Estudos Camonianos

Luís Vaz de Camões

Na Biografia intitulada "Vida del Poeta", que antecede a sua edição d'Os Lusíadas de 1639, Manuel de Faria e Sousa acusa a pátria de descaso por tão alto varão, ao ponto de lhe ser ignorado o local e a data do nascimento e adota os que o licenciado Manuel Correa, no comentário à edição de 1613, propõe com a autoridade de contemporâneo e amigo do Poeta: Lisboa, por volta de 1517. Antes dele, porém, o livreiro da Universidade de Coimbra, Domingos Fernandes, dizia-o nascido nesta cidade. A Lisboa e Coimbra se acrescenta Santarém como berço provável de Camões, e Faria e Sousa, a valorizar aquele que chamava "mi Poeta", diz que assim também acontecera com Homero, disputado por sete cidades gregas. Mais tarde, o mesmo Faria e Sousa teria encontrado, na casa da Índia, um registro da Armada, datado de 1550, atribuindo-lhe a idade de vinte e cinco anos. Se se pudesse dar sempre crédito a Faria e Sousa, este seria um dos pouquíssimos documentos em que basear a biografia de Camões, mas é sabido por todos que, na ânsia de engrandecer o seu Poeta, o biografo muitas vezes inventou dados. Das origens do Poeta, sabemos que foi seu trisavô o poeta Vasco Pires de Camões, galego, e sua avô D. Guiomar da Gama, parenta de Vasco da Gama. É provável que tenha cursado a Universidade de Coimbra, onde era reitor o tio D. Bento Camões, prior de Sta. Cruz, mas seu nome não consta dos registros. Pedro Mariz, seu primeiro biógrafo, menciona a sua ida a Ceuta, o que é confirmado pela elegia "Aquela que de amor descomedido", na qual há referências indiscutíveis ao norte da África. Atribuem alguns essa ida a um caso amoroso na corte, que então freqüentava, como voltará a freqüentar depois do seu regresso, perdido um olho em combate. Desse convívio nos dá testemunho a glosa ao mote proposto por D. Francisca de Aragão, "Mas porém a que cuidados", realizada por Camões com a maior engenhosidade e talento, fazendo variar o sentido do mote ao alterar-lhe a pontuação.

É dessa época que data um dos raros documentos incontestáveis que permitem reconstituir com alguma segurança certos períodos da vida do Poeta: a carta de perdão de D. João III, de 7 de março de 1553. Nela se diz que Luiz Vaz de Camões, filho de Simão Vaz, cavaleiro fidalgo, está preso no Tronco da cidade por ter ferido, em dia de procissão do Corpo de Deus, a Gonçalo Borges, encarregado dos "arreios do Rei"; que este, atingido "no cabelo do toutiço", não tendo ficado com aleijão ou disformidade, perdoou ao agressor e o mesmo faz o rei, baseando-se no perdão do agredido e ainda em ser o suplicante "mancebo e pobre" e ir naquele ano a servi-lo na Índia.

O professor Hernâni Cidade não aceita que a ida à Índia tenha sido condição imposta pelo rei, por julgá-la excessiva e, mais objetivamente, por encontrar em carta escrita da Índia, a afirmação da livre escolha do Poeta: "Enfim, Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavam os acontecimentos, como com me vir pera esta."

É a nau São Bento que o leva; é nela que Camões enfrenta, na altura do Cabo das Tormentas, uma tempestade que ressoará nas oitavas do Adamastor e na elegia "O Poeta Simónides falando". Da sua estada e aventuras na Índia fala-nos Faria e Sousa, utilizando-se sobretudo de passos da lírica: participou da expedição, comandada pelo vice-rei D. Afonso de Noronha, em socorro dos reis de Cochim e Porcá ("O Poeta Simónides"); em 1555, na armada chefiada por Manuel de Vasconcelos, passou o estreito de Meca ("Junto dum seco, fero, estéril monte"); observou o que ocorria a sua volta e escreveu os "Disbarates seus da Índia" (Rh. fo. 167 v), onde satirizava "alguns vícios de pessoas que àquele tempo não eram as últimas da cidade". Daí teriam resultado queixas e destas a decisão do governador Francisco Barreto de desterrar para a China o Poeta, que acusa o "injusto mando" (Lus., X, 128) e as "Injustiças daqueles que o confuso / Regimento do mundo, antigo abuso, / Faz sobre os outros homens poderosos" ("Vinde cá, meu tão certo secretário"). Seguindo as informações concordes de Pedro Mariz e Manuel Severim de Faria, Faria e Sousa faz passar o Poeta a Macau, com o cargo de provedor mor dos defuntos; e de sua própria observação conclui que ali teria Camões escrito grande parte do seu poema, já que, ao referir-se ao naufrágio na foz do rio Mecom, "falou dele como de coisa concluída" (Lus., X, 128).

De volta a Goa, por volta de 1561, é protegido pelo vice-rei D. Constantino de Bragança, irmão do duque D. Teodósio, o que não impede que seja metido na prisão, "sem culpas, mas não sem dívidas", diz Faria e Sousa e lembra as oitavas dirigidas pelo Poeta ao sucessor de D. Constantino, D. Francisco Coutinho, conde de Redondo, "pedindo-lhe que o fizesse desembargar" (trovas "Que diabo há tão danado"), pois que um Miguel Roiz, alcunhado de "Fios-Secos", a quem devia, o tinha embargado. Nem tudo, porém, eram desventuras e, pelos versos do "Convite que Luís de Camões fez, na Índia, a certos fidalgos, cujos nomes aqui vão", vemo-lo conviver amavelmente com nobres como Francisco d'Almeida, Vasco d'Ataíde e outros, embora seja verdade que as iguarias oferecidas são trovas, o que talvez seja o aproveitamento da oportunidade para salientar a penúria em que vivia. O prestígio de que gozava junto do conde de Redondo o capacita a pedir-lhe proteção para o livro de Garcia de Orta, Colóquios dos Simples e Drogas, na ode "Aquele único exemplo", e a D. Leonis Pereira para "o livro que Pero de Magalhães lhe ofereceu do descobrimento da terra de Santa Cruz". Talvez já desejoso de regressar à pátria, transpondo metade da distância da viagem, Camões aceita o convite de Pedro Barreto, nomeado governador de Moçambique em 1567, de levá-lo consigo, esquecendo, como diz Faria e Sousa, que o sobrenome Barreto já lhe tinha sido nefasto. E tornou a sê-lo, pois o governador o manteve preso até que ele pagasse os duzentos cruzados gastos com alimentação a bordo. É aí que o encontra Diogo do Couto, que dá testemunho da situação do nosso Poeta, "tão pobre que comia de amigos", tendo-se estes cotizado para lhe possibilitar o retorno a Portugal, onde chegou a 7 de abril de 1570, dezessete anos depois de ter partido.

Encontra uma Lisboa ainda abalada pela peste do ano anterior. Em setembro de 1571, consegue um privilégio para a impressão d'Os Lusíadas, que serão editados no ano seguinte. Em julho de 1572, D. Sebastião, a quem o poema é dedicado, concede ao Poeta uma pensão de 15.000 réis anuais, tendo em vista os serviços que lhe prestou e a "suficiência que mostrou no livro que fez das coisas da Índia". Camões vê seu poema citado nesse mesmo ano. Nos últimos tempos de vida, não há senão suposições que foram aceitas por alguns biógrafos. Em 1579 ou 1580, a 10 de junho (é a data geralmente aceita, mas não comprovada), morre em Lisboa.

Não tendo participado do elogio mútuo feito em versos, que encontramos na obra de Sá de Miranda, Antônio Ferreira e outros mais ou menos seus contemporâneos, Camões só vai ser glorificado depois de sua morte. Os primeiros a reconhecê-la são Diogo do Couto que a ele se refere como "príncipe dos poetas de seu tempo" e Diogo Bernardes que, num soneto a ele dedicado, louva-o como poeta lírico e épico, cantor da pátria que se lhe mostrou avara, perseguido da sorte, concluindo: "Mas se lhe foi Fortuna escassa em vida, / Não lhe pode tirar despois da morte / Um rico emparo de sua fama e glória." [1] . No período da dominação espanhola, Os Lusíadas se tornam o revitalizador dos brios portugueses e seu Poeta é tão altamente colocado, que um escritor ilustre como o Dr. Antônio de Sousa Macedo faz a Sibila Cumena profetizar-lhe o nascimento e D. Francisco Manuel de Melo, no Hospital das Letras, diz pela boca de Quevedo que Luís de Camões é "honra e glória de Espanha" e pela de Bocalino que é o melhor poeta de Espanha, só comparável ao Tasso, a Vergílio e a Homero. No séc. XVIII, os teóricos ou pseudo-teóricos fazem restrições ao gênio camoniano, todas provenientes de um enfoque diverso e parcial da poesia: é o que faz Verney com certo equilíbrio e José Agostinho de Macedo com paixão e azedume. Os poetas, porém, o imitam e cultuam; Bocage a ele se compara, julgando-se-lhe inferior. Do romantismo em diante, o culto do Poeta tem-se afirmado cada vez mais. O tempo não o desgasta, antes lhe vai revelando aspectos até então irrevelados. Disso deram prova as comemorações do 4o centenário da 1a edição d'Os Lusíadas levadas a efeito no Brasil e em Portugal no ano de 1972.



[1] Em Rh, ainda glorificam Camões: Emanuel de Sousa Coutinho ("Quod Maro sublimi, quod suavi Pindarus, alto"), Francisco Lopes ("Está o pintor famoso atento e mudo"), Luís Franco ("Sopra la [?], e l'ossa regnar morte"); em Ri acrescentam-se Torquato Tasso ("Vasco, le cui felici, ardite antenne"), Gaspar Gomes Pontino ("Aqui da grã Minerva se descobre"). D. Leonardo Turrica ("Celeste ligno dei gran fatti egregi") e o autor anônimo do soneto "Quem é este que há harpa Lusitana", a quem Camões responde no soneto 62 da mesma edição, "De tão divino acento e voz humana".