Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

O cinema dos fotogramas que se bifurcam: transfiguração do real em virtual na aventura moderna das possibilidades

Sergio Mota[1]
PUC-Rio

 

A comida industrial não possui nenhum vínculo territorial. Não quero sugerir que os pratos tradicionais tendam com isso a desaparecer. Muitos deles serão inclusive integrados à cozinha industrial. Mas perdem sua singularidade. Existiria alguma "italianidade" nas pizzas Hut, ou "mexicanidade" nos tacos Bell? Os pratos chineses, vendidos congelados nos supermercados, têm algum sabor do império celestial? O exemplo do McDonald's é a meu ver heurístico. Ele permite compreender melhor o tema da deslocalização. Uma forma de analisá-lo é substituir sua "essência" norte-americana. Esta maneira de pensar faz parte de todo um senso comum, e supõe uma idéia partilhada por muitos: a "americanização" do mundo. Os dados empíricos tendem a confirmar esta impressão apressada. De fato, McDonald's tem uma presença insofismável, oferecendo seus préstimos na Europa, Ásia e América Latina. Sua "marca" abraça as cidades de Paris, Nova York, São Paulo, Moscou e Tóquio.
Renato Ortiz, Mundialização e Cultura
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.

Manuel Bandeira, "A realidade e a imagem"

Ao discutir a questão do nascimento de uma cultura e de uma possível política da memória em expansão global a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-americanas e do apartheid na África do Sul, o Professor Andreas Huyssen, em Seduzidos pela Memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia observa a relevância que o imaginário urbano e as memórias traumáticas possuem nas novas configurações do espaço contemporâneo. A leitura desses atuais fenômenos da cultura permite explorar as construções de cenários urbanos e de espaços virtuais, na tentativa de responder que novos sentidos tem a memória histórica. Assim, os estudos de Huyssen vão questionar o lugar que ocupa essa memória nas expe-riências de espaço e tempo e a influência, ultrapassando o legado da modernidade, que a globalização exerce sobre o espaço público contemporâneo. Se a modernidade estava preocupada em assegurar o futuro, associando-o ao universalismo e à razão, importa agora, nas sociedades midiatizadas ocidentais, controlar uma certa "epidemia da memória". "Assegurar o passado não é uma tarefa menos arriscada do que assegurar o futuro." Na alta modernidade, portanto, não é suficiente substituir o regime proletário pelos novos movimentos sociais, o desenvolvimento das forças produtivas pela revolução técnico-científica, o imperialismo pela política globalizada, a idéia de Estado pelo reaparecimento de nacionalismos marcados pela xenofobia ou, ainda, os projetos emancipatórios pelo esfacelamento oriundo de uma razão cínica.

Huyssen não está interessado em discutir se os processos de globalização dividem ou unem ou se há algum aspecto nessa questão que segrega ou exclui. Na verdade, o que está no centro de sua discussão é se "a sociedade precisa de ancoragem temporal, numa época em que, no despertar da revolução da informação e numa sempre crescente compressão de espaço-tempo, a relação entre passado, presente e futuro está sendo transformada para além do reconhecimento". Em Suspensos no Loop da Montanha-Russa: a Corrida do Século 20 para o 21, último volume da coleção "Virando Séculos", publicada pela Companhia das Letras, Nicolau Sevcenko discute, nessa última virada de século, as primeiras manifestações ocorridas contra a globalização em Seattle (EUA). O historiador reconhece a necessidade de "dar tempo ao tempo" e cria a metáfora da montanha-russa para falar da questão da aceleração tecnológica, de sua urgente contenção e do tempo, "que tem ficado tão imaterial nessa corrida dos implementos técnicos que tornam a vida tão acelerada". (Ele fala, metaforicamente, de um "auge caótico do loop, o rodopio aterrorizante em torno do nada".) Huyssen não está preocupado com isso. Ser seduzido pela memória ou musealizar a cultura significa reconhecer o foco contemporâneo desse privilégio do passado e da temporalidade, ao mesmo tempo que certas práticas de memória vão questionar o futuro global.

Se nós estamos, de fato, sofrendo de um excesso de memória, devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis. Precisamos de discriminação e rememoração produtiva e, ademais, a cultura de massa e a mídia virtual não são necessariamente incompatíveis com este objetivo. Mesmo que a amnésia seja um subproduto do ciberespaço, precisamos não permitir que o medo e o esquecimento nos dominem. Aí, então, talvez, seja a hora de lembrar o futuro, em vez de apenas nos preocuparmos com o futuro da memória.

Na verdade, dar conta deste privilégio em relação à memória permite questionar, em sentido mais amplo, uma espécie de pedagogia do "novo museu" na organização de um repertório de imagens da história e na reconfiguração dos conceitos de documento e arquivo. Huyssen não fala sobre o espaço do museu, até porque seu interesse recai em uma espécie de museu de matriz subjetiva, de um museu imaginário que prescinde do objeto e onde a memória é o próprio espaço.

Um exemplo dessa nova pedagogia ou da transformação do conceito de museologia são os estudos de viabilização para a possível construção da filial carioca do Museu Guggenheim. O namoro da Fundação Guggenheim com o Brasil foi iniciado há cerca de um ano quando a poderosa instituição americana demonstrou explícito interesse em montar no país um braço do museu que contabiliza filiais em Nova York, Berlim, Bilbao e Veneza. Thomas Krens, o presidente da Fundação, em polêmica entrevista ao jornal Los Angeles Times, afirma que está tentando reinventar os museus como "plataformas de cultura" e compara esses espaços de arte a parques temáticos. "Você precisa de cinco divertimentos." Entre esses cinco pontos, ele inclui a arte ("grandes coleções permanentes" e "grandes exposições especiais" são dois divertimentos), a noção de edificação museológica e a monumentalidade como aspecto emergente na arquitetura grandiosa deste fim de século ("grande arquitetura") e dois conceitos de shopping center ("oportunidades para comer" e "oportunidades de fazer compras"). Indiferente às acusações de "mercantilizador dos museus", Krens anuncia seus novos projetos: uma retrospectiva de Giorgio Armani, o estilista de moda italiano, no Guggenheim novaiorquino, e a possibilidade de construir uma nova filial em Las Vegas, dentro de um hotel-cassino.

Na época em que foi contratado pelo Guggenheim, em 1988, já tinha desenvolvido a filosofia de que os museus se apegavam demais à "idéia do século XVIII" (de que estes grandes palácios de-viam ser como "uma enciclopédia, oferecendo um exemplar de tudo dentro de uma caixa do século XIX"). Argumenta Krens, na mesma entrevista, que os museus necessitavam encontrar as "histórias não contadas". E quem disse que "tinham que ser quadros, tinham que ser esculturas?" Na tentativa de reinventar a museologia, é particularmente singular a retrospectiva dos 25 anos de carreira de Giorgio Armani em cartaz no museu americano, que valoriza a questão da cenografia em associação com o espaço físico do museu. Na instalação (idéia trabalhada em sentido bastante amplo produzida pelo artista plástico, designer e diretor teatral Bob Wilson), uma tela transparente feita na Suíça e usada em montagens teatrais fecha as rampas espirais do prédio. Alguns refletores emitem fachos sobre manequins invisíveis que sustentam as roupas, que são esculturas admiráveis, apreciadas ao som de uma trilha sonora especial. Desenvolvida em subdivisões temáticas, a mostra reúne roupas, acessórios, esboços, filmes, vídeos de desfiles e fotografias. As influências de culturas étnicas no desenho de Armani são representadas por um conjunto de túnicas, saias enroladas, pijamas e camisas sem colarinho reunido num dos segmentos da retrospectiva. Segundo ampla matéria publicada n'O Estado de S. Paulo, assinada pela jornalista Tonica Chagas, "Armani inspira-se tanto em camponeses como em nobres de países do Norte da África, da Índia, do Paquistão, da China, do Japão, da Indonésia e da Polinésia".[2]

Na monumentalidade arquitetônica exigida por esse novo conceito de museu, que tem o Guggenheim como emblema, é interessante perceber, a partir da emblemática exposição sobre Armani, que a cenografia, a construção virtual de um cenário, possui lugar fundamental. (E é justamente na insistência dessa questão virtual que eu quero chegar, mais adiante, ao cinema que abre possibilidades, partindo da idéia de que o cinema chega ao museu.) Se, no passado, a cenografia ocupava posição irrelevante na ambientação dos objetos artísticos expostos no museu, agora, ela rivaliza com a obra ou, num sentido mais amplo, é a própria obra. Na verdade, em alguns momentos, o conceito de ambientação do espaço do museu vai sendo ampliado e se transforma, tendencialmente, em instalações que reduzem a obra em exposição a objetos menores dentro dessa cenografia desprovida de ação dramática. No novo conceito de museu, a cenografia perde a sua função de suporte, organização e introdução e divide as atenções com a obra.

Os exemplos são inúmeros, mas basta lembrar da polêmica na exposição do redescobrimento, no módulo "Imagens do Barroco - Arte dos Séculos 17 e 18", cenografado pela diretora teatral Bia Lessa -, as famosas flores amarelas e roxas. No Rio de Janeiro, a polêmica fica esvaziada porque os módulos estão fragmentados e descentralizados e o espaço do Museu Nacional de Belas Artes é menor que em São Paulo; a exposição "Paisagem Carioca" (2000), no Museu de Arte Moderna, que conjugava objetos que tinham o Rio como tema, filmes, sons de tiro, trânsito caótico, sonorização especial e até um visorama, desenvolvido pelo núcleo de computação da UFRJ, que permitia ver a evolução da cidade em três tempos; a exposição "De El Greco a Velásquez", no MNBA, cenografada por Daniela Thomas, onde cada sala foi pintada de uma cor forte e diferente, com luz incidental sobre os quadros e as salas às escuras; a série "A Imagem do Som", cujo curador é Felipe Taborda, que conjuga obras que lêem (num sentido bastante amplo e profundamente conceitual) músicas que são sorteadas entre os artistas - Caetano Veloso, Chico Buarque e agora Gilberto Gil. Ao mesmo tempo que se vê a obra, pode-se ouvir a música em aparelhos de cd individuais; a exposição sobre cidades virtuais, no CCBB, www.mycity.com.br, que podia ser acessada de qualquer computador pessoal, cuja proposta era transformar em websites os olhares de vários artistas sobre suas cidades e conectá-los à rede mundial de computadores, revelando a figura do webdesigner; as exposições pioneiras nessa linha, no Centro Cultural Banco do Brasil, de Roland Barthes e Clarice Lispector, a primeira com curadoria de Silviano Santiago. Sem contar a mostra "50 anos de TV e Mais", no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, que vai reunir em uma oca projetada por Oscar Niemeyer, uma parafernália tecnológica para contar os cinqüenta anos da TV brasileira. No projeto cenotécnico, há um tubo de imagem, totalmente construído em vidro, que promove a passagem do mundo externo para o interior da midiaesfera que é a oca de Niemeyer, com direito, segundo descrição d'O Estado de S. Paulo, "a um corredor sinuoso formado por telas transparentes e 'paredes de luz negra' que permitem ao visitante ter a sensação de estar no interior de um tubo de imagem". Inclusive, a matéria publicada n'O Estado de S. Paulo tem o sugestivo título de: "Esqueça tudo o que você já sabia sobre os museus".

Em "Deslocações do tempo e novas topografias da memória",[3] palestra apresentada no seminário "Artelatina", realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no início de novembro, o professor de Comunicação Jesus Martin-Barbero discute em que medida o espaço do museu se encontra hoje deslocado, transformando-se, na lógica das indústrias culturais, em espaço das diversas temporalidades do mundo e das inúmeras possibilidades de memória. Para o professor colombiano, o espaço do museu "transborda os museus-edifícios por mil lados", indicando uma nova percepção que rompe o museu como "caixa-forte das tradições" e o converte "em espaço de diálogo com as culturas do presente e do mundo".

Nesse transbordamento se faz visível a nebulosidade que apresenta a fronteira entre museu e exposição, que aproxima o museu do mundo da feira popular, fazendo com que o curador passe de "guardião de coleções" a alguém capaz de mobilizá-las, de juntar o pôr em cena com o pôr em ação. [Caso, por exemplo, da exposição, no mesmo Guggenheim de Nova York, que reuniu cem motocicletas ao longo de uma rampa em espiral.]

Na verdade, a eficiente reflexão de Barbero parte de três modelos de política cultural. Profundamente conservador, o primeiro modelo é um modelo compensatório que atrelaria a idéia de museu (ou de toda cultura) à de um "oásis": "o museu está aí para nos tirar deste louco mundo e nos permitir um remanso de calma e de profundidade". Dentro dessa primeira perspectiva, portanto, o museu é convertido em "compensação pela perda da capacidade de decisão da política nacional". O segundo modelo, por sua vez, parte do conceito de simulacro na teoria baudrillardiana e reconhece o museu como uma espécie de "máquina de simulação" que veicula "imagens nas quais não haveria nada para ver", provocando, assim, uma cegueira inevitável, de matriz subjetiva, ou, na formulação de Martin-Barbero, um "colapso da visibilidade". Profundamente influenciado pela indústria tecnológica do cinema contemporâneo, este modelo preconiza a impossibilidade "em que está a sociedade atual de distinguir o real de sua simulação, reforçando uma certa tentação apocalíptica do fatalismo". Por fim, o terceiro modelo atrela-se à idéia de política cultural que, fugindo da idéia de apaziguamento, busca fazer do museu um lugar "de mobilização e estremecimento", de "choque da memória", na formulação de Walter Benjamin, lembrado pelo estudioso em seu ensaio. Em outras palavras, é o enfrentamento de um certo establishment da arte, presente nas propostas polêmicas do museu mundializado que é (ou que pretende ser) o Guggenheim.

É importante mencionar que Barbero não fala em termos de um "museu virtual", ou da "webart", que cria salas de visitação real com trabalhos de artistas realizados para a rede, à maneira, por exemplo, da exposição www.mycity.com.br e outras que começam a aparecer em bienais de arte. Por mais que se esteja tangenciando esse novo recurso, ele não está em evidência aqui. É um outro aspecto essa questão do fechamento do indivíduo em uma espécie de tecnosfera artística ou de cápsula tecnológica que é a internet. Importa aqui, em um primeiro momento, a transformação do museu em algo cibernético, de uma dimensão virtual que é da ordem do simulacro. Um museu que é também cinema e se realiza como tal. É curioso que, na referida exposição sobre os cinqüenta anos da TV, haverá o que a curadoria chama de "projeção do futuro", com instalações do americano Bill Viola. Será possível ao visitante, deitado em cadeiras giratórias e reclináveis, equipadas com alto-falantes individuais, acompanhar uma gigantesca projeção digital de alta definição na concha interna da oca. Com nove minutos de duração, uma espécie de reedição do conhecido cinema 360º dos parques temáticos, o filme é o primeiro em HDTV hemisférico do mundo, tecnologia que permite imagem de altíssima definição.

Dentro desse raciocínio, é o segundo modelo das formulações de Barbero (tudo é representação e imagem fabricada no novo espaço do museu) que interessa para ampliar a discussão para o aspecto cinematográfico e, preparando o final, perseguir a idéia de que a transfiguração do real em virtual é a mais evidente das condições contemporâneas.

Encomendada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 1995, para o evento "A Construção do Futuro: Mais um Século de Cinema", a instalação cinematográfica "Anos luz" de Marcelo Dantas, apresentava um projeto arquitetônico ousado: em uma sala, originalmente utilizada para grandes exposições, o público visitante se depara com a situação labiríntica de escolher um caminho em detrimento do outro. Em cada uma dessas possibilidades, duas imagens cinematográficas são projetadas em fitas de látex, que em repouso sugerem uma tela de projeção. Para cada caminho possível, duas telas estão à frente do espectador, que se movimenta em busca da imagem mais conveniente. Ao fazer sua opção imagética, com direito ao som original da seqüência fílmica escolhida, o espectador afasta com as mãos as tiras de látex (móveis e maleáveis) e penetra literalmente na cena cinematográfica de sua preferência, deparando-se com uma nova possibilidade de escolha. O ponto de partida da instalação é sempre o mesmo: duas cenas de Metrópolis, de Fritz Lang (a escolha entre o cientista criador e a criatura robô).

Escolhendo pontos estratégicos e trabalhando com outros sentidos além da visão, a concepção de Marcelo Dantas espalha pelo espaço de labirintos o que ele chama de "Oásis", escondidos atrás das tiras/telas de látex. Por exemplo, atrás das que projetam seqüências de deserto, há um ambiente que simula, com areia e temperatura ambiente, um calor de 45º. Ainda na mesma linha, atrás da cena antológica de Gene Kelly em Cantando na Chuva, existe uma poça d'água (como se a penetração literal na tela correspondesse a uma cenografia e ambientação literais do filme).

Elegendo em todas as suas especificidades a projeção da imagem cinematográfica como fundamental para o funcionamento da idéia da instalação, a organização cenotécnica pretende tematizar, no labirinto cujas trinta paredes são fragmentos de filme, a construção do movimento em um jogo de interferência e interatividade que se dá pela imersão lúdica nas telas. Partindo desse mote principal, o trânsito do espectador/agente pelas telas que viram passagens vai sustentar a experiência interativa de fazer o seu próprio filme através da múltipla combinação de caminhos no labirinto. Ou de modificá-lo durante a penetração, posto que o afastamento das tiras de látex provoca uma sensação de deformação nas seqüências fílmicas projetadas. À proporção que a cenografia tecnológica vai provocando o contato do espectador com experiências ópticas de fusão e distorção das imagens, a virtual movimentação que deforma o filme durante a penetração literal define os elementos de aproximação com o congelamento fotográfico, inserido em uma nova realidade sensorial.

No percurso da instalação, a presença física do espectador tem contato com dois espaços distintos: a célula conjugada (espaço real que antecede as projeções fílmicas e onde se dá a decisão da escolha por qual seqüência atravessar) e as tiras de látex (espaço imagético que à guisa de tela ilustra o percurso com visões simultâneas de trechos fílmicos). No momento da penetração literal, em que o espectador se encontra dentro da superfície móvel da tela de látex, a ação do filme parece congelar-se e suspender-se, como se a transposição de um espaço a outro aprisionasse fotograficamente um fragmento do tempo, preservando um instante da cena. Ou seja, cada espectador/ator, ao interferir na ação móvel, congela momentaneamente o roteiro, realiza seu próprio filme, interrompe a movimentação dramática e redefine a marcação cênica dos atores ou dos planos de paisagem. O final da instalação ratifica a estratégia. Colocadas na saída do labirinto-sala do museu, uma câmera e uma tela de projeção permitem que o espectador seja filmado e se veja no cinema, confirmando, dessa forma, sua condição de ator virtual no processo de interferência imagética.

Ora interativo ora reativo, o percurso da instalação de Marcelo Dantas tem como uma das matrizes possíveis o conto de Borges "O jardim de caminhos que se bifurcam", que discute o tempo como uma sucessão de bifurcações temporais na criação possível de universos paralelos. Uma outra matriz parece ser "As babas do diabo", conto de Julio Cortázar.

No conto de Cortázar, o narrador-fotógrafo-escritor do conto define suas atitudes na estratégia de "pensar fotograficamente as cenas". Seu referencial imagético sempre parte de divagações e suposições em relação ao objeto em foco ("Imaginei os possíveis finais, previa a chegada à casa, imaginei a aflição do garoto."[4]). O relacionamento do narrador com a realidade sempre parte da idéia de um roteiro preestabelecido que deseja provocar a verdade de uma cena (antes e depois do seu registro). Todas as cenas (ou tudo que passa pelo crivo de sua objetiva) ganham a possibilidade de esconder um instante revelador, impossível de ser vislumbrado durante o movimento do fato na iminência de sua realização.
Apanhar, portanto, o objeto no "gesto revelador" significa assumir uma postura detetivesca durante a contemplação dos fatos, com a clara intenção de recortar fragmentos de realidade bastante específicos. Durante o processo de revelação, portanto, a revitalização da operação fixadora que suspende o tempo, registrando a cena sem ensaio, vai possibilitar a análise detida da foto em busca de significados obscuros e aparentemente invisíveis a olho nu.

Na estratégia de reeducar as imagens em novos enquadramentos e em múltiplos sentidos diferentes, que dependem da variação do ângulo da objetiva (ou que na instalação dependem do caminho escolhido), o narrador obedece a um percurso definido em três movimentos. A observação voraz de imagens, que podem se transformar em pistas, busca o congelamento do movimento da vida (associada ao cinema) por intermédio do ato fotográfico que suspende o instante da cena. Posteriormente a esta atitude exterior de visualização do que fotografar, encontra-se o momento preparatório de concretização do material recolhido na "pequena imagem química" que se transforma em realidade visual. A revelação do negativo da foto é uma forma de se impressionar com a nova imagem reproduzida definitivamente no papel, agora concreta e palpável, diferente daquela filtrada pela objetiva ("O negativo era tão bom que preparou uma ampliação."[5]). O terceiro momento, enfim, dá conta da postura contemplativa do narrador diante da foto produzida. Tal estado contemplativo organiza implicações básicas na análise da cena registrada. De imediato, a observação detida das pecu-liaridades da imagem congelada não se sustenta, já que a fixidez do instante petrificado não revela códigos nem admite que a visão se redefina em comparação com a amplidão da cena anteriormente fotografada no parque.

Se "no conto de Cortázar, a fotografia se apresenta como imagem privilegiada para representar a possibilidade de uma nova visão das coisas"[6], importa definir quais serão as conseqüências decorrentes da ampliação do negativo e em que medida a realidade registrada na fixidez da foto vai sustentar as suposições do narrador.

O fotógrafo, a partir da ampliação do negativo, começa a perceber que o estado congelado da imagem suspensa não vai ser suficiente para decodificar "o que ia acontecer, o que tinha de ter acontecido, o que teria de acontecer naquele momento entre aquelas pessoas, ali onde eu havia chegado para transgredir uma ordem".[7] Na verdade, a ampliação da foto vai possibilitar (mas não vai resolver) uma redefinição do primeiro olhar diante do objeto. De um único fato ocorrido diante da objetiva fotográfica, surgem novos significados e novas versões da primeira leitura. Mais que revelar e confrontar novos detalhes com a visão anterior, a mudança de perspectiva, motivada pela ampliação, vai implicar uma reeducação do olhar e uma revisão dos procedimentos imagéticos. Nesse sentido, as noções de afastamento e distanciamento serão decisivas na passagem da foto (congelada, ampliada mas ainda turva e indefinida) para a mobilidade do cinema (revelação de códigos decisivos e associação fantástica com o ritmo animado da realidade).

Dentro do arcabouço visual armado pelo fotógrafo, ampliar a foto, alterando o seu tamanho original, é evocar a tela, é instaurar a idéia de cinema, é recuperar a imagem petrificada e revesti-la novamente de realidade. No conto de Cortázar, mais que solucionar o impasse, importa perceber o percurso que se estabelece até que o narrador faça da imobilidade fotográfica o cinema que imita e revela o fluxo da vida. Nessa perspectiva, o narrador se dá conta de que ver fixamente a foto suspensa não só significa produzir uma sensação de movimento, como também possibilita o resgate da passagem do tempo que o enquadramento fotográfico havia interrompido. A transformação do significado dessa imagem suspensa, através da ampliação que se movimenta, recupera a superposição dos acontecimentos do parque. O narrador abandona sua contemplação espectatorial diante da foto e assume a perspectiva ficcional da objetiva de sua Cóntax, prolongamento da Remington sobre a mesa. Da projeção dos fatos na foto que se move, surgem os enredos arregimentados pelas ruminações do fotógrafo, em um jogo que se assemelha ao espaço do novo museu: invenções tecnológicas, diálogo entre múltiplas narrativas e confronto de diversas temporalidades na transfiguração do real em virtual.[8]

Bibliografia:

BARBERO, Jesus Martin. O novo museu, espaço das diversas temporalidades do mundo. O Globo, Segundo Caderno, 28 de outubro de 2000.
BORGES, Jorge Luis. Obra Completa. Rio de Janeiro: Globo, 2000.
CAIAFA, Janice. Nosso Século XXI: Notas sobre Arte, Técnica e Poderes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
CHAGAS, Tonica. Guggenheim homenageia o designer. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 20 de novembro de 2000.
CORTÁZAR, Julio. As Armas Secretas. Rio de Janeiro, 1994.
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. O Ar dos Desejos: A Hora da Estrela, de Clarice Lispector e "Das babas del diablo", de Julio Cortázar. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Departamento de Letras da PUC-Rio, 1982.
FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens Pós-modernas: Configurações Institucionais Contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano; Cândido Mendes; MAM-RJ, 2000.
LEVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: o Futuro do Pensamento na Era da Informática. Rio de Janeiro: 34, 1993.
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000.
SEVCENKO, Nicolau. Suspensos no Loop da Montanha-Russa: A Corrida do Século 20 para o 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VIRILIO, Paul. A Máquina de Visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

 

Notas:

  • 1 Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e doutorando em Letras na mesma universidade.