Estudos Camonianos

À roda de um soneto de Camões

As duas edições quinhentistas das Rimas de Camões datam de 1595 e 1598; aos sessenta e cinco sonetos da primeira [1] foram acrescentados quarenta e três outros, todos contidos num manuscrito apenso a um exemplar das Rhythmas, estudado pelo camonista brasileiro Emanuel Pereira Filho [2] .

A primeira edição seiscentista, de 1607, mantém os mesmos sonetos, mas seu editor, Domingos Fernandes, publicou, em 1616, uma nova série de trinta e seis outros, dos quais apenas trinta e dois são na verdade novos [3] . O primeiro vem impresso em caracteres itálicos bastantes grandes, de modo a que o soneto ocupe toda a página; seguem-se-lhe trinta em tipo redondo e bem menor, dispostos dois a dois nas quinze páginas seguintes [4] . Para os quatro últimos retoma-se o itálico do primeiro e acrescenta-se - o que lhes dá especial destaque - uma vinheta na parte baixa da página, ao fim, pois, de cada soneto. E acontece que o grupo é constituído de sonetos devotos, formando uma espécie de políptico da história de Cristo: o primeiro é feito à Concepção da Virgem, o segundo, à Encarnação do Verbo, o terceiro, à Natividade e o último, à Paixão.

Jorge de Sena desconfia da "anormal devoção" manifesta pelo Poeta, explicando: "Até parece que o Fernandes pretende atestar com a devoção de 'Camões' (devoção que ele imprime a soneto por página, com destaque), a sua fidelidade à religião estabelecida e aliviar a suspeição com que a censura leria um Camões coligido por ele, que precisava do livro para ganhar a vida" [5] . A verdade é que, se esse conjunto não prima pela excelência que se pode apontar na maioria dos sonetos camonianos (ou ditos tais), não será o fato de estarem agrupados em razão de sua religiosidade que invalidará a possível autoria do Poeta. Dos quatro que figuram na edição de 1607, três já vinham agrupados no manuscrito de Madrid, seguidos das redondilhas de "Sobre os rios" e do soneto "Nos rios da Babilônia assentado".

Vale a pena acentuar que, enquanto nos sonetos 33 ("Para se namorar do que criou") e 35 ("Dos Ceos à Terra dece a mor Beleza") é o sujeito poético que fala, nos outros dois (34, "Dece do Ceo imenso Deus Benino", e 36, "Por que tamanhas penas se oferece") a palavra é transferida a interlocutores que dialogam num jogo de perguntas e respostas que visam ao louvor do Cristo. Veja-se, para exemplo, o último deles:

- Por que a tamanhas penas se oferece,

Pelo pecado alheo e erro insano,

O trino Deus? - Porque o sojeito humano

Não pode co castigo que merece.

 

- Quem padecerá as penas que padece,

Quem sofrerá desonra, morte e dano?

- Ninguém, senão se for o soberano

Que reina, e servos manda, e obedece.

 

- Foi a força do homem tão pequena,

Que não pôde soster tanta aspereza,

Pois não sosteve a Lei que Deus ordena?

 

- Sofre-a aquela imensa Fortaleza

Por puro amor, que a humanal fraqueza

Foi para o erro, e não já para a pena.

Este soneto, que está no Cancioneiro de Luís Franco em zona bem camoniana, é, no manuscrito de Madrid (fo. 111 v), atribuído a Camões. A dúvida sobre sua autencidade vem da atribuição, por Caminha, a Francisco Galvão, mas o estudo feito por Arthur Lee-Francis Askins sobre o Cancioneiro de Cristóvão Borges [6] destrói a possibilidade dessa autoria, pois, como diz o camonista americano, a transcrição do soneto em um manuscrito de no máximo 1578, afasta-a pelo simples fato de que nesta data Galvão teria menos de catorze anos.

Jorge de Sena, como outros autores, considera o poema inferior. Não concordamos com esse julgamento. Embora não seja um dos que se incluiriam entre os melhores do Poeta, não o desdoura, fazendo boa figura entre os "devotos" que tanta desconfiança inspiraram ao grande camonista português. Na verdade, o soneto se estrutura na tensão dialética entre Deus e o homem: de um lado, a não-culpa, o sacrifício pelo próximo, o castigo imerecido, a força para suportá-lo, o mando e a servidão, o puro amor; do outro, a culpa, o castigo merecido, a fraqueza que não o suporta e induz ao pecado... O jogo de opostos que constitui a rede significante em que os versos se tecem e entretecem o insere no maneirismo em que Helmut Hatzfeld [7] , em 1964, situou nosso Poeta. Na linha dos poemas religiosos está, é claro, muito longe de "Sobre os rios", momento climático da criação camoniana, mas é a expressão bem realizada de uma postura cristã segura, ortodoxa.

Até prova em contrário, continua camoniano.



[1] Na verdade, o volume tém 66 sonetos; um, porém, "Espanta crescer tanto o crocodilo" (19), já era, no  "Prólogo aos Leitores" desta edição, dito "que despois de impresso se soube que não era seu."

[2] PEREIRA FILHO, Emmanuel. As rimas de Camões. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974.

[3] Cf. "Introdução aos Sonetos de Camões", p. ???

[4] Deviam seguir-se trinta e um sonetos, mas o 22 não figura no livro; foi omitido (ou não existia) e saltou-se um número.

[5] SENA, Jorge de. Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista peninsular, 2. ed.. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 176.

[6] ASKINS, Arthur Lee-Francis. The Cancioneiro de Cristóvão Borges. Edition and notes by ... Braga: Barbosa & Xavier, 1979.

[7] HATZFELD, Helmut. "El barroco y el manerismo. 1. Estilo manuelino en los sonetos de Camões". In: --- Estudios sobre el barroco. Madrid: Gredos, 1964, p. 204-41.