Camões e Eça de Queirós

Saramago e o romance histórico

Nelson Rodrigues Filho
PUC-Rio


O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os
grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada
do que um dia aconteceu pode ser perdido para a história[*]

1. O texto de José Saramago, na construção de seu universo ficcional, faz da história, matéria da literatura, estabelecendo um diálogo tenso com o passado, para buscar o sentido (a razão) da contemporaneidade. Ciente de que a vida é vivida no jogo do imaginário que se torna senso comum e a história é contada, o discurso releva a importância e os limites da memória (individual e coletiva), que precisa ser permanentemente reativada, em relação a um passado que é irrecuperável, ruína e vestígio do que foi ou poderia ter sido.

Dessa forma, o imaginário da ficção, em face do imaginário que se tornou determinação, pode, voltando-se para o passado, enquanto registro no presente, do que já não é, apontar para o projeto (a utopia) de um tempo que poderá vir a ser.

Repito: escrevo isto horas depois, é do ponto de vista do acontecido que relato o que aconteceu: não escrevo, recordo e reconstruo[1]

O romance de Saramago incorpora a concepção da modernidade sobre a ficção, que não se vê mais como expressão individual do sujeito ou modelo mítico da nação, como fazia entender o Romantismo, nem o retrato do observado, como desejava o Realismo-Naturalismo, mas como espaço e processo de construção de mundo, na diversidade da representação, na mesma medida de uma compreensão da História como discurso, referência a um passado presumível, de que faz seu correlato intencional.

O texto ficcional de Saramago ultrapassa a intenção de contar uma estória. Configura um espaço de questões relacionadas a paradigmas determinados e tornados convenção. Entre elas, a compreensão de processos historiográficos e ficcionais vinculados ao problema do tempo e da escrita, numa forma de auto-referencialidade e interdiscursividade, que põe em relevo a alusão, a citação, a inversão característica da paródia e da sátira, a encenação, enfim, da linguagem.

2. O romance histórico, na melhor tradição de Walter Scott, realizado com êxito, na literatura portuguesa, por Alexandre Herculano, faz o passado absorver o presente, como cânone de compromisso e exemplo para o comportamento social e político, transformando o respeito à tradição em um ato de contrição religiosa. O romance de Saramago faz o presente buscar um diálogo crítico com o passado, na tentativa de encontrar um sentido para o tempo, múltiplo, mutável e construído pelo homem, pleno de potencialidades que se irrealizaram.

Essa diferença se revela na forma discursiva, decorrente de uma concepção do próprio discurso. O romance histórico se deseja a representação afirmativa de uma realidade exemplar, a ser repetida, não como uma promesse de bonheur, como atribuía Benjamin à arte, mas como única possibilidade de felicidade. O narrador se apresenta como evangelista, aquele que anuncia uma verdade, assumindo o ponto de vista onisciente e dirigindo a narrativa segundo as demandas de doutrina a ser exemplificada pela ação do herói. Isso fica particularmente evidente em Eurico, o presbítero, que deixa revelada a concepção romântica da História, ao buscar na medievalidade o suporte mimético da história nacional.

Romance de uma única voz, incorpora a tradição da novela de cavalaria, fundamenta a legitimidade da ação na crônica medieval, adota a elocutio metafórica como fio semântico condutor e elege a antítese como fator de estruturação do universo retórico-ideológico, dicotômico e excludente. O par cruz/alcorão, por exemplo, delimita, simbolicamente, o bem e o mal, na luta de cristãos (godos) e pagãos (mouros), conferindo aos primeiros a condição de heróis originários da civilização portuguesa, conduzidos pelos desígnios divinos, segundo a fé ou a culpa humana.

Tal como a novela medieval, a ação heróica, no plano semântico, não se esgota, como signo narrativo, mas se abre como significante relacionado a um significado ideológico-cristão, o que dá à narrativa a feição do mito. Caudatário da fonte épica da narrativa, o discurso romanesco de Herculano tenta recuperar a aura, no sentido benjaminiano, fazendo do signo humano e histórico, a inscrição, em última instância, da presença e da vontade divina.

O herói tem o seu ato e a sua voz ligados a uma natureza anímica (a história como natureza), subordinados à ação discursiva e à voz do narrador (e pai), como instrumento de proposições a priori, que a estória deve encarnar. Vista desta forma, a narrativa reproduz o comportamento discursivo-semântico da fábula, como processo simbólico, com uma intenção e um sentido edificante e exemplar, na reafirmação de um imaginário sócio-histórico dissimulado de natureza.

A proposta reformista em face do celibato religioso e no retorno ao século VIII, como era histórica originária da nação lusitana, é a lição que pode oferecer os instrumentos para a escrita do presente. Não esconde um desejo essencial de unidade entre o ideal cristão e o ideal nacional.

Reunindo a enunciação narrativa o lírico, o épico, o místico, guiada pela voz de um narrador-orador, Eurico, o presbítero acaba por erigir um monumento (a história como monumento) da cultura portuguesa, com cuja memória propõe um recomeço. Não é sem razão, portanto, que o texto adquire, claramente, um matiz retórico, cuja eloqüência deixa à vista a intenção de despertar a empatia do leitor, ditada pela emoção, reproduzindo um efeito catártico, nos moldes aristotélicos, de medo e simpatia com relação ao destino do herói, aprisionado num universo trágico.

3. A comparação do texto de Herculano e o de Saramago evidencia duas concepções de História e de discurso, que se vão refletir nas respectivas formas romanescas. O primeiro revela uma noção medievalista da História nacional[2] e concebe o discurso literário nos limites do símbolo, que confunde o ser e a representação. O segundo, ao pôr em evidência a fratura entre o ser e a representação, revela uma concepção da História como discurso e este como significação e evento, que pode ser sempre submetido a uma reescritura do presente, entendendo-se, aqui, evento, como o faz Carlo Diano[3].

Como aquilo que sobrevém (ou aparece, produz-se, dá-se: outros modos de evénit) a alguém, o evento é sempre hic et nunc. Um raio golpeou uma árvore durante a noite, mas eu só o vejo pela manhã. O fato, caso venha a constituir para mim um evento, só o será quando o que 'aconteceu' se fizer atual com um 'acontece'; e se a árvore não for um dos muitos pontos no espaço, mas o meu 'agora' [...] Que alguma coisa aconteça, não basta para produzir um evento, para que haja um evento é necessário que esse acontecer eu o sinta como um acontecer para mim. No entanto, se todo evento se abre à consciência como um acontecimento, nem todo acontecimento é um evento.

De um lado, o tratamento da mimese como imitatio, de outro, o tratamento da mimese como operatio da linguagem ou, mais do que isso, encenação da fala como citação[4].

Se, no rasto de Aristóteles, a mimese narrativa consiste em organizar ações numa intriga, fica pressuposto que, como operatio na linguagem (poièsis), ela implica o ato de seleção e arranjo. Em última instância, constrói um mundo (enquanto sistema de referências), que, em relação ao mundo da vida, se torna síntese do heterogêneo, mas também, e especialmente no caso de José Saramago, deixa registrada a própria heterogeneidade que acompanha a ação narrativa, através da apropriação do discurso de outrem.

Nesse sentido, a História como memória não pode ser outra coisa senão o discurso que, a partir de documentos e testemunhos, tenta recuperar, narrativa e analiticamente, o irrecuperável, uma vez que convoca a imaginação do historiador na construção de uma intriga que configura um tempo que já não é, inscreve acontecimentos que se tornam diretamente inverificáveis e cuja garantia única são os dados (documentos) e a interpretação desses dados, que orientam a produção historiográfica. E isso porque a matéria do historiador é o tempo humano e, mais do que isso, o passado vivido, a que se tem acesso através de pistas e rastos, uma vez que "não é mais, jamais será mais" e "o que é presente são traços, expressões ou monumentos para sempre desaparecidos"[5]. A ficção é, assim, um lugar ideal para a encenação do próprio processo historiográfico.

A consciência do tempo, do discurso e da história percorre a escrita de Saramago, que, ao apoderar-se da matéria histórica, rasura a tradição monumentalista, instalando, no lugar da identidade, a alteridade, numa atitude crítica que dialetiza tradição e transformação, por meio do exercício da literatura, esta, não cumpridora do cânone das belas-artes, mas prática da escrita que convoca o olhar à indiferença e à heterogeneidade, através do drama interdiscursivo.

O romance de Saramago afasta-se da fonte épica da narrativa, para viabilizar um processo satírico-cacográfico - uma "cacografia intencional"[6] - desenvolvendo uma desconstrução do senso comum, imobilista e grandiloqüente, em favor de uma ética, cuja sobrevivência só se pode dar no diálogo que o texto busca provocar, através da disseminação que faz lembrar a maiêutica socrática.

O discurso narrativo não é mais a representação da ação, como síntese do mundo da vida, cujo herói é figura de exemplaridade, confinada na lógica linear do enredo. Faz-se espaço citacional - ressaltando a diversidade - que entrelaça passado e presente, incluindo no discurso, para além da história/histórias que narra, o lugar da narração do próprio ato de narrar.

4. É assim com a História do cerco de Lisboa, em que se intercruzam, e sobrepõem, a história da personagem Raimundo, o revisor (evento ficcional), o cerco de Lisboa (evento histórico), a narração de Raimundo, as próprias circunstâncias da construção da História, envolvendo questões de princípio, fonte, método, versão, confrontadas com a Lisboa do cerco (passado) e uma Lisboa presente, esta apenas um palimpsesto que deixa entrevistas marcas da outra.

O primeiro capítulo, aliás, é exemplar, para a apreensão do comportamento narrativo do autor e a sua concepção de História, ao associar metaforicamente historiador e revisor. A metáfora do revisor é particularmente importante para o sentido do livro, pelo que ela representa como concepção de tempo e escrita.

O historiador não seria, assim, um guardador atemporal de um acervo, que, como peça de museu, não pode ser senão restaurado, ocupando um espaço de adoração, com a aura do exemplo. Ele é aquele que retorna ao passado, não para repeti-lo, mas para repensá-lo e até mesmo emendá-lo, submetendo-o ao crivo do presente. E isto porque, passado que já não é, só pode ser presente do passado pela rememoração ou reminiscência expressa no discurso, cujo caráter é ausentar a coisa para existir como representação. A metáfora se ajunta à da literatura, que, na fala do revisor, reúne o sentido originário, de letra, e, portanto, de toda representação:

Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura. A história também. A história sobretudo, sem querer ofender. E a pintura, e a música. A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência. E a pintura. Ora, a pintura não é mais do que a literatura feita com pincéis[7].

Mais do que a aproximação da literatura e da história, o que parece ressaltar o texto é a força da escrita, ou mesmo a dimensão histórica da escrita, que, como escrita e não vida, pode ser sempre reescrita, emendada. E, ao mesmo tempo, reafirma o caráter da ficção, também objeto de emenda, porque, tal como a história, não é o retrato fiel e sem retoque de alguma coisa, mas, independente do seu correlato, autônomo ou não, guarda sempre uma dimensão intencional, comprometida com o imaginário.

O que parece questionar-se, então, no diálogo do historiador com o revisor, é uma prática historiográfica que se inscreve na grandeza dos "Reis que fizeram a Pátria", como desejava o conservador João Ameal[8], escrita para ser seguida, e a que Benjamin chamaria "historiografia oficial". Contra esta, Saramago produz uma ficção "a contrapelo", aproveitando-se do fato de que o ato ficcional é um ato de fingimento e, diferentemente dos atos de fala habituais, não tem uma intenção pragmática determinada. Desse modo, o discurso se torna, verdadeiramente, um espaço de cruzamento de referências organizadas pelo ato ficcional, possibilitando colocar-se, em primeiro plano, o que a história oficial elide.

Nesse particular, do ponto de vista formal, o comportamento oral é apropriado pelo processo da escrita como dramatização, do que é exemplo o registro da fala do narrador e das falas das personagens, sem a marca hierarquizante e subordinante do verbum dicendi, con-fundindo-se num espectro de vozes.

Em face da historiografia triunfalista e monumental, a ficção vai buscar a reminiscência do cotidiano, ou a dramatização do cotidiano pelo ato ficcional, como forma de levar aquela de monumento à ruína e trazer para o humano o que uma historiografia oficial (e uma ficção correspondente) ideologizou, levando do humano para o divino. Dessa forma, a ficção, atuando como citação, paródia, estilização, réplica, apropria-se da história, através da fala que circula, como elemento construtor da história.

A desorganização/reorganização discursiva - a releitura insistente e a citação - não legitima qualquer idéia canônica, mas busca, no leitor, um parceiro de nova leitura, por meio dos processos de textualização, de que resulta um discurso múltiplo, polifônico, auto-referencial, inconcluso. Dentre as estratégias discursivas, elege-se o paradoxo, a afirmação de dois sentidos para uma mesma coisa[9], no âmbito reconhecido da linguagem (como ficção e como história), o que ressalta o confronto entre passado e presente, entre uma história tradicionalmente monumental e os fatos cotidianos tornados eventos de uma micro-história, conformados na convivência de dicções que canonicamente se excluiriam: o narrativo, o ensaístico, o cronístico, o parodístico, a alusão erudita, a citação popular, a polivalência de versões, a fala cotidiana.

5. Isso parece tornar-se possível graças a uma consciência escritural que percorre o texto do romancista e que se explicita no Manual de pintura e caligrafia.

O narrador-personagem aproveita para alegorizar um dos conceitos fundamentais da poética, a mimese, que não é imitação nem cópia, mas, fundamentalmente, operação na linguagem e transfiguração poética, entendida a prática textual como ação de absorção e transformação de outros textos.

O narrador-pintor não se contenta mais em pintar retratos de burgueses bem-sucedidos, a imobilizar o tempo, e, por isso, pára de pintar e começa a escrever. Sua escritura (aqui, no melhor sentido barthesiano) é mais do que a narração de uma história. É uma reflexão sobre o próprio fazer artístico (poético), que, tendo na mimese o seu suporte, a reinterpreta como representação de representações, seleção e arranjo de discursos, e, portanto, nova representação ditada, processualmente, do entrelaçamento dialético de sujeito e objeto, num movimento de escritura-leitura, como apropriação do outro, no sentido de tornar próprio o que é diverso e estranho.

Estas coisas que escrevo, se alguma vez as li antes, estarei agora imitando-as, mas não é de propósito que o faço. Se nunca as li, estou-as inventando, e se pelo contrário li, então é porque aprendera e tenho direito de me servir delas como se minhas fossem e inventadas agora mesmo[10].

Ao parar de pintar e passar a escrever, a personagem, situada a ação no período precedente ao 25 de abril, entre angústias e progressiva lucidez, vai tecendo reminiscências de leituras (Sócrates, Marx, Shakespeare, Cervantes etc.), de viagens e monumentos artísticos, de vivências cotidianas, submetidas à razão, em busca de uma consciência de si que implica a presença do outro.

Tudo é biografia, digo eu. Tudo é autobiografia, digo com mais razão ainda, eu que a procuro (a autobiografia? a razão?). Em tudo ela se introduz (qual?), como uma delgadíssima lâmina metida na fenda da porta e que faz saltar o trinco, devassando a casa. Só a multiplicidade das complicadas linguagens em que essa autobiografia se escreve e se mostra, permite, ainda assim, que em relativo recato, em segredo bastante, possamos circular no meio de nossos diferentes semelhantes[11].

A mimese não é, portanto, a cópia do real (Barthes considera irrealista a pretensão realista dos realistas), mas expressão de leituras, de frames[12] que constituem o mundo (sistema de referências) com que o narrador configura o mundo textual, através da multiplicidade de linguagens e narrações potenciais, o que trará sempre subjacente um caráter autobiográfico, com a intenção retórica de tornar experiência (coletiva) a vivência (individual).

O tratamento da mimese como operação de linguagem que seleciona e reorganiza outros discursos, submetidos ou concorrentes à intriga, com ações, circunstâncias de ações, interações, objetivos, conflitos, cooperações, possibilita à ficção encenar saberes, crenças, tradições, ideologias, agora recuperadas como linguagem, cujo sentido pode ser pensado e visto em novas possibilidades, por força da contextualização (configuração) que produz a dramatização da fala.

Por sobre o papel e a tela, a mão descreve a mesma rede invisível de movimentos, mas logo que sobre a matéria pousa, e transforma a matéria em movimento, o sinal representa uma imagem-tempo diferente, como se os nervos que partem do olho fossem agora ligar-se a uma região nova do cérebro, imediatamente contígua, decerto, mas arquivo duma outra experiência e portanto fonte de uma nova informação[13].

6. Em O ano da morte de Ricardo Reis, morto Fernando Pessoa, mas ainda presente o seu espectro, Ricardo Reis volta a Portugal, vindo do Brasil. Com um sabor fantástico, o heterônimo famoso, agora personagem romanesco, reencontra o poeta, que tal como é necessário para nascer, tem de cumprir nove meses para desaparecer de vez.

O estilo-poeta Ricardo Reis é, agora, personagem do romance, que viabiliza e atualiza, por meio da ficção, a biografia inventada por Fernando Pessoa. O discurso pessoano, a experiência pessoana, assim como o discurso lírico do heterônimo Ricardo Reis, são apropriados pelo ato transformador da ficção, numa estratégia parodística, que inverte sentidos, desloca e recria significações, numa réplica que revigora o confronto entre imagens-tempo diferentes ditado pelo encontro de arquivos de experiência, como fonte de uma nova informação.

Assim, o médico, monarquista, latinista, poeta horaciano Ricardo Reis (mantidas as determinações sêmicas conferidas ao signo designativo por Fernando Pessoa) tem sua biografia encenada pela diegese da ficção, e o universo imaginário de Fernando Pessoa torna-se interpretante imaginado por José Saramago.

Regressando do Brasil, o heterônimo é um estrangeiro no seu próprio país; alienado, sem amigos, sem prestígio como médico, vivendo primeiro em hotel e, depois, modestamente em casa de aluguel, reforça o sentido de seus versos "o sábio [...] que se contenta com o espetáculo do mundo", lido, agora, com a ironia construída pela ação romanesca, em face do mundo e de Lisboa como espaço-tempo ficcional, cujos correlatos histórico-políticos são a ditadura salazarista, a Guerra Civil espanhola, a proximidade da Segunda Guerra Mundial. Na inação da personagem, não é ela uma consciência ativa, mas continua um elemento à margem, numa Lisboa em que não se reencontra.

A apropriação do discurso poético de Fernando Pessoa pelo discurso romanesco, a absorção do texto pessoano no texto de Saramago implica a produção de um novo sentido, ditado pela inserção em novo contexto, processada por meio do deslocamento, no plano da combinação, e da inversão e do contraste, no plano da seleção, apontando para diversidades que subjazem à determinação de cânones e paradigmas consagrados pela tradição e pela cultura.

É próprio da narrativa ficcional, enquanto figuração de ações, relações, interações, fins, produzir a encenação de crenças e ideologemas. "Naturalizados" no espaço-tempo do real, alimentam a relação imaginária e monológica do homem com o seu vivido. O ficcional recupera, pelo imaginário textual, a sua realidade de discurso, oferecendo, como espetáculo, o sentido possível obliterado.

A simulação do ideológico e do senso comum, como proposições universais, sintaticamente absolutas e vistas como inexoráveis, se desfaz na linguagem ficcional, através da focalização de crenças e ideologemas, figurados, no discurso de outrem, e, portanto, como proposições existenciais, subordinadas, sintaticamente, a uma oração principal de verbum dicendi ("Fulano disse que..."), explícita ou tácita, cujo locutor, enquanto personagem, tem sua significação definida e localizada pelo processo narrativo.

A ideologia do Estado Novo deixa-se expressar como crença por via da padronização da fala do personagem, cuja significação, como ideologema, entre em contradição com a situação narrada.

Uma citação exemplar é, por exemplo, o discurso (direto) da personagem Dr. Sampaio, personagem-tipo, numa evidente apropriação paródica, e que, pela importância, me permito alongar no registro:

A nós, o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste cantinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e firme autoridade à frente do governo e do país, estas palavras disse-as o doutor Sampaio, e continuou logo, Não há comparação possível entre o Portugal que deixou ao partir para o Rio de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei que voltou há pouco tempo, mas se tem andado por aí, a olhar com olhos de ver, é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular história e seu império, Não tenho visto muito, respondeu Ricardo Reis, mas estou a par do que os jornais dizem, Ah, claro, os jornais, devem ser lidos, mas não chega, é preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as obras públicas em geral, e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos espíritos, uma nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande estadista, verdadeiramente uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo, que era do que andávamos a procurar[14].

A personagem Lídia, como signo, expressa não só o não senso com relação ao senso pessoano (Ricardo Reis), mas é também a metáfora emblemática que serve de contraponto ao discurso oficial (de que o discurso de Sampaio é, ao mesmo tempo, uma alegoria e uma paródia). Adquirindo um sentido político-existencial, cotidianiza-se na anônima empregada de hotel, que, agora, não é mais o destinatário lírico-metafísico do texto poético, mas uma figura concreta e humanizada, na intimidade do dia-a-dia, não a musa inspiradora, mas a amante fiel, sentimento vivo do presente, suporte revelador da falsa consciência do poeta-médico, voz anônima que pode, agora, pela ação narrante, furar o silêncio a que a condena o discurso da tradição:

Passados dias, contava Ricardo Reis o que tinha visto, os aviões, o fumo, falava do troar das peças de artilharia antiaérea, das surriadas das metralhadoras, e Lídia ouvia com atenção, com pena de não ter lá estado também, depois riu-se muito com os casos pitorescos. Ai, que graça, o homem do lixo, foi então, que se lembrou de que também tinha qualquer coisa para contar, Sabe quem é que fugiu, não esperou que Ricardo Reis respondesse, Foi o Manuel Guedes, aquele marinheiro de quem lhe tinha falado no outro dia, recorda-se, Recordo, mas fugiu donde, Quando era levado para o tribunal, fugiu, e Lídia ria com gosto, Ricardo Reis limitou-se a sorrir, Este país está num desmazelo, os barcos que vão para água antes do tempo, os presos que se somem, os carteiros que não entregam as cartas, enfim, dos varredores não há nada a dizer. Mas Lídia achava muito bem que Manuel Guedes tivesse fugido[15].

Lídia (mais uma grande personagem, na galeria de heroínas anônimas da obra de Saramago) é um significante forte do texto romanesco. De um lado, metáfora condensadora da vontade da mulher, voz interdita na História, que fala no silêncio; de outro, o instrumento de revelação da diferença social.

De Ricardo Reis, Lídia engravida, e, mais uma vez, é ela o motivo da encenação do amoralismo do discurso moralista, na dramatização do discurso conservador, surpreendido na sua própria voz:

Fernando Pessoa, com um sorriso sem alegria, pediu, Distraia-me, conte-me outros escândalos, então Ricardo Reis não precisou de escolher, de pensar muito, em três palavras anunciou o maior deles, Vou ser pai, Fernando Pessoa olhou-o estupefacto, depois largou a rir, não acreditava, Você está a brincar comigo, e Ricardo Reis, um tanto formalizado, Não estou a brincar, aliás, não percebo esse espanto, se um homem vai para a cama com uma mulher, persistentemente, são muitas as probabilidades de virem a fazer um filho, foi o que aconteceu neste caso, Das duas qual é a mãe, a sua Lídia ou a sua Marcenda, salvo se ainda há uma terceira mulher, com você tudo é possível, Não há terceira mulher, não casei com Marcenda, Ah, quer dizer que da sua Marcenda só poderia ter um filho se casasse com ela, É fácil concluir que sim, você sabe o que são a educação e as famílias, Uma criada não tem complicações, Às vezes, Diz você muito bem, basta lembrar-nos do que dizia Álvaro de Campos, que muitas vezes foi cômico às criadas de hotel, Não é nesse sentido, Então, qual, Uma criada de hotel também é uma mulher, Grande novidade, morrer e aprender, Você não conhece a Lídia, Falarei sempre com o maior respeito da mãe de seu filho, meu caro Reis, guardo em mim verdadeiros tesouros de veneração, e, como nunca fui pai, não precisei de sujeitar esses sentimentos transcendentais ao aborrecido quotidiano...[16]

Por toda obra romanesca de José Saramago percorre, na multiplicidade de linguagens e modos discursivos, uma história bifronte. A que foi construída pela tradição e tornou-se bom senso e senso comum[17] imobilizador do tempo, e a que poderia ter sido, como anverso daquela, construída, de modo perturbador, pela ação marginal dos que a História monumental relega ao silêncio.

7. O Memorial do convento talvez seja o texto exemplar do modo como o autor se apropria da historiografia oficial. Trabalha corrosivamente de maneira carnavalizante, em face do "monumento", lançando mão ardilosamente do deslocamento, da inversão, da sátira, da paródia e da ironia, para ler pelo anverso, como se escavasse um sentido enterrado no convento-monumento, um tempo de silêncio. A narrativa do evento memorável da construção do convento de Mafra se inventa na ficção de Saramago. E os protagonistas não são D. João V e a mulher nem a nobreza, muito menos o alto clero.

A solenidade real transforma-se em objeto de corrosão pela vulgarização e pelo grotesco. O tratamento, no plano narração, é o da ironia e da paródia. A solenidade do espetáculo e do ritual se escreve pela sátira.

Assim são postas em cena a vida privada do casal real, corroída pelo vulgar e pelo ridículo, a massa em movimento, crente e alegre, nas festas religiosas, pelas ruas de Lisboa, aos olhos das elites, bem formadas em seus balcões. Mas, sobretudo, o rito sacrificial na construção de um convento-monumento, conseqüência da superstição e de acerto palaciano-clerical que confunde as esferas pública e privada. Nesse rito sacrificial, a narração transfere, inverte o sentido heróico, tratando-o de um modo brechtiano e promovendo um deslocamento. A dimensão heróica a perpetuar-se na memória e na história de que o convento pode ser o significante não está em quem o mandou construir, mas em quem, com o suor e a morte, superou Sísifo, conduzindo a pedra alegórica para que o santuário se pudesse erguer.

Na massa e no cotidiano é que se vai recortar verdadeiramente a intriga da estória, numa operação de excentricidade. Ocupam o centro do discurso figuras anônimas e à sombra do oficialismo, como protagonistas contrapontísticas, sobre o fundo imobilista do poder determinante (nobreza, clero), as quais se erguem como possibilidades ativadoras do tempo e da História. Assim é que o motivo da construção do convento de Mafra dá margem à construção de uma estória que se viabiliza no imaginário da ficção. E essa estória, como na maioria dos casos na obra de Saramago, traz para o primeiro plano o universo do cotidiano que se desenha, em alto-relevo, sobre o pano de fundo da História que a ficção redescreve.

Repete-se, aqui, uma das constantes da ficção de José Saramago. No pano de fundo da história consagrada e tornada frame oficial, tratado com irreverência, releva-se a intimidade de intrigas que abrigam o cotidiano de figuras anônimas que constituem o universo português em sua construção e permanência. Blimunda Sete Luas, filha de uma "herética" sacrificada pelo Santo Ofício, detém o poder mágico de, em jejum, ver e recolher as vontades dos homens. Baltazar Sete Sóis é um mutilado de guerra, anônimo e abandonado sem nenhum heroísmo, mas ativo na construção do convento. A ela, cabe recolher a vontade dos homens, como combustível para fazer voar a passarola do Padre Bartolomeu Gusmão. A eles dois, cabe proteger a segurança e o mistério da engenhoca inventada pelo padre, que, no universo ficcional, consegue sobrevoar Lisboa.

Blimunda e Baltazar são as figuras que vivem na desordem, e nesta são felizes, sem nenhum outro interesse senão do amor e da existência. Articulam, em sua mundanidade, do ponto de vista semântico, a antítese, cujo termo oposto é a vida da família real, vulgar e risível, que a ficção faz subjazer à história oficial. A citação histórica de Bartolomeu de Gusmão, tratada pelo texto ficcional, situa o padre no interstício da ordem e da desordem, através do que Paul Ricoeur denomina referência cruzada[18], dado que a passarola inventada pelo padre existiu mas não voou. A invenção é o contraponto da ordem monárquico-eclesiástica que a interdita e, ao mesmo tempo, sua ativação tem, como combustível, a vontade dos homens, que a magia de Blimunda pode recolher. Mas é lá neste mundo de sombra, que Bartolomeu e Escarlati - circulantes entre o mundo da ordem e da desordem - reencontram a sua humanidade - e é a Blimunda e a Baltazar que está reservada a tarefa de resguardar a engenhoca, forte, mágica e utópica alegoria de um devir condicionado a um povo, que se contrapõe, como possibilidade, ao mundo da reprodução oficial.

De qualquer forma, o ato ficcional permite virar o mundo pelo avesso, e com isso, deixa revelar-se um sentido que o mundo às direitas oblitera. E, aí, nessa escritura, a que chamaria corrosiva, revela-se uma constante da obra de Saramago: a ação desconstrutora de um espaço tradicionalmente sagrado, através da inversão.

8. Se o romance histórico, na tradição do século XIX, apresenta-se como exemplo, o romance de Saramago apresenta-se como o caso que se insere na história, substituindo a atitude edificante, marca do primeiro, pela atitude problematizante. E o que quer isso dizer? O exemplo, baseado numa generalização e construído por um único ponto de vista, faz da ação narrada o signo cuja significação é unívoca e oferecida à imitatio. Privilegiando o enunciado, oculta a enunciação e, com isso, de certa forma, "naturaliza" a linguagem, conferindo-lhe uma feição próxima do que Benjamin entendia por aura. O caso põe em questão o geral pelo recorte do particular, que aquele encobre, abrindo a história ao olhar e julgamento do outro. A diferença pode ser apreendida no próprio modo de textualização. No primeiro caso, o domínio do enunciado, articulado por um único ponto de vista, gera uma estrutura narrativa, que, expressa na ação narrada, adquire uma feição argumentativa, em que a estória tem um caráter de fábula, servindo de exemplo a um princípio a priori subjacente. No segundo caso, privilegiado o processo de enunciação, é possível construir-se um universo de comparação, através da inserção de situações particulares e contraditórias ao exemplo, resultando disso a possibilidade dialética do julgamento. Isso terá evidentes conseqüências no que se refere à recepção.

Sabemos que "o texto constitui uma programação à espera de atualização do leitor. É, como afirma Iser, um esboço de leitura: "o texto comporta vazios, lacunas, zonas de indeterminação"[19]. Mas sabemos também que o texto, estrategicamente, constrói um leitor-modelo[20], um conjunto de condições textualmente estabelecidas e que devem ser satisfeitas para a sua plena atualização. Isso inclui, obviamente, uma dimensão retórica, que reclama estratégias textuais adequadas.

Do ponto de vista da recepção, o romance histórico, de Herculano como exemplo mais bem realizado, e a narrativa-caso de Saramago, pela suas próprias estratégias, seguem direções diferentes. O primeiro oferece ao leitor, em sua intenção edificante, o exercício de uma catarse egótico-passional, nos moldes aristotélicos, firmado no exemplo, que reafirma a tradição tornada crença, através da con-fusão entre ser e representação. O segundo oferece ao leitor uma outra forma de jogo, em sua intenção problematizante, o exame da possibilidade de novas formas ético-políticas, através da diferenciação entre ser e representação. E isso se torna possível pala opção ficcionalizante. No romance histórico, o discurso adquire um caráter lírico-épico próprio do romance romântico, comprometido com suas raízes medievais e com a missão de "curador" do passado heróico. No romance de Saramago, o discurso adquire um caráter dramático de falas circulantes que apontam, transgressoramente, para um mundo que não se marca pela permanência, mas pela permanente mudança, rejeitando, do primeiro, a crença num destino providencial, com a arma da História, vinculada ao tempo, abrindo-se para um horizonte condicionado à autocrítica em face do passado e do presente e à necessidade da reconsideração dialética da tradição, implicando memória, transmissão e crítica. Em última instância, reivindica que a linguagem seja considerada na sua devida importância, como ato de escrita e leitura. Leitura do mundo como discurso; e do discurso como construção do mundo, nas diferentes acepções que pode comportar o ato de ler, entre as quais, a de eleger, recolher, apropriar-se.

Notas

  • *Walter Benjamin. "Sobre o conceito da história". In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • 1 Saramago, J. Manual de pintura e caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 2 José Augusto França. O romantismo em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte.
  • 3 Citado por Alfredo Bosi, em Céu, inferno. São Paulo: Ática.
  • 4 No sentido da tauromaquia, de que Barthes, metaforicamente, se utiliza em S/Z. Paris, du Seuil: "citar, c'est ce coup de talon, cette cambrure du torero, qui appellent la bête aux banderilles. De la même façon, on cite le signifié [...] à comparaître, tout en l'esquivant au fil du discours".
  • 5 Raymond Aron. Dimensions de la conscience historique. Paris: Plon..
  • 6 Barthes, op.cit.
  • 7 Saramago, J. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 8 João Ameal. História de Portugal. Porto: Livraria Tavares Martins.
  • 9 G. Deleuze. Lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva.
  • 10 Saramago, J. Manual de pintura e caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 11 Ibidem.
  • 12 Umberto Eco, em Lector in fabula, São Paulo, Perspectiva: "Frames são elementos de conhecimento cognitivo... representações sobre o 'mundo' que nos permitem efetuar atos cognitivos basilares como percepções, compreensão lingüística e ações (van Dijk)". O frame "é sempre um texto virtual ou uma história condensada".
  • 13 Saramago, J. Manual de pintura e caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 14 Saramago, J. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 15 Ibidem.
  • 16 Ibidem.
  • 17 G. Deleuze em Lógica do sentido: "O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo" [...] "O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único e o senso comum como designação de identidades fixas".
  • 18 Paul Ricoeur, Temps et récit. Paris: du Seuil, vol. 1.
  • 19 Ibidem.
  • 20 Umberto Eco, op. cit