Figuras da Lusofonia

Apresentação

APRESENTAÇÃO

O Colóquio "Figuras da Lusofonia", realizado em Lisboa em fevereiro de 1999, foi concebido pelo Instituto Camões para homenagear Cleonice Berardinelli. A longa experiência de vida, a postura intelectual e o trabalho dessa figura paradigmática da comunidade lusófona mereceram manifestações de reconhecimento e apreço por parte do mundo acadêmico e de instituições portuguesas, nomeadamente o Instituto Camões e a Fundação Calouste Gulbenkian.

Criado para destacar e registrar publicamente a atuação de personalidades que se consagraram como promotoras e guardiãs de diferentes manifestações culturais em língua portuguesa, o Colóquio, e este livro que agora se estampa, acrescentam ao respeitável currículo de Cleonice o título de Figura da Lusofonia.

No caso de Cleonice Berardinelli, ser Figura da Lusofonia é ter dedicado toda uma vida ao estudo e à divulgação da cultura portuguesa, tratando autores e obras com o cuidado e a atenção de quem recolhe antigas sementes para armazenar e multiplicar as suas forças germinativas. É ser, nomeadamente, uma professora brasileira de literatura portuguesa que soube construir um percurso de intelectual marcado pela competência, dedicação e generosidade. É ter franqueado a alunos e colegas a singularidade de seu olhar (e particularmente a de sua voz) em inúmeras aulas, conferências e ensaios que marcaram várias gerações de professores. É, ainda, ser parceira incansável de investigadores brasileiros e portugueses na realização de encontros e projetos de pesquisa, e na fixação de textos de autores como Camões, Gil Vicente, Chiado, Bocage, João de Deus, José Régio, Mário de Sá-Carneiro, António Prestes e Fernando Pessoa. Mas não finda aqui a "biblioteca" que Cleonice tem habitado ao longo desses anos. Se Camões, Fernando Pessoa e Gil Vicente aparecem como os grandes pilares da extensa galeria formada pelos "estudos portugueses" de Cleonice, nela também ganham relevo as obras de Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça de Queirós, Antero de Quental, Cesário Verde e Diogo Bernardes, destacando-se ainda os estudos sobre Almeida Faria, José Cardoso Pires e Jorge de Sena. É na companhia desses autores (mas não só deles) que Cleonice Berardinelli tece os seus dias de grande investigadora e professora modelar.

A merecida homenagem expressa no Colóquio de 1999, e agora complementada com a edição deste livro, foi a forma escolhida para resgatar a longa trajetória de Cleonice e pôr em relevo o viés emblemático da "biblioteca" em que ela circula. Seguindo este propósito, a homenagem só poderia concentrar-se na produção de textos que retomassem a obra de autores trabalhados, muitas vezes apresentados pela primeira vez no Brasil, por Cleonice Berardinelli. O conjunto de textos expressa o reconhecimento de velhos amigos e colegas (muitos deles antigos alunos) que retomam as aulas, as conferências ou o convívio profissional que Cleonice Berardinelli tem construído ao longo da vida.

Em sua maioria, os textos apresentados são análises de obras dos seus autores eleitos. São recuperações de antigas leituras que se transformam em homenagem pela aproximação e desdobramento. São sortilégios de escrita, permanências e circulações que marcam proximidade e convivência. São expressões de desejo ou de agradecimento que definem e delimitam com o afeto a comunidade de amigos de Cleonice Berardinelli.

Jorge Fernandes da Silveira, Helena Carvalhão Buescu e Maria Vitalina Leal de Matos vão retomar os versos de Fernando Pessoa e criar a possibilidade deste "novo encontro" com Cleonice. São textos que expressam desejos de aproximação mas que têm também a funcionalidade de releitura. São caminhos muitas vezes trilhados mas agora desdobrados e ressemantizados nas inovadoras abordagens dos três professores.

Antero é convocado para a homenagem por Eduardo Lourenço. Com uma aguda reflexão sobre o erotismo na poesia amorosa do jovem Antero, o ensaísta e grande amigo de nossa homenageada constrói um discurso em diálogo estreito e fraterno com a leitura que Cleonice fez das Primaveras Românticas "num breve e precioso ensaio intitulado Eros e Antero". Na sua delicada homenagem há leitura e citação, mas não só. Há ainda a eleição de um tema e, principalmente, de um autor que também os aproxima.

Nessa incursão pela "biblioteca" de Cleonice não poderia faltar o encontro com Gil Vicente, autor que mereceu muitos estudos, mas também inesquecíveis representações, por parte da nossa homenageada. Os textos de Eneida do Rego Monteiro Bomfim e de Maria Idalina Resina Rodrigues são os responsáveis pela convocação de mestre Gil, através da recuperação do campo semântico do vestuário presente nos Autos e da análise dos cruzamentos, contaminações e adaptações contemporâneas do Auto da Barca do Inferno. Seus textos são expressões claras que resultam de acurada investigação e do desejo comum de mais uma vez estar junto de Cleonice. A ponte (a Barca) desta vez foi construída com textos vicentinos.

Com o texto "Tornar-se Lusófono - Histórias e Contemporaneidade", Eneida Leal Cunha constrói a sua homenagem, demonstrando, em forma de testemunho, a presença marcante dos Estudos Camonianos de Cleonice na sua trajetória de investigadora preocupada em "compreender Portugal", ou em "reinterpretar, a partir de Os Lusíadas, a fundação do imaginário brasileiro", ou ainda, mais recentemente, em apreender "muitas das significações difusas e das vontades conflitantes" que se expõem na insistência da palavra Lusofonia.

Eça de Queirós foi três vezes convocado a comparecer a esse encontro com Cleonice e veio pelas mãos de Helder Macedo, Lélia Parreira Duarte e Vilma Arêas. Com o texto "Os Maias e a Veracidade da Inverosimilhança", Helder Macedo demonstra a originalidade estrutural de Os Maias a partir de uma análise do modelo tradicional de romance realista. Lélia Parreira Duarte retoma o texto Alves & Cia., evidenciando a releitura que dele fez Helvécio Ratton com a recriação cinematográfica Amor & Cia..Vilma Arêas propõe uma nova abordagem comparatista para o romance O Primo Basílio, aproximando-o da instigante novela de Flaubert "Passion et Vertu".

A literatura portuguesa contemporânea presente na biblioteca de Cleonice foi retomada e trazida a este encontro por Ronaldo Menegaz, Gilda Santos e Teresa Cristina Cerdeira da Silva. Com análises de textos de António Lobo Antunes, Jorge de Sena e José Cardoso Pires, estes antigos alunos vão retomar cursos, palestras e textos em que Cleonice Berardinelli apresentou aos seus discípulos brasileiros os principais representantes da contemporânea literatura portuguesa.

Eduardo Prado Coelho trouxe para Cleonice o texto "Tríades", em que analisa ("porque de Cleonice se trata") a partir dos textos "A Terceira Margem do Rio", "Nenhum, Nenhuma" e Tutaméia, de Guimarães Rosa, os significados possíveis que a designação do Terceiro pode conter. Também numa retomada de textos brasileiros (ou, no caso, de texto escrito no Brasil), Maria Fernanda Abreu faz a sua homenagem a Cleonice, analisando a representação da mulata brasileira no romance A Mulata, do português Carlos Malheiro Dias.

Com o texto "Sinos e Lembranças: Ecos de Dois Romances Angolanos Finisseculares", Laura Cavalcante Padilha traz para a antiga mestra a sua reflexão sobre o projeto da nova ficção angolana, analisando os textos Parábola do Cágado Velho, de Pepetela e Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso.

Explorando a dimensão simbólica da Ilha, Luciana Stegagno Picchio se apresenta com "Uma Ilha para Cleonice", texto que, afinal, concentra uma profusão de ilhas, oferecidas àquela que, segundo Luciana, "dentro da nossa literatura luso-brasileira foi sempre uma ilha. Uma ilha de cultura portuguesa dentro do mundo acadêmico brasileiro. E, na Europa, uma ilha de cultura e de doce fala brasileira dentro do mundo acadêmico português." Ainda seguindo esse viés metafórico, mas a ele acrescentando um outro recorte temático, Benjamin Abdala Junior oferece a Cleonice "De Vôos e Ilhas", um texto que põe em discussão representações clássicas e contemporâneas de um "fazer desejar", que tem em conta, como nos diz o autor, "recortes da imaginação utópica, como práxis de escritores que dirigiram a energia poético-utópica para o reino da liberdade, não individualizando esse movimento pela recorrência obsessiva ao reino da necessidade".

Com o texto "Que Faremos com Esta Tradição? Ou: Relíquias da Casa Velha", Renato Cordeiro Gomes traz uma questão para homenagear a antiga mestra: "o que faremos desta tradição, destas relíquias que recebemos de uma herança portuguesa, por via da história, ou através das lições de D. Cleo, que, conjugando 'história, coração, linguagem' (como Drummond vê em Camões), a cultua e a vem transmitindo há já longos anos a muitas gerações." Retomando num instigante percurso as produções de intelectuais, pensadores, escritores e artistas brasileiros que puseram em questão "o papel da herança colonial portuguesa na invenção de uma tradição que nos constituiria", Renato acentua que a herança cultural a nós legada por Cleonice "funciona como lastro, estratégia ou cabedal que possibilita ler como a tradição circula, com o jogo intertextual que se processa no diálogo fecundo entre a literatura portuguesa e a literatura brasileira."

Para falar da "Língua de Cleonice", Ivo Castro elegeu como objeto de análise "conferências, comunicações a congressos e livros produzidos por Cleonice com destino a públicos brasileiros". Com saborosas observações - que não ocultam uma ponta de carinhosa provocação - o autor chama a atenção para traços que definem a "aparente lusitanidade" da prosa de Cleonice. Declarando ter-se perdido ao longo da leitura "nas palavras de Cleonice", este amigo querido da nossa homenageada vai desdobrar a sua análise, recolhendo fragmentos de seu discurso com o carinho e o cuidado de quem recolhe atentamente pequenos objetos para ir oferecendo-os aos poucos e prolongar, assim, o sabor da oferta. Ao dialogar com as proposições do lingüista brasileiro Celso Cunha, para quem a "língua de Portugal e do Brasil era uma", embora não descuidasse das diferenças existentes e propusesse sistematizá-las a partir do conceito de variantes nacionais, Ivo Castro retoma a sua análise e afirma que "a norma culta a que pertence a língua de Cleonice integra-se, assim, na variante nacional brasileira, ocupando dentro dela a posição mais chegada à variante portuguesa, mas mesmo assim dela se distinguindo." Professora brasileira de literatura portuguesa, Cleonice não desmente essa dupla inserção também em suas manifestações lingüísticas.

O conjunto de textos apresentados vão, assim, registrando os atributos que fazem de Cleonice Berardinelli uma das mestras mais queridas e respeitadas da nossa comunidade acadêmica, ou "a grande Senhora dessa Universidade do Mundo Lusófono", como lhe chamou Aníbal Pinto de Castro, quando em seu texto de homenagem traça o perfil da personalidade científica e humana de Cleonice.

Finalmente, a minha homenagem também se traduz em textos. Primeiro, com o texto apresentado no Encontro, em que faço uma análise sobre a legibilidade da Lisboa de José Cardoso Pires, cidade que recebeu e homenageou Cleonice. E agora, com a preparação deste livro que resgata os diferentes textos de homenagem, organizando-os no volume Figuras da Lusofonia. Com este livro, acredito, mais uma vez se reeditam as palavras de Cleonice Berardinelli. Mais uma vez as suas aulas, ensaios e palestras são retomados, com o cuidado e a atenção que dedicamos aos clássicos cuja releitura, como diz Calvino, será sempre uma leitura de descoberta, como se fosse a primeira.