O traje e aparência nos autos de Gil Vicente

2. O hábito faz o monge... Ou não

Uma leitura mais cuidadosa dos autos aponta para algo mais do que o número elevado de vocábulos referentes a este campo, principalmente porque as ocorrências se dão no diálogo e raramente na descrição de personagens. A contextualização dos termos fornece ao leitor (já que estamos lidando com o texto escrito) pistas indicadoras da maneira de se vestir de grupos sociais e da importância dada ao traje e à aparência, de maneira geral, pelos indivíduos e pela sociedade.

A preocupação com a aparência e o adorno perpassa por todo o texto vicentino. As poucas referências à Virgem Maria a mostram adornada, se bem que estes adornos sejam, na maior parte das vezes, virtudes ou coisas sem valor material. Ela é apresentada “ataviada / de malla de sancta vida”, “pulcra”, “con galas, arreos” (enfeites), “com mui fermosa aparência”, “vestida como Rainha”. Em contrapartida, as condições de pobreza em que Cristo nasceu são ressaltadas e exaltadas. No Auto Pastoril Castelhano, os pastores, avisados pelo Anjo do nascimento do Redentor, encaminham-se para o presépio e lá tecem comentários sobre o que vêem: Señora, com estos hielos / el niño se está temblando: / de frío veo llorando / el criador de los cielos / por falta de pañizuelos. / Juri a san! Si tal pensara, / o por dicha tal supiera, / un çamarro le truxera / de una vara, que ahotas que él callara[23].

No Auto dos Reis Magos, o Ermitão informa sobre Jesus menino: lo verá desnudo echado / de los fríos trespassado[24].A Prudência, no Auto da Mofina Mendes, transmite: Eruteia profetiza / diz aqui também o que sente: / que nascerá pobremente, / sem cueiro nem camisa / nem cousa com que se aquente[25].

O culto à aparência revela-se em todos os níveis. No Auto da Alma fica bem definida uma oposição entre natural (espiritual) e material (mundano). De um lado, tem-se a vida espiritual, apartada de toda cousa mundana que convém à Alma para sua salvação e, do outro, as pompas, os trajes suntuosos, a ostentação, próprios do mundo. O Diabo diz que a Alma vai... desautorizada, / descalça, pobre, perdida e, depois de vesti-la com um brial e calçá-la com chapins de Valença faz sua apreciação: agora estais vós mulher de parecer[26]. Tenta atraí-la com ouro, pedras preciosas, brocados, sedas e oferece-lhe colar de ouro esmaltado, dez anéis e pendentes (brincos). A Alma, mais tarde, arrependida, lastima-se de ter abandonado seus perfeitos arreios naturais pelos feios trajes mundanais, mas antes respondera ao Anjo que lhe perguntara que estava fazendo ali: Faço o que vejo fazer / polo mundo. Em outras palavras, está acompanhando o luxo, a ostentação, a aparência. Mesmo repudiado, o enfeite está presente nos “arreios naturais”, mas ainda assim há oposição entre natural e mundano. Assim como se viu com referência à Virgem Maria, a necessidade de parecer bem pelo enfeite existe, o que muda é o plano em que este se insere, espiritual ou material.

Semelhante é o que se dá na Exortação da Guerra. A troiana Policena, trazida a pedido do Clérigo Nigromante, muito bem ataviada / e concertada, / assi linda como era[27], dirige-se à platéia, incitando as senhoras a seguir seu exemplo e de suas irmãs que teciam os estandartes bordados de todas partes / com divisas mui louçãs e davam seus colares e jóias[28].

As palavras de Policena estão imbuídas de patriotismo. Ela contrapõe bandeiras e estandartes, ainda que bordados, a peças de luxo, jóias e lavores requintados. No mesmo auto, com a mesma tônica, são as palavras de Aníbal: Fazei contas de bugalhos, / e perlas de camarinhas, / firmais de cabeças d’alhos; / isto si, Senhoras minhas, / e esses que tendes daí-lhos. / Oh, que não honram vestidos, / nem mui ricos atavios, / mas os feitos nobrecidos! / Não briais d’ouro tecidos / com trepas de desvarios; / [29] daí-os pera capacetes.

Os objetos persistem, mas muda a matéria-prima. “Bugalho” é o nome do fruto do carvalho e também a designação das contas grosseiras do rosário. Moraes registra o plural “camarinhas” como frutices, que nascem nos camarções, de certas urzes[30]e, na mesma página, “caraminhado” que tem feição de camarinhas, ou bagas d’orvalho. No Aurélio[31], uma das acepções do vocábulo é gotículas redondas: camarinhas de suor. Ainda restam os firmais (broches), geralmente redondos, de cabeças d’alho. A substituição do material é engenhosa, tanto nas contas quanto nos firmais e, com respeito às pérolas, já é lugar comum compararem-se gotículas de água ou de suor com aljôfar. Destoando da tônica do prestígio da boa aparência, Aníbal enaltece “os feitos nobrecidos” e os “capacetes”, opondo-os a “vestidos”, “ricos atavios” e “briais d’ouro tecidos”.

Somente as pessoas simples valorizam o caráter funcional da roupa: cobrir e abrigar. Veja-se o pastor Gil, no Auto Pastoril Castelhano, que, vendo Jesus na manjedoura, nu e com frio, pensa em presenteá-lo com um abrigo, um samarro, veste tipicamente pastoril[32].

A roupa ajuda a compor o tipo e a revelar a personalidade das personagens. As pessoas simples, pastores e rústicos, usam vestes condizentes com sua situação. As peças alusivas ao seu vestuário são despretensiosas e utilitárias, mais próprias para cobrir e abrigar: camisa, saio, samarro, capote, capuz, capelo, chapeirão. Para as mulheres, além de camisa e saia, há fraldilha, mantilha, enxaravia, coifa e, para enfeitar, anéis e sortijas de material barato.

Embora dando importância à roupa como abrigo, os pastores também valorizam a aparência. Suas ambições, entretanto, têm vôo curto. Cismena[33], pastora menina, pretende ganhar uma coifinha lavrada e, procurando seus cabritinhos malhados e dois porquinhos, de bom grado Dera eu ora o meu orelo[34], / e os meus alfinetinhos / e achasse os meus porquinhos. Juan Guijarro[35] pensa impressionar a zagala com sua roupa nova, embora sem luxo, do mesmo modo que Joane[36] quer que Catarina veja seu saio pardo. O mesmo Juan Guijarro lastima-se da insensatez de deixar-se levar pelo desejo de agradar a amada, não só com presentes (uma saia verde escuro e uma sortija), mas também pela aparência, quando deveria ter guardado dinheiro para comprar samarro para o inverno. De certa forma, pode dizer-se que essas pessoas têm consciência de sua condição social e não ambicionam ir muito além do que são. Isso não impede, entretanto, que os sonhos sentimentais de Filipa[37] se voltem para cortesãos de pantufos de veludo e viola na mão. Já Gonçalo, no mesmo auto, repelindo a possibilidade de casar-se com Catarina Meigengra, moça de algumas posses, diz que Não vem a Meigengra a conto, / que é descuidada perdida; / traz a saia descosida / e não lhe dará um ponto.

Há um lado negativo na valorização da aparência que não é comum entre os personagens simples, mas observa-se entre burgueses, escudeiros e até fidalgos de alguma renda. Sua principal característica é a ambição de parecer o que não se é, nem tem condições de ser. Os moços de esporas[38] dos escudeiros de Quem tem farelos? fazem comentários sobre seus amos e Apariço diz que o seu, Aires Rosado, Vem alta noite de andar, / de dia sempre encerrado: / porque anda mal roupado, / não ousa de se mostrar[39].

O desejo de aparecer extrapola os limites dos grupos sociais e leva os personagens a perder sua identidade. Bom exemplo é o Frei Paço, ridículo pelo próprio nome, que se apresenta como um misto de religioso, mundano e cavaleiro com seu hábito e capelo, e gorra de veludo, e luvas, e espada dourada, fazendo meneios de muito doce cortesão[40].

Nobres e ricos, e também os escudeiros, parasitas ambiciosos que mal têm o que comer, usam calças, calções, gibão, capa, manto, sombreiro, barrete, gorra. Frei Paço traz luvas e na Comédia de Rubena, as lavrandeiras de Cismena apresentam-lhe um penteador ricamente franzido, destinado ao Bispo de Funchal e fazem lavores em um suadeiro (lenço) do Embaixador, para que veja o Imperador / que as cousas de Portugal / todas têm grande valor. O Doutor Justiça Maior (Floresta de Enganos) usa beca, loba, peças que se ligam a vestes talares. Essa última, segundo Moraes, podia ser traje escolástico, composto de uma túnica sem mangas e de uma capa talar (cf. verbete “loba”).

No texto, a beca é de veludo e a loba, de “contray frisado”, tecido fino e trabalhado. O Doutor ainda se apresenta de luvas e sombreiro, como homem elegante que é. Constam do traje de frades e clérigos hábito, burel, barrete, cordão, capelo e, ainda que não se trate de veste, a coroa, tipo de corte de cabelo, é o termo mais solicitado como identificador de religiosos. Na Barca do Inferno, o frade apela para a autoridade de sua coroa – Mantenha Deus esta coroa![41]– como anteriormente já fizera com o hábito – e este hábito não me vale?[42] Na Frágua de Amor, coroa vale por condição religiosa: um frade diz que de mero malhardeiro / me fui fazer de coroa.

Não é só com relação ao traje que as pessoas se deixam levar pela aparência e pela ambição. Nos Almocreves, Gil Vicente apresenta um fidalgo de muito pouca renda, mas que usava muito estado e tinha capelão seu e ourives seu, e outros oficiais, aos quais nunca pagava[43]. O capelão, segundo o texto, esfarrapado, reclama pagamento e alega outras funções que vem exercendo, inclusive a de limpar sapatos, há três anos. O fidalgo tenta engabelá-lo com promessas de conseguir sua entrada para o serviço do paço: foi sempre a vontade minha / dar-vos a el-Rei ou à Rainha[44].O mesmo tipo de discurso enganador é dirigido ao ourives e ao próprio pajem, um “ratinho” a quem foram dadas atribuições que não estava capacitado a ter.

O Almocreve Pero Vaz dá ao pajem notícias de seus pais: ele, cansado e suado, cavando, e a mãe, mal roupada (mal vestida), levava o gado. Mantém-se entre os dois um diálogo em que, do lado do pajem, nota-se ambição desmedida e fantasia. Ele, um ratinho filho de pais miseráveis, na sua megalomania, considera-se já na corte e estende sua fantasia aos demais de sua condição: Assi que até os pastores / hão de ser d’el-Rei samica! Por isso esta terra é rica / de pão, porque os lavradores / fazem os filhos paçãos. E completa: Cedo não há d’haver vilãos; / todos d’el-Rei, todos del-Rei[45].A resposta do almocreve Pero Vaz está impregnada de realismo e senso comum[46].