Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

Subsídios para o estudo de aonde e donde, usados por onde, no português moderno

Eneida do Rego Monteiro Bomfim
PUC-Rio

 

Cedido o posto do antigo advérbio ao vocábulo onde, nem por isso se mostram daí por diante convencidos os escritores de que o termo sem algum reforço preposicional basta sempre para indicar o que o latim ubi indicava; e assim aonde e donde, só ou aumentado em adonde, passam a usar-se também como sinônimos de onde.
Said Ali[1]

1. Proposta

O objetivo deste estudo é acompanhar na etapa do português posterior ao século XV, quando o pronome-advérbio u foi suplantado por onde, o comportamento deste último item, em particular nas Cartas de Vieira.2 O corpus do século XVI foi constituído a partir dos textos abaixo relacionados com as respectivas referências bibliográficas:

  • BARROS, João de. Década I, Livro IV de João de Barros. Prefácio e notas de Joaquim Ferreira. Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d. Texto integral (12 capítulos, 176 p.). A Década I imprimiu-se em 1552.
  • CAMÕES, Luís de. "Os Lusíadas". In: Luís de Camões. Obra Completa. Organização, introdução, comentários e anotações de Antônio Salgado Junior. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963. Texto integral. A primeira edição do poema é de 1572.

O trabalho insere-se num plano de pesquisa mais amplo que visa a acompanhar a trajetória de onde até o português atual. Na análise inicial (Bomfim,1993),3 acompanhei a variação entre u e onde, a partir de um corpus de dados extraídos de textos do século XIII a XV, inclusive. Num primeiro momento procurou-se: 1. determinar os índices de ocorrência dos itens em estudo e verificar os contextos em que apareciam; e 2. detectar uma possível variação dos elementos e estabelecer as zonas de interferência entre ambos. Por hipótese essa etapa permitiria: 1. determinar a partir de que época se observa a variação e quais os contextos que a favorecem; 2. acompanhar as modificações que se foram operando no sistema até a substitução definitiva de u por onde; e 3. determinar a época aproximada da implementação da mudança.

2. Antecedentes

Uma primeira constatação é que a variação entre os dois itens e a conservação de apenas um deles não se restringe à língua portuguesa e está, portanto, inserida num processo mais abrangente. A concorrência dos elementos inicia-se no latim, ultrapassa o romance e vem a resolver-se diferenciadamente nas fases mais antigas das línguas românicas.

São importantes para um primeiro exame da questão os seguintes pontos:

1. ambos os elementos podiam funcionar como pronomes interrogativos e relativos;

2. num dado momento, u e onde opunham-se semanticamente, o primeiro expressando a direção e o segundo, a proveniência;

3. apesar de onde já denotar proveniência (= de onde), donde vulgarizou-se nessa acepção e

4. no século XVI, u é considerado fora de uso (cf. Barros (1957:61) e Leão (1864:71).4

A análise deixou claro que dois fatores imbricados favoreceram a confusão entre os elementos: o esvaziamento semântico das noções de proveniência e de direção, ligadas respectivamente a onde e a u, no sistema inicial, e o recurso progressivo a preposições para marcar essas idéias.

Deixando de lado os dados referentes a u e a concorrência dos dois elementos, recapitulo, no quadro abaixo, o conjunto de ocorrências de onde, no corpus analisado, dos séculos XIV-XV, acrescidos dos dados referentes à Demanda do Santo Graal (DSG).

Quadro I
LOC - LOCALIZAÇÃO DSG - DEMANDA DO SANTO GRAAL5
D - DIREÇÃO CGE - CRÔNICA GERAL DE ESPANHA6
P - PROVENIÊNCIA OE - ORTO DO ESPOSO7
Pp - PROVENIÊNCIA COM PREPOSIÇÃO LC - LIVRO DA ENSINANÇA DE BEM
Tp - TEMPORAL CAVALGAR TODA SELA8
TG - TOTAIS GERAIS CDF - CRÔNICA DE D. FERNANDO9

Obs. Na pesquisa foram utilizados os textos integrais do OE, do LC e da CDF. Da CGE foram consultados cem capítulos, num total de cento e cinqüenta e sete (157) páginas.

A leitura do quadro revela:

1. o emprego de onde, sem preposição, indicando proveniência, ainda é significativo na DSG, enquanto nos demais textos o uso com preposição prevalece;
2. onde, como localizador, já se firmou na língua do séc. XV e
3. o emprego temporal, hoje proscrito, apesar do largo uso no português coloquial, só não aparece no OE.

Fazendo-se uma leitura horizontal comparativa de P e Pp, observa-se que, em textos mais antigos como a DSG e CGE, há equilíbrio entre o uso preposicionado e o não preposicionado, com vantagem para o segundo, na Demanda (58% x 42%), e para o primeiro, na Crônica (56% x 44%). Essa leitura também indica o esvaziamento semântico progressivo da noção de proveniência relativa a onde, suprida pelo emprego da preposição. No OE e no LC só se registram casos preposicionados. Na CDF, a única ocorrência de onde isolado nessa acepção pode ser considerada uma variante estilística.

Por hipótese, pode-se propor um sistema inicial em que onde indica proveniência (P) e u, direção (D) e localização estática. Os pontos de ruptura com este sistema são

5. Neutralização da oposição semântica enre P e D;
6. recurso a preposições para marcar a oposição semântica e
7. a predominância do emprego de onde.

Pela análise realizada por Bomfim (op. cit.), tem-se que, na segunda metade do século XV, u e onde são variantes estilísticas e que, em meados do século XVI, está documentada a antiguidade de u. (cf. nota 3). No sistema substituto, já observado a partir do século XV, onde é localizador universal, cabendo a preposições a marcação das oposições semânticas entre P e D. As formas aglutinadas donde e aonde, em princípio, se oporiam e, à forma simples, caberia suprir as demais necessidades, com ou sem preposição, conforme o caso.

Said Ali (op. cit., p. 186) registra exemplos quinhentistas, seiscentistas e setecentistas que confirmam a sinonímia entre aonde / donde / adonde e onde e acrescenta:

Apesar de todos estes exemplos e outros que deixamos de mencionar, prevaleceu a doutrina de considerar tais casos como aplicação secundária ou imprópria dos advérbios onde, donde e aonde, cabendo-lhes expressar respectivamente a noção locativa, a de procedência e a diretiva. O português literário hodierno cinge-se a esta regra e não toma para modelo exemplo clássico que, porventura, dela se afaste.10


3. Aonde / donde / onde, no português moderno11

As observações de Said Ali transcritas acima, com respeito à sinonímia entre onde, aonde e donde, em empregos de autores modernos e contemporâneos, pode parecer conflitante com o que considerei sistema substituto ao sistema inicial, quando u e onde estavam em variação. Cumpre, para esclarecer a situação, proceder a um exame mais acurado dos dados, observando as ocorrências, globalmente, e atentando para seu percentual de freqüência e contextos de realização. Antes de iniciar a análise do corpus proposto, considero importante recorrer a uma amostra de dados referentes ao início do século XVI, coletados nos seguintes textos integrais:

    • Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel I (CC), por ocasião do descobrimento do Brasil, datada de 1500, logo, na passagem do século XV para o XVI.
    • Crônica de D. João II (CR), de Ruy de Pina, concluída, provavelmente, nos primeiros anos do século XVI.12
    • Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira (ESO), redigido entre 1505 e 1507-1508. Reprodução anastática da edição crítica anotada por A. Epiphanio da Silva Dias. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1905.

A consulta a esse corpus auxiliar permite-me fazer as seguintes observações:

1. não há ocorrências de u nos textos, o que fortalece a hipótese de que a substituição por onde ocorreu no século anterior.
2. na CC, onde aparece com antecedente, dependendo tanto de verbo de localização quanto de movimento. Ocorre, também, regido de per e sem preposição, indicando 'para onde'.
3. na CR há cerca de cento e nove (109) ocorrências de onde, regido ou não de preposição, com emprego semelhante ao atual. Nesta soma estão incluídos quatorze (14) empregos de donde, dois (2) de per onde, um (1) de aonde e um (1) de por onde.
4. o tipo de texto do ESO é bastante apropriado para a utilização de localizadores. Segundo palavras do próprio autor é um trabalho de "cosmografia e marinharia", em que é feita uma descrição minuciosa da costa da África até o Rio do Infante. Há cerca de cento e doze (112) realizações de onde, todas de acordo com a norma atual.

Fica confirmado que, excetuando-se a CC, na transição para o português moderno, em princípio, os empregos de onde não diferem muito da norma atual.

3.1. Dados da segunda metade do século XVI

A análise dos dados dos textos de Barros e de Camões forneceu pistas importantes para a reflexão sobre o impasse entre o sistema substituto do inicial, quando havia variação entre u e onde, e a observação de Said Ali sobre a sinonímia entre onde e suas formas variantes com preposição aglutinada.

Voltando ao item anterior, assinalo que na carta de Caminha há um (1) emprego sem preposição, indicando direção. Dado que houve a neutralização semântica de onde com relação à oposição proveniência x direção, o fato é pelo menos curioso. O mesmo ocorre no corpus de Barros em que se observam cinco (5) ocorrências de onde, não preposicionado, indicando direção, enquanto aonde tem emprego estático na sua única realização.

3.1.1. Dados da Década I

São condizentes com o período anterior da língua. Pode-se até dizer que, sob o aspecto em estudo, a linguagem do ESO é mais moderna do que a da Década.
Os dados estão compactados no Quadro II, a seguir.
Quadro II - DÉCADA I - PARTE IV
OCORRÊNCIAS DE AONDE / DONDE / ONDE
EST - Estático D - Direção P - Proveniência C/C - Causal/conclusivo DEP. REG - Dependente de regência PREP - com preposição diferente de a e de
A leitura do quadro ilustra a observação feita anteriormente sobre o uso estático de aonde e o de onde, sem preposição, indicando direção. Esses empregos revelam a opacidade semântica dos elementos. O mesmo não se dá com relação a donde que é o único item indicador de proveniência. Donde com valor causal/conclusivo aparece em exemplos que podem ser interpretados como 'motivo pelo qual':
1. [...] passou aquele grão Cabo de Boa Esperança com menos tormenta e perigo do que os marinheiros esperavam, pela opinião que entreles andava, donde lhe chamavam o Cabo das Tormentas; [...] (op. cit., p. 67)
2. [...] e alguns entendiam palavras do arábigo que lhe falava um marinheiro per nome Fernão Martins; mas a outra língua própria nenhum dos nossos a entendia, donde Vasco da Gama suspeitava que estes negros, assi na cor como nas palavras do arábigo, podiam ter comunicação com os mouros [...] (op. cit., p. 72)
No Quadro III, é possível observar-se o conjunto de ocorrências dos itens estudados, em face do padrão atual do português.
Quadro III - DÉCADA I - PARTE IV
OCORRÊNCIAS DE AONDE / DONDE / ONDE
EM FACE DO PADRÃO ATUAL
FPA PA
T % T %
Aonde 1 100 0 0
Donde 4* 33,3 8 66,7
Onde 5 13,8 31 86,2
Total 10 20,4 39 79,6
FPA - fora do padrão atual PA - de acordo com o padrão atual
Com relação à coluna PA, nota-se que o maior índice de ocorrências segundo o padrão é de onde o que, conferindo o quadro anterior, corresponde a emprego estático. Cumpre assinalar a presença maciça de donde, na acepção de proveniência.
Conclui-se que, na amostra pesquisada de João de Barros, há sinonímia ocasional de aonde e onde, o que já não se observa com relação a donde e onde.
Proponho a leitura horizontal de um quadro comparativo entre as ocorrências FPA e as PA, o que indicará, caso a caso a proporção entre as ocorrências.
Quadro IV - DÉCADA I - PARTE IV
COMPARAÇÃO ENTRE FPA E PA
FPA PA TG %
T % T %
Aonde 1 100 0 0 1 100
Donde 4 33,3 8 66,7 12 100
Onde 5 14 31 86 36 100
Total 10 20,4 39 79,6 49 100
Como mostra a totalidade dos dados, no que toca ao emprego de onde e suas variantes, a linguagem da Década está bem mais próxima do padrão atual, embora mais conservadora com relação ao Esmeraldo (ESO).
3.1.2. Dados de Os Lusíadas
Para o levantamento de dados em Os Lusíadas contei com um poderoso auxiliar: o Índice Analítico do Vocabulário de Os Lusíadas, acompanhado da reprodução fac-similar da 1a edição. Preparado na Seção da Enciclopédia e do Dicionário, sob a orientação de A. G. Cunha 3 vol. Rio de Janeiro: INL, 1966. Uma vez localizado o exemplo na página restava, apenas, a análise.
Primeiramente, analisei as ocorrências de aonde e donde em separado e, posteriormente, as de onde e suas variantes em face do padrão atual.
Quadro V - OS LUSÍADAS
OCORRÊNCIAS DE AONDE E DONDE EM OS LUSÍADAS
Direção Prove- Estático Dep. = de que/ Dúbio
niência regência quem
Aonde 2 0 8 0 0 0
Donde 0 17 4 5 2 3
Obs: Em 'proveniência' está incluída 'causa'. Os exemplos não sugeriram interpretação como conclusivo.
Nota-se que aonde e donde, sobretudo o primeiro, têm sugestivo valor estático, respectivamente 80% e 13%, portanto equivalem a onde.
Abaixo, resumo os dados, confrontando-os com o padrão atual:
Quadro VI - OS LUSÍADAS
OCORRÊNCIAS DE AONDE / DONDE / ONDE
EM FACE DO PADRÃO ATUAL
FPA PA
T % T %
Aonde 8 80 2 20
Donde 7 23 23 77
Onde 0 0 179 100
Total 15 7 204 93
FPA - fora do padrão atual PA - de acordo com o padrão atual
A leitura dos quadros e, sobretudo o resumo do último, revelam que, em Os Lusíadas há:
3. emprego maciço de onde, de acordo com os padrões atuais;
4. uso de aonde, predominantemente estático (= onde) e
5. significativa preferência por donde, nos moldes atuais.
Comparando o resultado da análise dos dados da Década e de Os Lusíadas, tem-se:
Quadro VII - DÉCADA E OS LUSÍADAS
PERCENTUAIS RELATIVOS
FPA PA
DÉCADA LUSÍADAS DÉCADA LUSÍADAS
Aonde 100% 80% 0% 20%
Donde 33,3% 23% 66.7% 77%
Onde 14% 0% 86% 100%
A leitura do quadro mostra que:
1. há predominância sugestiva de aonde fora do padrão atual;
2. donde aproxima-se significativamente do padrão e
3. onde está em conformidade com o padrão em Os Lusíadas, e próxima, na Década.
Os resultados confirmam a sinonímia apontada por Said Ali com relação a aonde. Quanto a donde, os dados apontam para uma variação em declínio.
3.2. Dados do século XVII - As Cartas de Vieira
Volto à epígrafe do trabalho em curso e à citação do fim do item 1.2., ambas de Said Ali, localizadas na sua Gramática Histórica (cf. nota 1), as quais registram a sinonímia no português antigo entre variantes preposicionadas do pronome-advérbio em estudo.
Merecem atenção especial:
1. a sinonímia entre os elementos;
2. os exemplos quinhentistas, seiscentistas e setecentistas transcritos, mas não reproduzidos no presente texto; e
3. o fato de estar assinalado que, cito novamente, "O português hodierno cinge-se a esta regra e não toma para modelo exemplo clássico que, porventura, dela se afaste". (op. cit., p. 187).
Com relação a 1., a sinonímia é flagrante nos textos analisados do século XVI, no que diz respeito a aonde. Não há ocorrências desta forma em conformidade com o padrão atual e, em Os Lusíadas, só 20% dos empregos seguem a regra. Os exemplos seiscentistas são de Vieira, todos retirados dos Sermões, e de Bernardes, da Nova Floresta.
Said Ali fala do "português literário hodierno". É preciso levar-se em conta que a Lexeologia do Português Histórico, depois integrada na Gramática Histórica, data de 1921. Embora, pela norma atual, o sistema não abrigue estes usos condenados de aonde e donde, no Brasil os exemplos proliferam não apenas na linguagem coloquial, mas também na formal, oral e escrita, sem falar no valor temporal que tem raízes nas etapas mais antigas da língua (cf. Quadro I).
Escolhi, para fonte dos dados a serem analisados, as Cartas de Vieira, a meu ver, texto mais apropriado aos objetivos do estudo pela naturalidade do estilo e simplicidade da forma. Serviram de base para a constituição do corpus as trinta (30) primeiras cartas do Tomo Primeiro das Cartas do Padre António Vieira, coordenadas e anotadas por J. Lúcio d'Azevedo (cf. nota 2). Foram dirigidas, de 1626 a 1648, a primeira, ao Geral da Companhia de Jesus, e as demais, como se segue: vinte e três (23) ao Marquês de Niza; uma (1) ao Rei D. João IV; uma (1) aos judeus de Ruão; uma (1) a António Moniz de Carvalho; e três (3) a Pedro Vieira da Silva.

O procedimento adotado para a análise foi o mesmo que para os corpora anteriores. Na classificação dos dados precisei distinguir donde de de onde. O primeiro ocorre com mais freqüência na primeira carta, o segundo, aparece dependendo da regência, indicando causa/conclusão e proveniência. Na Década, só aparece a forma contrata, mesmo que a preposição siga-se a advérbio. Incluí na Classificação 'Preposicionado' apenas os itens regidos de preposição diferente de de e a. Nos dados de Vieira essas preposições são por (4), até (1) e para (1).

O quadro seguinte registra a situação dos itens estudados no corpus de Vieira. Observe-se que a leitura dos dados referentes a aonde mostra 75% de emprego estático, o que é relevante e confirma a sinonímia com onde. Por outro lado, o elemento apresenta apenas 7,7% das ocorrências totais de todas as variantes. Os demais empregos estão em conformidade com o padrão atual.
Quadro VIII - VIEIRA - CARTAS
OCORRÊNCIAS DE AONDE / DE ONDE / DONDE /ONDE
D P EST PREP C/C TG
T % T % T % T % T % T %
Aonde 1 25 0 0 3 75 0 0 0 0 4 100
De onde 0 0 6 75 0 0 - 2 25 8 100
Donde 0 0 5 83,5 0 0 - 1 16,5 6 100
Onde 0 0 0 0 28 82,4 6 17,6 0 0 34 100
Totais 1 11 31 6 3
D - Direção P - Proveniência Est - Estático Prep - regido de prep. diferente de de e a C/C - Causal/conclusivo TG - Total geral
Neste ponto, cumpre retomar as observações apresentadas no decurso da análise. Preliminarmente, apontei como fator inicial, propulsor da confusão entre u e onde e posterior desaparecimento do primeiro, o esvaziamento das noções, respectivamente, de direção e proveniência dos elementos. Este fato implicou o recurso a preposições para estabelecer as diferenças. Onde foi perdendo gradativamente o valor de proveniência, passando a ser cada vez mais usado, contraído com a preposição, na forma donde. Revendo o Quadro I, nota-se que a forma não preposicionada, na acepção de proveniência, tem 46,15% de ocorrências na DSG, 12% na CGE e não ocorre no OE nem no LC. O emprego de donde estende-se, também, à idéia de causa/conclusão.
A forma contrata diretiva aonde não incide significativamente nos textos da segunda metade do século XVI. Aparece uma (1) vez nos dados da Década, com emprego estático e oito (8) em Os Lusíadas, duas das quais, indicando direção. Nos dados de Vieira, apenas 25% dos empregos de aonde estão de acordo com o padrão atual, o que significa que não há consciência plena de que o a inicial é a preposição e não um expletivo. O acompanhamento diacrônico da questão leva a concluir que, numa fase mais antiga, houve consciência da presença da preposição no vocábulo, seguida posteriormente de sua neutralização. Atribuo à influência normativista a recuperação semântico-sintática do elemento em foco, desfazendo-se, então a sinonímia.
A sinonímia entre donde e onde é menos marcante. No corpus do início do século XVI, excetuando-se a carta de Caminha, o uso aproxima-se do atual. Na Década, não há variação entre os dois itens. Já em Os Lusíadas, 14,3% das ocorrências de donde estão por onde. No corpus de Vieira não se observou a sinonímia. Como assinalado anteriormente, Vieira usa donde e de onde. Esta última forma revela a consciência da presença da preposição. Vejam-se alguns exemplos:
3. [...] cheguei em uma nau inglesa ao porto de Douvres, de onde logo tratei de atravessar a Calais [...] (Carta VIII - Ao Marquês de Niza, p. 100).
4. [...] porque não tem prata nem cidades senão de ali a quinhentas léguas de campos desertos, de onde vinham alguns mercadores a comprar os negros de Angola [...] (Carta XVIII - Ao Marquês de Niza, p. 135-136).
5. [...] de onde havemos de tirar navios para o Brasil, para a Índia, para a costa de Portugal, sob pena de nada entrar nem sair, e demais disto para a França? (Carta XIX - Ao Marquês de Niza, p. 146).
6. Verdadeiramente, eu não vejo de onde isto possa vir [...] (Id., ibid., p. 147).
Estou certa de que é necessário ampliar e aprofundar a análise, nos moldes do que foi feito por Bomfim (1993) (cf. nota 3).
Considero, entretanto, que os subsídios aqui apresentados podem fornecer um bom material de trabalho. A pesquisa precisa avançar na análise de dados, não só do século XVII mas também dos séculos seguintes. Quero deixar claro que acredito que a ação disciplinadora da gramática normativa tem sido o principal fator de regularização do emprego de onde e que é no passado que vamos achar resposta à multiplicidade de usos atuais que não encontram abrigo na norma culta oficial.

 

Notas:

  • 1 Said Ali, Gramática Histórica, São Paulo, Melhoramentos, 1965, p. 185.
  • 2 Cartas do Padre António Vieira, coordenadas e anotadas por J. Lúcio d'Azevedo, tomo primeiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925.
  • 3 "Variação e mudança no Português Arcaico: o caso de u e onde", PaLavra, n. 1, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1993:96-119.
  • 4 J. de Barros, Gramática da Língua Portuguesa, 3 ed., organizada por J. P. Machado, (1 ed. 1540), Lisboa, 1957; D. N. De LEÃO, Origem e Ortografia da Língua Portuguesa (conforme a ed. de 1784), Lisboa, Typographia do Panorama, 1864.
  • 5 A. Magne, A Demanda do Santo Graal, reprodução fac-similar e transcrição crítica do códice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena, v. I, Rio de Janeiro, INL, 1955.
  • 6 Crônica Geral de Espanha de 1344, 4 v., edição crítica do texto português por L. F. L. Cintra, Lisboa, Casa da Moeda, 1951. Os códices que serviram de base à edição crítica são do século XV.
  • 7 Obra de cunho religioso, escrita, provavelmente, nos fins do século XIV ou no início do XV, por um monge português anônimo. Foi utilizado o texto integral da edição crítica de B. Maler. (Rio de Janeiro, INL, 1956.)
  • 8 D. DUARTE, Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, edição crítica por J. M. Piel, Lisboa, Casa da Moeda, 1986. Esse primeiro tratado de equitação da literatura européia foi terminado depois da morte de D. João I, pai do autor, ocorrida em 1433.
  • 9 F. LOPES, Crônica de D. Fernando, edição crítica por G. Macchi, Lisboa, Casa da Moeda, 1975.
  • 10 Said Ali, op. cit., p. 187.
  • 11 Estou adotando a periodização de Evanildo Bechara, proposta em As Fases Históricas da Língua Portuguesa, tese de concurso para Professor Titular de Língua Portuguesa da UFF, Niterói, 1985. Segundo Bechara, a fase moderna do português estende-se de meados do século XVI ao final do XVII.
  • 12 Segundo palavras do responsável pela edição, A. M. Carvalho, esta "reproduz o texto impresso na Coleção de Livros Inéditos de História Portuguesa, publicados por ordem da Academia Real das Ciências (tomo II, Lisboa, 1792 - "[...] Como, porém, esta reimpressão não poude fundamentar-se no estudo dos manuscritos conhecidos, julgou-se forçoso e razoável aceitar-se o que estava [...].") [R. de Pina, Croniqua delrey Dom Joham II, nova edição com prefácio e notas de A. M. de Carvalho, Coimbra, Atlântida, 1950.]