Estudos Camonianos

Por mares tantas vezes navegados

 

Apercebida de bússola e astrolábio, com vento contrário ou de feição, em tempos que já se perdem na distância, lancei-me pela primeira vez à leitura integral do texto épico de Luís de Camões. Era este para mim um mar desconhecido, ao qual me aventurava sem saber nem experiência, mal podendo manejar os instrumentos, mas com o arrojo e a paixão dos vinte anos.

Como as naus dos descobridores, o meu barco tinha uma quilha ousada, que abria caminho entre "as ondas encurvadas" (II, 20), e também eu descobria os perigos e a insuspeitada beleza que se me oferecia; também eu pude ver que, no "meu" mar, os "medos / Tinham coral, e praias, e arvoredos!" Fascinada, quis recomeçar. E, desde então, recomeço e torno a recomeçar, presa nas malhas do texto - ou nas ondas do mar?

Muitas vezes naveguei, muitas vezes pensei naufragar e me salvei, muitas vezes visitei os mesmos lugares. A cada fim de viagem pensava: "Não me resta mais nada a descobrir". Mas lá ia outra vez e, nas rotas tantas vezes percorridas, o novo - a meus olhos, digo eu; outros o terão visto, mas não me chegou o seu testemunho. Vejo-o ainda com os olhos virginais com que, segundo Michel Ângelo, Adão olhou a Deus pela primeira vez. Assim foi na minha última viagem, a que acabo de fazer.

Chegara Vasco da Gama a Melinde. Passara a noite. Amanhecia. E o Poeta sintetiza a vagarosa passagem da noite ao dia, mais uma vez recorrendo à figura mitológica da Aurora - mãe de Mémnon - mas acrescentando a subtil notação de um fenômeno da natureza sempre ligado a esta hora: o orvalho.

E já a mãi de Ménon a luz trazendo

Ao sono longo punha certo atalho;

Iam-se as sombras lentas desfazendo

Sobre as flores da terra em frio orvalho,

Quando o Rei Milindano se embarcava

A ver a frota que no mar estava. (II, 92)

Eu jamais notara esta rica e inusitada imagem à qual me apetece chamar sinestesia dinâmica, pois que parte da impressão visual da sombra para esta outra, táctil, do frio e da umidade. Além disso, encerra a expressiva mudança da idéia de morte - sempre ligada a noite, privação de luz, longo sono - à idéia de vida, reafirmada pelo orvalho que revitaliza as flores ao recomeçar o movimento da manhã. É como que a absorção das sombras noturnas pelo orvalho matutino, ou, na circularidade ininterrupta dos dias, e nesta hora positiva do amanhecer, a absorção da noite pelo dia. Mas vale a pena repetir os dois versos essenciais:

Iam-se as sombras lentas desfazendo

Sobre as flores da terra em frio orvalho [...]

Assim começa o longo dia em que Vasco da Gama, acedendo ao pedido do rei de Melinde, curioso de saber do "clima", "região do mundo", "antiga geração" (II, 109) dos portugueses, passa a responder-lhe.

O relato estende-se pelo dia todo; é quase noite quando se cala o Gama. O narrador onisciente retoma a palavra:

Da boca do facundo Capitão

Pendendo estavam todos embibidos,

Quando deu fim à longa narração

Dos altos feitos, grandes e subidos. (V, 90)

Muitos adjetivos usa o narrador para qualificar o comandante da esquadra. Alguns são puramente valorativos, formando, com o substantivo, um sintagma-clichê: "ilustre Gama" (I, 12; III, 1), "forte Capitão" (I, 44; II, 56; V, 97), "Capitão sublime" (I, 49), "valeroso Capitão" (I, 64; II, 2; II, 109), "nobre Gama" (II, 16; VII, 44), "Capitão ilustre" (II, 60; IX, 85), "forte Gama" (II, 107), "sublime Gama" (III, 3), "grande Capitão" (VIII, 60) "claro Gama" (X, 3); outros o qualificam em determinada situação ou atitude: "sábio Capitão" (IV, 36; IX, 9), "discreto Gama" (VIII, 86), "cauto Gama" (IX, 7), "felice Gama" (X, 75) e, na estrofe acima, "facundo Capitão": depois do longo discurso proferido (2668 versos), cabe-lhe bem este epíteto.

Pela primeira vez, no entanto, notei que este adjetivo, utilizado seis vezes no poema, só duas se aplica a portugueses: esta, ao Gama, e a outra, em forma negativa ("não facundo": IV, 14), a Nun'Álvares Pereira. Nas outras quatro, é de Ulisses que se fala (II, 45; III, 57; V, 86; VIII, 5). Aqui Camões limitou-se a manter, para o herói grego, o epíteto que o caracterizou desde Homero. Estabeleceria o adjetivo um parentesco entre os dois personagens épicos, ambos navegantes, português, um, outro, o lendário fundador de Lisboa? A pergunta que me fiz ficou sem resposta até vir-me à memória o episódio de Veloso, passagem sui generis no poema pelo seu tom divertido, bem humorado. Fernão Veloso, ainda não conhecido do leitor, aí surge, "no braço confiado" e "arrogante" (V, 31). Vendo-se perseguido, foge, como é natural, mas, passado o perigo, volta à fanfarronice inicial. É Vasco da Gama quem narra: dele ouvimos que, ladeira abaixo, o atrevido navegante "mais apressado do que fora, vinha" (V, 31). Por ele também sabemos que o Gama foi em seu socorro (é o único momento em que o poema focaliza o risco individual de um marinheiro e nele a intervenção pronta e corajosa do capitão):

Da espessa nuvem setas e pedradas

Chovem sobre nós outros sem medida;

E não foram ao vento em vão deitadas,

Que esta perna trouxe eu dali ferida [...] (V, 33)

Na perna ferida deve ter ficado a cicatriz que é apontada pelo dêitico, mas não mostrada in natura, pois não o permitiam os ricos trajes e a dignidade do momento. Uma cicatriz na perna, que o marcou fisicamente (como outrora a Ulisses) e o dignificou perante os companheiros, e já agora perante os melindanos, por ter sido recebida na defesa de um de seus comandados. Uma ferida mais honrosa que a do navegador grego, de quem devem cessar "as navegações grandes" (I, 3) que fez.

Seria este o momento de dar resposta à pergunta que eu deixara no ar? Talvez sim. Uma resposta não taxativa, mas aberta à discussão; tão aberta como a obra de Camões, "scriptible", como propõe Barthes, onde me permito escrever a minha leitura de que Vasco da Gama é explicitamente engrandecido desde a Proposição, onde seu feito deve fazer esquecer os "do sábio grego e do troiano" (I, 3) (e lembro que também se diz, nos cantos IV e IX, o "sábio Capitão"), e implicitamente na facúndia que lhe é atribuída, e na cicatriz que trouxe do breve combate com os cafres.

A essa releitura ocorreram-me alguns juízos negativos que se têm feito sobre os heróis d'Os Lusíadas, sobretudo os de António José Saraiva, mestre que muito respeito, mas de quem eventualmente divirjo (ou divergi, pois não conheço sua posição atual a este respeito, estando a citar obra sua de 1960). Diz ele, reiterando opinião expressa anos antes:

[...] tais protagonistas [os navegantes portugueses] não existem, uma vez que não passam de bonifrates [...]. Realmente, não vemos o Gama arriscar-se e agir, nem molhar-se na água, nem desenredar-se de intrigas, nem manchar-se de sangue [...] o Gama de Camões nem figura chega a ser, de apagado e incaracterístico que é. Move-se hieraticamente, como se seguisse um rígido protocolo [...]. [1] (Grifos meus)

É pouco apropriado, a meu ver, o confronto entre Vasco da Gama e Enéias, menos ainda entre o português e o grego. Os protagonistas das epopéias antigas são senhores de si. Acima deles, só as divindades que os defendem ou atacam. Vasco da Gama é um funcionário do rei, incumbido por este de uma missão: "levar a seu Rei um sinal certo / Do mundo que deixava descoberto" (VIII, 56). Sua virtude maior deverá ser, porventura, a obediência. O rei lhe fizera uma exigência prudente: "lhe manda que não saia / Deixando a frota, em nenhum porto ou praia." (II, 83) Esta virtude dos portugueses, a segunda que lhe é assegurada - a primeira fora a bravura de enfrentar os mares e ali chegar - impressiona o rei da terra, que

[...] o peito obediente

Dos Portugueses na alma imaginando,

Tinha por valor grande e mui subido

O do Rei que é tão longe obedecido." (II, 85).

Só desembarcará em Calecute. A única infração, o Capitão cometeu-a para salvar Veloso.

Eu diria que, tal como a obediência marca Vasco da Gama homem público, a sensibilidade caracteriza-o como indivíduo, humaníssimo em suas reações emotivas, que não se acanha de dizer que chorou e pode voltar a chorar. É o momento duro da despedida. Relatando-o ao rei de Melinde, Vasco da Gama recupera a dor da partida e mal se pode conter:

Certifico-te, ó Rei, que se contemplo

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio

Que apenas nos meus olhos ponho o freio. (IV, 87)

Já a bordo, sente que a emoção se apossa de todos; mais ainda: teme que, se ali se detiverem mais tempo, a ver as mulheres - mães e esposas - a lamentar-se, possam desistir da empresa, e determina, rápida, a partida:

Nós outros sem a vista alevantarmos

Nem a Mãe, nem a Esposa, nesse estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta ou fica, mais magoa. (IV)

Sofre o difícil apartamento das gentes e mais o da terra que os olhos querem reter:

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nele os olhos se alongavam;

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E já despois que toda se escondeo,

Não vimos mais enfim que mar e ceo. (V, 3)

Logo que começa a ter contato com os povos desconhecidos, mostra-se Vasco da Gama como um homem de extrema boa fé: "O Capitão que não caía em nada / Do enganoso ardil que o Mouro urdia" (I, 96); "O Capitão que em tudo o Mouro cria" (I, 102); "[...] o Capitão seguramente / Se fia da infiel e falsa gente" (II, 6). Será esta uma qualidade louvável num Capitão? Não seria preferível uma certa malícia para enfrentar desconhecidos? Talvez. Mas o que me parece indiscutível é a deliberação do Poeta, transferida a seu principal narrador, Vasco da Gama, de dar dos navegantes um retrato nunca desmentido de homens sinceros e leais, que julgam os outros por si mesmos, incapazes de suspeita. Já escrevi algures [2] que no capitão e seus marinheiros o ser e o parecer são sempre coincidentes, o que os opõe frontalmente aos nativos que, com honrosas exceções, são o oposto do que parecem. Se, do ponto de vista da estratégia da conquista, ser irremediavelmente crédulo é uma fraqueza, aos olhos de uma moral rigorosa é prova de limpeza de coração. Por serem retos e de puras intenções, os navegantes se livram de todas as ciladas que lhes arma Baco, deus não de duas, mas de várias faces.

Com essa mesma lealdade, o Gama reconhece a estranheza do que narra. "E tudo sem mentir, puras verdades". (V, 23) e termina o seu longo discurso, afirmando: "A verdade que eu conto, nua e pura, / Vence toda grandíloca escritura", (V, 89). Isto diz ele ao rei de Melinde.

Consciente de que, como um homem de seu tempo, se valoriza pela experiência que tem - e, no seu caso, experiência, sobretudo, do novo -, repete, enfático, que viu: "Os casos vi", "Vi claramente visto, o lume vivo", "Eu o vi, certamente (e não presumo / Que a vista me enganava)" (V, 17;18;19. (grifos meus)

A objetividade de experto não lhe tira, porém, a subjetividade de reflexivo. A irrupção do escorbuto leva-o a ponderar que "Co esta condição pesada e dura / Nacemos: o pesar terá firmeza, / Mas o bem logo muda a natureza" (V, 80); a morte de muitos fá-lo concluir: "Quão fácil é ao corpo a sepultura!" (V, 83)

Haveria mais traços a levantar na personagem Vasco da Gama; com estes, porém, parece-me que se podem retomar os pontos principais levantados por Saraiva, e negá-los ou minimizá-los. Vimos o capitão agindo, manchando-se de sangue (uma só vez, é verdade, mas, como Stephen Reckert, em relação a outras passagens, julgo que aqui também podemos ver uma mise en abyme). Vimo-lo, não "apagado e incaracterístico", mas marcado pela sinceridade, honestidade, sensibilidade, pela obsessão da verdade, pela obediência ao rei. "Não é Enéias nem Odisseu, não é um herói singular: é o chefe, o Capitão, um dos 'barões assinalados'" [3] - apoia-me Helder Macedo num belo texto que trunco pela premência do tempo, mas que gostaria de glosar. Preciso dos minutos que me restam para falar de mulheres, das mulheres n'Os Lusíadas. [4]

Não da beleza física (embora não possa descartá-la) das deusas e mortais irei falar, mas de seu discurso persuasivo, cuja força só pode ser igualada, no poema, à das falas de Baco para convencer homens e deuses.

De três desses discursos femininos muito se tem escrito e falado: o de Vênus a Júpiter, expresso em muitas linguagens: a corporal, a gestual, a falada, carregadas todas de erotismo; o de Maria a Afonso IV, com elementos semelhantes, mas em clima filial e paternal - ambos levando-as à consecução do objetivo; o discurso triste e corajoso de Inês ao mesmo Afonso IV que se deixa abalar, mas acaba por ceder aos conselheiros. Foi, porém, nos discursos das ninfas aos ventos desencadeados por Éolo no episódio da tempestade ordenada por Netuno, que me pareceu ver algo que não vira ainda.

Industriadas por Vênus, elas engrinaldam os cabelos e se apresentam mais belas que nunca. Só de vê-las (comunicação visual) eles se sentem atados, de pés e mãos, aos cabelos de ouro. Duas delas - Oritia e Galatéia - falam, usando de recursos irresistíveis. Aquela diz a Bóreas que duvida do seu amor

Que brandura é de amor mais certo arreio

E não convém furor a firme amante.

Se já não pões a tanta insânia freio,

Não esperes de mi daqui em diante

Que possa mais amar-te, mas temer-te,

Que amor contigo em medo se converte. (VI, 89)

O mesmo diz Galatéia a Noto, certa de conseguir vencê-lo. A reação deste - e deduz-se que também de Bóreas, já que foram os dois interpelados - é "De contente de ver que a dama o manda, / Pouco cuida que faz, se logo abranda" (VI, 90). Sem que lhes ouçamos a voz, sabemos que "as outras amansavam / Subitamente os outros amadores" (VI, 91).  E, como se não bastasse dizê-lo uma vez, o narrador repete o verbo: "Amansadas as iras e os furores"(VI). Elas querem amor com brandura e não com furor, querem amar e não temer; por isso, mandam e amansam. São elas as dominadoras, eles, os dominados. E tudo por amor.

Esgota-se o tempo deste relato da minha última (até agora) travessia do magno texto camoniano. E desembarco sob o signo do amor que lhe imprime marca indelével, desde o "amor da pátria não movido / De prêmio vil, mas alto e quasi eterno" (I, 10) - o amor do Poeta por seu Portugal -, passando pelo amor das mães e esposas, o paterno e o fraterno, o amor puro e o baixo amor, o ardente, o nefando, o indigno, louvados aqueles, condenados estes, até chegar ao amor universal, aquele que quer Cupido restaurar no "mundo revelde"  (IX, 25), emendando

Erros grandes que há dias nele estão

Amando cousas que nos foram dadas,

Não pera ser amadas, mas usadas. (IX, 25)

Patrona da viagem, Vênus age em causa própria, pois sabe que há de ser celebrada "Onde a gente belígera se estende" (I, 34). O poema de Camões faz parte desta celebração, que rompe a urdidura épica para afirmar-se em reflexões como esta, sobre o amor: "Milhor é exp'rimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode exp'rimentá-lo" (IX, 83). No primeiro dos sonetos ele dissera: "segund'o amor tiverdes, / Tereis o entendimento de meus versos."

Os Lusíadas, que cantam "os barões assinalados" (I, 1), cantam também aquele menino alado, de aparência frágil, mas tão poderoso que "Os Deoses faz decer ao vil terreno, / E os humanos subir ao ceo sereno" (IX, 20). Reinando, quase absoluto, nas Rimas, o deus "inico" (IX, 43) e sua mãe fazem sentir sua presença ao longo da epopéia, enriquecendo-a e imprimindo-lhe a marca que a torna, entre as melhores, assinalada.

 

 

MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Moraes, 1980, p. 34

SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 149.

 



[1] SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 149.

[2] V. ensaio "A estrutura d'Os Lusíadas".

[3] MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Moraes, 1980, p. 34

[4] Não se esqueça que este texto provém de uma participação em mesa-redonda no XIII Congresso da APUBLP.