Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

De rua e de janela

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio / CNPq

Retomo aqui como epígrafe a imagem que ilustra e simboliza este seminário Cenas da vida moderna e mundialização da cultura, título-tema secundado pelo verso: "Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!", de Cesário Verde, que intuiu com sua enumeração exemplificativa que pelas cidades se englobaria o mundo. Certamente essa idéia poderia ser associada à obra de Joachim Bonnemaison, "Le très grand chantier de la ville", que numa visada de 360º faz o grande canteiro de obras da cidade ser a própria cidade como um todo, captada por um olho central que, ao contrário da visão fragmentada, já um lugar-comum na representação da cidade moderna e suas derivas pós-modernas, opta por um looping, pretendendo abarcar a totalidade que se faz com uma cidade em construção (o canteiro de obras) ao lado de imagens que remetem a realizações históricas de cidades: um prédio medieval, os arranha-céus divisados ao longe num skyline (que remete ao motivo mais corriqueiro da cidade moderna), as torres a sugerir a tecnologia, além da ponte de ferro (outro artefato moderno conotando mobilização, encurtamento das distâncias), espécie de passarela que liga todos esses motivos, todas essas épocas históricas. Esta visada faz a cidade mundializada como um globo ser toda e qualquer, desterritorializada, "todas as cidades, a cidade". A "paisagem urbana" aí representada em sua contemporaneidade indica o cruzamento entre diferentes espaços e tempos, ou seja, um horizonte saturado de inscrições, um grande canteiro em que se acumulam vestígios arqueológicos, antigos monumentos, traços de memória e o imaginário criado pela cultura urbana em sua história, como sugere formulação de Nelson Brissac Peixoto em Paisagens Urbanas (1996). No centro da obra de Joachim Bonnemaison, o olho-espelho reflete, em miniatura, em abismo e em simetria a imagem circular da cidade. Entretanto pela visão global, esférica, praticamente não há primeiro plano; a cidade no círculo maior é que pode ser lida como ampliação da visão miniaturizada que contorna o olho que olha, o ponto cego, ou seja, o ponto da retina onde se insere o nervo óptico e onde não há células sensoriais nem, portanto, nenhuma resposta aos estímulos sensoriais; ponto cego que possibilita, contudo, a projeção do que é captado pela visão. A técnica modernizante permite, desta maneira, a visão de um todo urbano, feito de heterogeneidades, em que se podem englobar Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, Tóquio, Nova Iorque, São Paulo, Lisboa, Rio de Janeiro... o mundo, ao mesmo tempo realidades locais em tensão com os fenômenos globais.

Essa imagem que nos serve de epígrafe fez parte de uma belíssima exposição que, no âmbito das artes, é um dos índices fortes do privilégio dado às cidades nos anos 90 do século passado. A cidade, que foi uma questão desde a abertura dos tempos modernos, vem a ser ponto privilegiado da pauta pós-moderna.

Refiro-me à belíssima exposição realizada no Centro Georges Pompidou, em Paris, em 1994: La Ville: Art et Architecture en Europe - 1870-1993. Dividida em duas seções: "A cidade dos artistas" e "A cidade dos arquitetos", a mega-exposição, secundada por outra menor que versava sobre os escritos urbanos de Walter Benjamin, veio confirmar ser o destino da cidade o principal empreendimento de nosso tempo. A exposição pretendeu alimentar esse grande debate do fim do século XX, reunindo obras de artistas que, de 1870 a nossos dias, testemunharam a cidade. O evento não só misturou o fato social com o estético, mas também considerou inseparável a história da cidade e a história da arte, como já havia formulado o crítico e político italiano Giulio Carlo Argan (1992), sem esquecer o papel que os artistas desempenharam na invenção da cultura moderna das cidades, contribuindo para a construção do imaginário urbano - seu museu imaginário - ou, dito de outro modo, o próprio imaginário da modernidade, como afirma Jean Dethier, ao retomar essa expressão de André Malraux (1994:16). Interrogar o pensamento sobre a cidade no século XX não é apenas fazer um levantamento dos lugares; é antes querer alertar sobre sua atual condição, para a qual não há mais uma doutrina coerente para garantir a harmonia da vida da cidade. A teoria do urbano tornou-se praticamente impossível, a cada instante ultrapassada pelo quantitativo. A cidade se dá em espetáculo a seus habitantes, é o espetáculo da civilização moderna em sua história e sua atualidade; seu solo é o espelho que registra nossas ações - afirma Alain Guiheux, outro dos curadores da mostra de Paris (1994:18-19). A exposição veio afinal mostrar que a visão totalizante da cidade se torna impossível, mas denota, antes, uma urgência, na medida em que a "cidade determina nosso cotidiano e dá forma aos nossos quadros de vida; ela é tanto nosso presente turbulento como nossos velhos medos" - afirma François Barré, no "Préface" (1994:12), do magnífico catálogo, que serviu de fonte para recolher a imagem de Joachim Bonnemaison, símbolo de nosso Seminário. Para enfrentar tais questões, a exposição utilizou todas as mídias e convocou todas as disciplinas, completa o prefaciador.

Ao lado de encontros como "Habitat 2", patrocinado pela ONU em Istambul, Turquia, em 1996, para discutir o problema das grandes cidades que requer soluções globalizadas, sem descurar, entretanto, das especificidades locais, a exposição do Beaubourg confirma o interesse pelas cidades nessa última década. Algumas hipóteses para tal interesse vêm sendo levantadas por estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento. Uns, como o antropólogo Nestor García Canclini (in Imaginarios Urbanos), acreditam que as cidades voltam a pensar em si mesmas, devido à crise dos grandes paradigmas ideológicos que leva os estudiosos a buscar unidades de análise mais próximas, unidades que, como a cidade, são dotadas de densidade histórica - aspecto que se atrela diretamente aos paradoxos da globalização, frente à qual se dá a afirmação do local identificado à cidade, a realidade mais próxima.

Esse fenômeno atrela-se ainda à passagem da cidade à megacidade, da cultura urbana à multiculturalidade: a coexistência de múltiplas culturas urbanas no espaço que chamamos todavia urbano (Canclini, 1999:77). Essa multiculturalidade é coadjuvada pela própria geografia da cidade que sofreu modificações produzidas mais pela dinâmica da comunicação e pelos circuitos financeiros que pelas indústrias localizadas nos cinturões urbanos. Assim, mudam-se os usos do espaço urbano ao passar das cidades centralizadas às cidades multifocais, policêntricas, onde se desenvolvem novos centros (redefinem-se as noções de espaço, de lugar, construindo-se novas territorialidades - como afirmou, neste seminário, Renato Ortiz). Há necessidade, portanto, de o habitante re-situar-se nessa cidade disseminada, de que cada vez temos menos idéia onde começa, onde termina, em que lugar estamos (além da cidade é ainda a cidade - como se constata em As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino). Tem-se, desta forma, baixa experiência do conjunto da megalópole; nos usos da cidade e nos imaginários, perdeu-se a experiência do conjunto: atores tradicionais parecem ocupar-se de pequenos fragmentos (Canclini, 1999:83).

Frente a este quadro complexo, que caracteriza esta virada de século, parece-me lícito retomar duas imagens que marcaram no início da modernidade a leitura e a percepção da cidade que se tornava o canteiro de obra para a mudança identificada ao progresso, sob o impacto das novas tecnologias. Tais imagens são a rua e a janela, matrizes que se tornaram recorrentes nas artes e na literatura. Essas matrizes foram, salvo engano, fixadas por dois contos: um de Edgar Allan Poe, o famoso "O homem da multidão" (1840), outro de E. T. A. Hoffmann, "A janela de esquina do primo" (abril de 1822).

Um dos textos basilares que, ao lado de tematizar a questão da legibilidade da cidade moderna, fixa a visão atomizada da multidão, na mesma época comentada pelo jovem Engels (A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra), contribuindo, por sua vez, para semantizar a rua que emergiu como símbolo fundamental da vida moderna, imagem que se cristalizou como celebração da vitalidade urbana, de sua diversidade e plenitude, como demonstrou Marshall Berman em Tudo que É Sólido Desmancha no Ar (1986).

O tópico da ilegibilidade, anunciado na abertura do texto ("De certo livro alemão, disse-se, com propriedade, que es lässt sich nicht lesen - não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos"), será relacionado com o espetáculo da rua londrina que o narrador observa e tenta ler.

Associando livros, homens, rua e cidade numa analogia que se projeta em mistérios não revelados, indecifráveis, Poe aponta para um regime de profundidade, pois há um sentido a se anunciar, sentido que precisa ser "descoberto", pela remoção das camadas que o envolvem. A esta concepção Poe associa o segredo de uma intimidade e o espaço público, a rua que funciona como um palco que oferece um espetáculo (de spetaculum, a festa pública) ao espectador, aquele que, colocando-se em um determinado lugar, vê o espetáculo e é capaz de voltar-se para o speculandus - com a acepção de especular, investigar, examinar, vigiar, observar (observe-se a recorrência desses e de outros verbos do mesmo campo semântico no conto de Poe) [ver Chauí,1988:36]. Assim, o espectador é aquele que busca esclarecer o obscuro ou o reprimido que afinal se revela. O entrecho da narrativa demonstra que havia espetáculo, havia cena e, portanto, promessa de significação que desafiava aquele a quem cabia decifrar, ler, e para tal teria de guardar certa distância, e não a completa imersão no objeto e a conseqüente anulação de qualquer diferença do sujeito (ver Arantes, O., 1988: 269).

A afirmação inicial do conto tem caráter geral e apresenta a tese, que permite desencadear o entrecho que terá a rua como palco e seu cenário e como laboratório. Glosando palavras do texto, poderíamos produzir fragmentos narrativos. Em Londres, o narrador, um homem que, depois de longa doença, calmo, mas inquisitivo, depois de superado o ennui, com o "intelecto eletrificado", interessa-se por tudo e aventura-se no burburinho da rua da cidade grande. A convalescença leva-o para a rua, para o centro da cidade fervilhante, para o contato com a multidão. Ressurgido para a vida e desligado das correspondências naturais (em relação à natureza), deixa-se seduzir pelo turbilhão da metrópole que o leva à experimentação, ao ensaio, de ler, de decifrar o mistério do artificial de cena urbana.

Instala-se, num primeiro momento, atrás da janela de um café e examina os fregueses à sua volta, os anúncios de jornal, mas, acima de tudo, seu olhar se dirige à multidão que passa aos encontrões (a imagem do choque) diante de sua janela, a moldura que enquadra as cenas móveis da rua que são recortadas de uma totalidade inapreensível devido ao ponto de vista do observador. A janela, limite entre um dentro e um fora, faz o café funcionar como um camarote de teatro [o quarto do primo do conto de Hoffmann já anunciava essa imagem], indicando um lugar de não permanência (um não-lugar, na acepção de Marc Augé, lugar não identitário), de onde o observador se deixa dominar pela "emoção inédita", provocada pelas "ondas de passantes" e absorve-se na contemplação da cena exterior da multidão que passa no palco da rua. Quando a noite avança, progride o interesse pela cena, e a iluminação artificial leva-o ao exame das faces individuais e dos grupos de passantes que desfilam com rapidez diante de sua janela. Observa, especula, examina, analisa, agrupa, classifica, hierarquiza, ordena o que contempla do espetáculo da rua. Os tipos humanos são, assim, classificados pelos aspectos exteriores que se dão a ver (roupas, gestos, fisionomia... máscaras, enfim, que escondem significações, cujos pequenos índices percebidos permitem, apenas com uma olhadela, "ler a história de longos anos"). Nesta tarefa, revela conhecimento preciso dos elementos que compõem o movimento repetitivo das marés - "o mar tumultuoso de cabeças humanas". "Procura levar a cabo as novas experiências da cidade dentro da moldura das velhas transmitidas pela natureza" - afirma Walter Benjamin (1989:226). Daí a metáfora do mar, das ondas, cunhada na analogia com as forças da natureza, com a qual o narrador nomeia a multidão que ele tenta ler pela forma exterior que o olhar registra. O investimento nessa leitura encaminha-se para a uniformidade dos grupos que são classificados e, por oposição, marcam as diferenças (que também permitem classificar): uniformidade da indumentária, do comportamento, dos gestos. Segundo Benjamin, "o texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam como, se adaptados à automatização, só conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento é uma reação a choques" (1986:126): "Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba" - sustenta o narrador. E acrescenta Benjamin:

Em Poe, as pessoas se comportam como se só pudessem se exprimir reflexamente. Essa movimentação tem um efeito ainda mais desumano porque se fala apenas de seres humanos. Quando a multidão se congestiona, não é porque o trânsito de veículos a detenha - em parte alguma se menciona o trânsito - mas sim porque é bloqueada por outra multidão. (1989:50).

Num segundo momento, ocupado em examinar a turba, depara-se com o "semblante de absoluta idiossincrasia da expressão" de um velho decrépito que desperta a curiosidade de "analisar o significado que este homem sugerira". Abandonando a posição de observador analítico da multidão, vai misturar-se a ela na perseguição "inútil". De um ponto de vista fixo, desloca-se para a mobilidade do labirinto das ruas na perseguição desse homem, abrindo caminho na multidão. Atraído pela singularidade do estranho, tenta atingir o conhecimento da individualidade desse homem para além da classificação pautada na uniformidade. Pensa a princípio ser fácil decifrar com apenas uma olhadela "a história que ele traz escrita no peito". Ao perseguir o velho que vagueia sem objetivo aparente, não compreende o sentido de seus percursos, a inconstância de suas ações e a indiferença desse estranho que jamais se dá conta do perseguidor. Não consegue afinal desvendar "o incógnito do ser humano", uma "verdade" tida como um precedente críptico que o narrador tenta inutilmente decifrar.

Com sua tendência racionalizante, especulativa, dedutiva, o narrador se comporta como uma espécie de detetive que procura decifrar um enigma pela recolha de índices que o percurso (interpretativo, de leitura) dá a ver, a fim de demonstrar uma verdade escondida que afinal seria revelada, mas no conto de Poe essa operação de uma espécie de "máquina de raciocinar", de estabelecer sentidos, é deceptiva, mas remete para um outro aspecto observado por Benjamin (1986:41-44), qual seja, a supressão dos vestígios do indivíduo na multidão, ou melhor, o desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande que acompanha o desaparecimento do ser humano na massa. O narrador, portanto, não consegue desvelar o precedente críptico do personagem, sua técnica de investigação não leva a proceder a uma reconstituição desse precedente, a história que esse "gênio do crime" supostamente trazia escrita no peito. Apenas lê a superfície que o olhar registra [aponta aqui para um outro regime de significação: aquele que nada esconde, pois se revela na superfície, que não se confunde com superficial; "nada mais profundo que a pele", diz Deleuze, em A Lógica do Sentido].

Apesar de sugerir esse outro regime, o conto de Poe não deixa de confirmar em seu fecho o tópico da ilegibilidade, isto é, fica alguma coisa escondida sem ser revelada. O indecifrável ligado à esfera da individualidade choca-se com o espetáculo, que é público, dado no espaço coletivo da rua, em que o narrador persegue o velho com uma compulsão similar à do perseguido, no desafio de lê-lo, explicá-lo logicamente, levado por sua imensa curiosidade. Mas é nessa perseguição que o próprio narrador se transforma em outro "homem da multidão", outro enigma entre enigmas, outro signo ilegível da cidade. Reciprocamente estranhos em sua perseguição circular, une-os em sua separação e alheamento, o fio secreto da solidão, marca do homem da multidão que "se recusa a estar só", único traço possível de ser lido desse enigma: "multidão, solidão: termos iguais e conversíveis" - diz Baudelaire em "Les foules", um dos Petits Poèmes en Prose, que, inspirado em Poe, constitui Le Spleen de Paris. O homem da multidão reduplicado: ambos representam a realidade da própria cidade que não se deixa ler, mas que impõe uma leitura do ilegível (Gomes, 1994:63-75).

O conto de Poe é um dos textos inaugurais na fixação da imagem da cidade associada à imagem de um homem caminhando, sozinho, pelas ruas fervilhantes. O isolamento e a perda das conexões são condições para uma nova percepção da realidade urbana emblematicamente representada pela rua. Tópico revisitado por Baudelaire, que vê a cidade como "uma orgia de vitalidade", um mundo instantâneo, fugaz, contingente, que incita o citadino a uma nova espécie de prazer, "o banho de multidão", e ensina-lhe a entregar-se completamente "ao imprevisto que surge, ao desconhecido que passa".

Essa imagem da rua que Poe associa ao mundo do flâneur, que faz dela sua morada e que lê a cidade pelo véu da multidão, cria uma espécie de motivo recorrente que, reinterpretado em contextos dos mais diversos, faz do conto "O homem da multidão", elemento que entra no jogo intertextual de, por exemplo, João do Rio (A Alma Encantadora das Ruas), na literatura experimental do quase injustamente esquecido Adelino Magalhães, com seu "conto" "A rua" (de Visões, Cenas e Perfis, [1918]) [em que o narrador vai figurando a rua, registrando fragmentos de conversas, de cenas, de incidentes, de aspectos da miséria, do comércio, da moda... são visões, pedaços de cenas, esboços de perfis, um espaço do inacabado: "Rua João Rosas... tantas vezes a tenho visto e percorrido, e... sentido! // Entretanto há detalhes novos... há uma quase nova rua - melhor a vejo; ou de outros pontos a vejo..."]. Ou ainda, se quisermos estender os exemplos: o Rubem Fonseca de "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro" (1992), ou o americano Paul Auster de City of Glass (1985), de The New York Trilogy, ou o austríaco Peter Handke de

A Tarde de um Escritor (1993).

Se a imagem da rua que emblematiza a cidade moderna foi fixada por Poe, a cidade vista através de uma janela remete ao conto "A janela de esquina do primo". Essa dupla imagética que forma um pendant, já foi apontada por Benjamin em seus textos sobre Baudelaire, ou em duas pequenas citações do Livro das Passagens, e também por Jean Starobinski. Diz este professor da Universidade de Genebra, no ensaio: "Fenêtres - de Rousseau à Baudelaire":

Os belos estudos de Walter Benjamin contribuíram para ligar muito estreitamente à imagem da cidade do século XIX - Paris - o movimento da flânerie, movimento sem finalidade prática, aberto ao encontro, ao inesperado, à súbita aparição de monstros e maravilhas. Esta observação é perspicaz, mas é preciso evitar isolá-la. Ao prestar-se uma atenção privilegiada à flânerie, esquece-se que o passeio solitário através das ruas e dos bairros não é senão um dos aspectos da relação do indivíduo moderno com a cidade. A flânerie ganha toda sua importância se se observa que ela entra em relação contrastante com uma outra atitude, não menos reveladora, não menos rica de significações: a imobilidade contemplativa, a cidade olhada apaixonadamente por um recluso voluntário, do alto de uma janela. Trata-se de dois pontos de vista sobre a cidade, um movente, levado pelo fluxo da rua, o outro, fixo, desdobrando o olhar sobre os diversos acidentes da paisagem urbana. (1984:181).

O conto de Hoffmann ("Des Vetters Eckfenster"), escrito no começo de abril de 1822, recicla uma narrativa humorística de K. F. Kretschmann, publicada em 1798, no Almanach para 1799, com o objetivo de divertimento em família, intitulado Scarron em Sua Janela, em que um escritor paralisado observa de sua casa os passantes e traça-lhes retratos humorísticos. Hoffmann gravemente doente reconhece-se nessa situação e compõe um auto-retrato literário sob a forma de um diálogo no qual passa em revista suas idéias sobre a arte e o artista. O texto foi publicado no Spectateur, algumas semanas antes da morte de Hoffmann, segundo as informações de Albert Béguin e Madeleine Laval, tradutores desse conto para o francês.

Retomando a mesma imagem e situação da narrativa de Kretschmann, o escritor é definido no conto de Hoffmann como um solitário na janela em face da cidade. De trás de sua janela de esquina, que se abre para um mercado, o escritor, ao contrário do flâneur, é uma consciência separada: ele vê tudo e não participa, impedido que está de locomover-se, pois, depois de uma longa
doença, perdera o movimento das pernas. Por esta característica, introduz-se o tema da paralisia, que redunda, no entrecho da narrativa, em adotar-se um ponto de vista fixo, que vai ser coadjuvado pela situação dialogal que discursivamente estrutura o conto. A situação assim é formada pelo diálogo entre um eu que narra e o primo escritor, que

mora no mais belo bairro da metrópole, sobre o grande Mercado, contornado por edifícios suntuosos entre os quais resplandece o teatro [...]. Ele habita uma casa de esquina e pode da janela de um pequeno gabinete abraçar com um só olhar o conjunto dessa praça majestosa

(palavras do eu que narra e participa do diálogo, e que por sua vez não é capaz de escrever, de pôr a imaginação para funcionar na criação ficcional). Na cadeira de rodas, o primo tem a janela como consolo (como afirma ao narrador) e completa: "Daí eu encontro a vida, com seu reluzir, sua mudança de cores, e me sinto cheio de interesse por sua incessante agitação". Ao observar com tal interesse a praça do mercado, o primo vê o mundo lá fora como um espetáculo, teatro do cotidiano cujo enredo vai se compondo como um mosaico. Se a praça é o palco com seus atores, o gabinete é semelhante a um camarote, ponto de observação de onde o binóculo com que olha, recorta e aproxima as cenas. A sensibilidade aguçada do primo leva-o a ensinar ao eu-narrador a arte de ver. Esse eu passa então a ensaiar a descrição das cenas, embora a interpretação que se dá através de micronarrativas caiba ao primo, senhor da fabulação, que ensina a estabelecer o jogo das aparências, como índices que revelam sentidos escondidos.

Como mestre da arte de ver, o primo diz ao eu:

Falta a ti um olho, um olho que saiba ver. Este mercado não te oferece senão o espetáculo de um mosaico alucinante, de uma multidão agitada sem razão. Oh! meu amigo, o mercado figura para ti muito diferente que para mim! Eu aí vejo desenrolar, como num palco de teatro, os múltiplos episódios da vida burguesa e meu espírito [...] constrói esboço sobre esboço, com traço bastante ousado. Vamos, primo! gostaria de experimentar levar-te ao menos a adquirir este a b c da arte! Assim, olha lá na rua, exatamente diante de mim; toma este binóculo; vê essa pessoa tão singularmente vestida, que leva no braço um grande cesto?

Desta maneira, o primo ensina o eu-narrador a fixar um ponto de vista para aprender a ver corretamente; ensina-lhe a ver melhor, chamando a atenção para os detalhes engraçados que se oferecem a seus olhares. E vai transmitindo as instruções de "como ver/ler", treina-o a ler sobre as fisionomias, que o primo interpreta, deduzindo a "crônica escandalosa", os dramas. Com suas hipóteses narrativas produtos de seu talento de escritor, o primo ordena a confusão da multidão, complementando as descrições que o eu-narrador vai exercitando. O discurso dos dois personagens em diálogo articula os modos de representação do espaço e do tempo, concretizando no discurso "um verdadeiro orbis pictus" (como diz o primo em relação a um bric-à-brac do mercado), ou seja, um mundo de imagens, sugerido pelo título de um conjunto de textos do pedagogo Comenius (1592-1670), freqüentemente retomado para designar este gênero de enciclopédia [a praça com o mercado seria uma miniatura dessa enciclopédia urbana semelhante ao que Johnathan Rabin fala em Soft City, ensaio de 1988, que propõe, a partir dos movimentos urbanos dos rebeldes anos 60, uma visão da cidade para além das divisões de classe e dos aspectos funcionalistas e racionais]. Procedendo então a um inventário espacial, em que "o visível é um ponto de apoio para o olho" (como afirma o eu-narrador), o primo mergulha o olhar da descrição do mercado que tem sob sua janela, constituindo o elemento que lhe permite a identificação com um mundo vivo. Ainda que veja apenas o que a janela permite e o binóculo (outra janela em miniatura?) recorta, ele tem sob seus olhos o espetáculo do possível do qual ele está excluído, mas que se impõe com um relevante suplemento. A acuidade visual, a exatidão da descrição, a multiplicação dos detalhes são sempre saída para esta consciência superaguçada. A observação final do primo bem expressa esta consciência, ao estabelecer o contraste entre sua imobilidade contemplativa (a paralisia) e a vida que muda sem cessar (a que se pode relacionar com a modernidade captada pelas alegorias urbanas poetizadas por Baudelaire). Conclui o primo:

Este mercado é, neste momento ainda, uma imagem fiel da vida cambiante que não cessa. Uma febril atividade e as necessidades do momento reuniram esta multidão; alguns instantes foram suficientes para que tudo seja de novo deserto; as vozes que experimentavam dominar o tumulto foram agora extintas, e cada lugar abandonado não exprime senão mais vivamente um aceno: passou!

O espetáculo fugaz, preso ao contingente, ao efêmero, permite ao eu-narrador deduzir uma dupla pedagogia. Ao explicar modos de ler a cidade moderna não pela flânerie fixada pela imagem de um homem caminhando solitário pela rua (cf. "O homem da multidão"), mas pela imobilidade que leva ao aguçamento do olhar que aprende a ver a cena urbana enquadrada pela janela, o narrador tenta explicar o prazer que essa janela proporcionava ao primo e do qual ambos, o narrador e o primo, tiram o preceito moral possibilitado por essa pedagogia que retoma as palavras de Horácio: "Et si male nunc, non olim sic erit", e se as coisas vão mal, um dia não será mais assim. [Talvez não seja de todo inútil lembrar um dado biográfico: Hoffmann escreveu este conto dias antes de morrer.] A afirmativa de Horácio aparece, não à toa, duas vezes no texto, na voz do eu-narrador, como premissa (no início) e no fim, funcionando também como moldura de uma janela, que é o texto. Do preceito moral a frase passa também a preceito estético, que se relaciona com a captação do efêmero, do que passa (cidade: aquela que passa - Baudelaire: "A une passante"), que se remete à mudança, a anunciar aquilo que não é, mas está a ponto de ser, que aponta para o futuro. Atado a este preceito, o primo escritor é adepto do artifício, sua maneira de representar o mundo: embora não ande (não tem o solvitur ambulando - do conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", de Rubem Fonseca, ou como o flâneur), ele vê e escreve.

Se esses dois contos com suas estratégias discursivas fixaram matrizes de representação da cidade moderna, talvez não fosse ocioso perguntar o que resta, hoje, dessas imagens. A rua como imagem do encontro, do diálogo, da philia que Anne Coquelin, em Essais de Philosophie Urbaine (1982:8) vê como a função precípua da cidade, da cidade compartilhada, parece que foi corroída. Aconteceu o que Le Corbusier requeria: "precisamos acabar com a rua", lugar, antes de tudo, para o trânsito e o automóvel; ela virou a via expressa como imagem do progresso. Ou então virou o simulacro de ruas dos shopping centers, dos consumidores disfarçados de flâneurs. "Narrar a cidade - assegura Canclini - é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava estabelecer ao passear pela metrópole do início do século. Agora a cidade é como um videoclip: montagem efervescente de imagens descontínuas [...] saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem" (1996:131 e 135).

Desta cidade, portanto, está eliminado o flâneur, esse personagem urbano, apontado por Allan Poe e fixado por Baudelaire, e que tinha a rua como espaço de deambulação, e, com seu olhar inteligente mas desenraizado, contemplava, através da multidão, com seu ócio e sem pressa, o espetáculo cambiante do efêmero e do contingente da cidade transformada pela Revolução Industrial. Se a celebração da vitalidade urbana, de sua diversidade e plenitude, é um dos temas mais antigos da cultura moderna, cuja fantasia se cristalizou em torno da rua, que emergiu como símbolo fundamental da vida moderna, a cidade desta virada de século vê praticamente esgarçada tal simbologia. A não ser que ela tente ser resgatada pelo viés nostálgico de um personagem que busca resistir e perverter esse esgarçamento e anda e vê o centro da cidade na esperança de reconstruir uma cidade compartilhada: refiro-me ao personagem Augusto, escritor diletante, do conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro" (1992), de Rubem Fonseca.

Quanto à imagem da janela como ponto fixo de observação da cidade, perdeu sua amplitude. Dela se vêem outras janelas, a exemplo do que se dá no filme Janela Indiscreta, do genial Alfred Hitchcock, que, agora, volta sintomaticamente a cartaz (será só a vontade de tradição motivada pelo pós-moderno?). Ou tem-se sua posição invertida de ponto de observação, quando a janela se torna espetáculo a que os transeuntes que se aglomeram lá embaixo assistem, como é emblematicamente representado no magnífico conto de Sérgio Sant'Anna, "Um discurso sobre o método" (1989).

Se a metáfora do teatro está adequada para a leitura da cidade nas representações discursivas que se desdobram dessas duas matrizes - as centradas na rua e na janela -, hoje, parece que se pode constatar o fim do espetáculo: "este não subsiste sem a separação entre o segredo da intimidade doméstica e o espaço público do consumo significativo; ou melhor, enquanto sobrevive tal distância, que é a da alienação, há o espetáculo - alguma ação em cena" - afirma Otília Arantes (1988:268), retomando formulações de Baudrillard. Com a anulação de qualquer distanciamento, dá-se a imersão completa do sujeito no objeto. Há uma exposição plena, que cega, ao invés de seduzir. A obscenidade é o reino chapado da superfície.

Ou se quisermos terminar com uma brincadeira, poderíamos dizer que a janela de esquina do primo virou um programa de computador, são windows que se abrem sucessiva e simultaneamente, não para a praça do mercado, mas para a cidade virtual, formada por redes voláteis, a que podemos associar a imagem inicial que nos serviu de epígrafe. Cada janela pode ser aquele ponto cego que ocupa o centro da imagem, que pode globalizar, numa ilusão de óptica, a totalidade, transformando os fragmentos urbanos num grande canteiro de obras. A janela se abre para outros mercados também voláteis. Janelas/windows que se abrem sobre a superfície chapada do mundo.

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