoso, desassombrado mesmo, é João Soares Coelho, senhor da corte de Afonso III, que confessa publicamente o amor que tem, não por uma dama do seu nível, mas por uma ama de meninos. Alvo da zombaria de outro trovador, que o acusa de dizer mentiras a respeito da moça, João Soares Coelho concorda que mentiu, sim, mas só quando não louvou nem a metade da beleza dela, que tem melhor parecer do que todas as outras, é muito mais mansa, fala e ri com mais acerto. É por tudo isso que pede a Deus que a faça amá-lo; se isso acontecer, não quererá ser "rey, nen seu filho, nen imperador."
Morrem de amor os trovadores, nos seus versos. Pero Garcia Burgalês, que também sofreu do mesmo mal, um dia pôs em dúvida tanta morte, em um sirventês literário, ágil e espirituoso, em que visa mais especialmente um deles:

Roy Queymado morreu con amor
en seus cantares, par Santa Maria,
por ˜ua dona que gran ben queria;
[...]
porque lh'ela non quiso ben fazer,
feze-s'el en seus cantares morrer,
mays ressurgiu depoys, ao tercer dia.

e termina o poeta de Burgos, brincalhão, dizendo que, se soubesse que, depois de morrer, ressuscitaria, não temeria mais a morte. Com este toque bem-humorado, de uma cantiga de cunho satírico, mas sátira de um tema recorrente nas cantigas - a morte por amor - encerro o capítulo das cantigas que se movem "a razon delas".

Cantigas de amigo

Nestas, a mulher é mais visível, mais situada em espaços concretos: a ermida, a ribeira, a fonte, as torres, o bosque; parecem, e devem ser, todas jovens: a amiga, as irmãs, as amigas da amiga, a própria mãe, que ainda disputa o namorado da filha. Destas cantigas desaparece a fórmula mia senhor, já que é ela quem fala - ao amigo, à mãe, às amigas, às irmãs, às flores do verde pino, às ondas do mar, aos objetos com que se orna - ou é dela que se fala. Pensamos nela como jovem, graciosa, quase sempre em movimento: vai à fonte, vai à praia, vai dançar sob as avelaneiras, vai às romarias, vai ao encontro do amigo, torce o sirgo, sobe às torres, pastoreia; situamo-la no espaço e no tempo. Mais palpável, mais real, sentimos-lhe a presença, ouvimos-lhe a voz. Como o amigo, também sofre de e por amor, quando a dúvida se insere no seu coração: se ele jurou e perjurou, ela sentencia: "nunca molher deve, bem vos digo, / muyt'a creer per juras d'amigo."; outro afirmou que nunca mentiria, nunca amaria senão a ela, que confiava mais nele que em si própria, e agora sabe que mentiu; não o quer mais, nem a outro nenhum, que fará o mesmo; aquele foi-se e prometeu mandar-lhe recado: "mas, poys non ven, nen envia / mandad', é mort' ou mentia." A um mentiroso que lhe diz que ensandece e morre por ela, lança-lhe em rosto que nunca o viu perder o juízo ou morrer. Ao ouvir-lhe as queixas mais uma vez, pergunta-lhe: "non morrestes d'amor?" E, como a resposta é óbvia, diz que jamais crerá que ele morre por ela, a não ser que morra! Cansada de um amor que durou muito, meio louco, meio sério, mas nunca levado a cabo, como o de Brancafrol e Flores, garante ao amigo que tudo acabou, repetindo, no refrão: "já safou.", e concluindo, numa finda divertida e desmoralizante:

E dessa folia toda,
já safou,
já safou de pan de boda,[10]
já safou.

Há, porém, o contraponto: a confiança no amigo, que lhe pode chegar por informações de várias procedências: de alguém que o viu - uma amiga, que tem tanto que contar, que conversarão o dia todo -; de uma outra, que lhe vem transmitir estas palavras que ouviu do amigo: "Ay, senhor, id' a mya senhor rogar, / por Deus, que aja mercêe de mi."; de um trovador, que, tendo desafiado o amigo em tença de amor e tendo sido por ele vencido, lhe conta que o seu competidor a defendia em versos melhores que todos. Uma menina refere-se ao amigo como trovador, que fez para ela uma cantiga d'amor, a melhor que ela viu. Certa de que o amigo só a ela louva em seu trovar, diz outra, presunçosa, que os que o ouvem acham que ela deve agradecer-lhe, mas não lhe agradece, porque sabe que "parece ben." Essa segurança não dura sempre: há noites de insônia, longas de passar, povoadas de saudade e dúvidas:

Eu nunca dórmyo nada
cuydand'en meu amigo.
El, que tan muito tarda,
se outr'amor á sigo,
ergo o meu, querria
morrer oj'este dia.

Se fosse verdade, "meu dano seria / de viver mays um dia." De noites solitárias fala a amiga das cantigas de Juião Bolseiro.

Aquestas noites tan longas
[...]
Porque as fez Deus tan grandes
sen mesura desiguaes
e as eu dormir non posso?
Porque as non fez ataes
no tempo que meu amigo
soía falar comigo?

A escuridão da noite parece não acabar; não seria assim, se o amigo estivesse com ela:

Quand'eu con meu amigo dormia,
a noite não durava nada,
e agora dura, e a madrugada
non traz a luz, nen chega o dia,
mas, se dormisse con meu amigo,
a luz já estaria comigo.

De que luz está ela falando? Da real, que traz o sol, ou da metafórica, que emana da presença dele?

Grandemente original é a cantiga de Joan Airas de Santiago, adiantando-se no tempo ao utilizar-se da reiteração do tema da mudança, dos mais glosados no Renascimento, para pô-lo às avessas, na afirmação da não mudança do coração do amigo, por oposição a tudo mais.

Todalas cousas eu vejo mudar,
mudan-s'os tempos e muda-s'o al,
muda-s'a gente en fazer ben ou mal,
mudan-s'os ventos e tod'outra ren,
mays non se pod'o coraçon mudar
do meu amigo de mi querer ben.

As romarias são um ponto de encontro das meninas, na verdade o único de que nos dão conta as cantigas: várias ermidas são procuradas por devoção, mas nem sempre o santo lhes atende às súplicas. Por isso, uma diz que não vai a São Clemenço rezar, para que lhe tire a coyta do coração, porque de nada valeram as suas orações: zanga-se com o santo que não lhe traz de volta o amigo, teimando em tirar-lho, a ela que o ama desde que o viu. Se o trouxesse de volta, ela acenderia renques de velas diante da sua imagem; como não o traz, só terá velas de cera ordinária. Desesperada, diz que não dormirá até que se vingue do namorado. À mesma igreja, porém, vem outra e nela recebe de um mensageiro a notícia de que lá irá seu amigo. Infortunada é a terceira, cuja mãe a proíbe de ir a São Servando, onde poderia encontrar o amado; a zanga, aqui, é contra a mãe. Brejeira, a que quer ir a São Salvador para encontrar o amigo. Não pede licença à mãe, diz-lhe que não se aborreça por ir à ermida, pois, se lá forem três, duas, ou uma fremosa, ela será uma delas, isto dito três vezes, no refrão, reafirmando a determinação extremamente graciosa:

Por Deus, que vos non pês,
mya madr'e mya senhor,
d'ir a San Salvador,
ca, se hoj'i van tres
fremosas, eu serey
a ˜ua, ben o sey.
Por fazer oraçon,
quer'oj'eu: alá ir,
e, por vos non mentir,
se oj'i duas son
fremosas, eu serey
a ˜ua, ben o sey.
I é meu amig'ay
madr'e i-lo-ei veer,
por lhi fazer prazer;
se oj'i ˜ua vay
fremosa, eu serey
a ˜ua, ben o sey.

Em coro, felizes e maliciosas, dizem que, se suas mães vão a São Simão de Val de Prados acender velas,

nós, as meninhas, punhemos d'andar
con nossas madres, e elas enton
queymen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, baylaremos i.

Estão animadas porque os amigos lá estarão para vê-las bailar "en cós", isto é, sem o manto e, portanto, menos vestidas.

Sozinhas, ou em companhia da mãe ou das amigas, vão à fonte, onde encontram o namorado; vão à ribeira, vêem partir o amigo na barca ou no navio. Estes seriam o espaço privilegiado de Pai Gomes Charinho, cujas cantigas de amigo os referem, o que é natural num almirante do mar, mas, numa das mais belas, ouvimos a amiga a celebrar o fato de ele não ter mais aquela função - "non é mays meu amig'almirante do mar" -, pedindo a Deus que livre de coytas aquele que tirou do mar o amigo, assim como a livrou das preocupações que a assaltavam quando ele embarcava: os ventos, as tormentas, a expectativa de más notícias.

Algumas mães disputam com as filhas o direito de ter um namorado; uma delas queixa-se de que a filha lhe tirou o amigo, embora ela seja mais bonita, retira-lhe a bênção e lança-lhe uma maldição:

dê-vos Deus, ay mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Entre muitas falhas no meu pretendido painel narrativo, lamento e tento suprir, à última hora, a ausência de uma pastorela, esse gênero híbrido, parte narrativo, parte dialogado, que, como a cantiga de amigo, tem a menina como centro. Numa delas, temos a pastor, inteligente, criteriosa, que ora não quer aceitar o romeiro como entendedor - pois acaba de conhecê-lo e nem sabe se não há outra na sua vida, mas que lhe aceita as razões, dizendo-lhe que, terminada a romaria, o acompanhará - : ora pensa no amigo, desconfiando de sua fidelidade e - coisa nunca vista! - desmaiando entre as flores e trazendo na mão, para nosso espanto, um papagaio, que ela interpela: "que será de min agora?" Ao que a ave responde: "Ben, por quant'eu sey, senhora." Ao ouvi-lo, implora-lhe que diga verdade, por Deus, pois sente-se morrer. E o papagaio lhe responde, para nosso espanto maior: "o que vos á servida, / ergued'olho e vê-lo-edes.", num final inesperadamente feliz. E fica, nesta intrigante cantiga, já tão bem estudada por Luciana Stegagno Picchio à luz de uma leitura de Ungaretti, fica a dúvida altamente instigante: vê-lo-eis? A quem? Ao narrador que entraria na sua diegese, como o amigo? Ao próprio papagaio, confessando-se o que a serve?

Gostaria de ter podido abranger mais amplamente a faixa da sociedade que se vislumbra através das cantigas. Dei-lhes apenas uma amostra do que nelas se contém. Teria sido, também, muito mais expressiva a leitura mais abundante dos versos: não é, entretanto, fácil perceber-lhes o sentido apenas ouvindo-os. Resta-me almejar que o tempo em que tão pacientemente me ouviram não lhes tenha sido tão longo como pareceu à menina o da noite em que dormiu sem o amigo ao lado e da qual se poderiam fazer três grandes noites. Se o não consegui, temos de concluir que Vieira tinha, além de muitos mais, o dom da profecia.

 

Notas:

  • 1 Walter Benjamin, "O narrador", in: ______. Obras Escolhidas, 2. ed., [s.l.: s.n.], 1986, p. 197, v. 1: Magia e Técnica, Arte e Política.
  • 2 Luis de Camões, Os Lusíadas, Lisboa, Antonio Gonçalves, 1572, VII, 78.
  • 3 Ib., IV, 1.
  • 4 Ib., X, 9.
  • 5 Benjamin, op. cit., p. 211.
  • 6 Ib., p. 211.
  • 7 Luis de Camões, Rhythmas, Lisboa, Manoel de Lyra, 1595, f. 135.
  • 8 A coyta é o sofrimento de amor, que aflige os apaixonados, todos se confessando coytados.
  • 9 O possessivo feminino da primeira pessoa se escreverá mia, se tiver duas sílabas, ou mya, se tiver uma.
  • 10 '"Pan de boda" = "pão" de casamento, bolo de noivos, símbolo da alegria nupcial."' Vitorino Nemésio, A Poesia dos Trovadores,Lisboa, Bertrand, 1963, p. 72.