Estudos Camonianos

Ourique, Salado e Aljubarrota

 

Nua mão sempre a espada e noutra a pena

(Lus., VII, 79, v. 8)

 

Assim, poeta e soldado, Camões se apresenta em seu poema, como já apresentara a César, historiador e guerreiro: "nua mão a pena, e noutra a lança" (V, 96, v. 3). O aedo que canta os feitos de Portugal entende dos dois ofícios e a ambos valoriza. Sabe da importância do cantado e da importância do canto. N'Os Lusíadas, o cantado é o feito heróico e muito mais; e o feito heróico é mais que a batalha corpo a corpo, lança contra lança, espada contra espada: é também a luta contra as ondas e as correntes, o vento e as calmarias, a peste e a fome, o medo ao desconhecido. Mas é apenas de batalhas que queremos falar e não de todas as que o poema contém, senão das três mais notáveis religiosa e politicamente: Ourique, Salado e Aljubarrota, a primeira e a terceira decisivas na história de Portugal.

A narração da batalha de Ourique (III, 42-54) é precedida pela brevíssima da de S. Mamede (III, 30-4), em que D. Afonso Henriques se lança contra sua mãe e o amante desta, o conde de Trava, que lhe roubavam a terra. Justificada embora, a cólera do filho é castigada ("Tanta veneração aos pais se deve" - III, 33 - diz o Poeta) e a figura que mais se destaca, pelo heroísmo sereno e altruísmo quase absurdo, é Egas Muniz.

Ourique é o primeiro passo na dilatação da fé e do império (I, 2, vv. 2-3); o inimigo é o mouro, contra quem é louvável pelejar. Não importa que sejam eles os donos da terra de que há muito se apossaram: é preciso vencê-los para dar início à arrancada rumo ao sul, que chegará ao Algarve e continuará pelo mar afora.

A batalha é duvidosa: um rei português contra cinco reis mouros, cem infiéis para um cristão. Súbito, o milagre: o Cristo crucificado mostra-se a todos; os ânimos se acendem, é a vitória portuguesa.

No Salado, o inimigo é o mesmo, mas os cristãos são portugueses e castelhanos. Afonso XI, de Castela, temendo o número de mouros que entravam por suas terras, a ameaçar pela segunda vez o "povo Hispano" (III, 101, v. 3), pede auxilio a seu sogro, Afonso IV, de Portugal, por intermédio da esposa, "a fermosíssima Maria" (III, 102, v. 1). Juntos lutam os dois Afonsos contra a multidão inúmera dos mouros atacantes e a desbaratam.

À batalha de Ourique, o Poeta consagra treze estrofes; à do Salado - incluída a intercessão de Maria -, dezessete (III, 101-17); a de Aljubarrota se estende por quarenta estrofes (IV, 6-45), das quais as dezesseis últimas contêm a descrição da batalha propriamente dita. Desta vez, o problema é puramente político: de um lado e de outro, os combatentes são cristãos.

Analisando estes três passos do poema e relacionando-os entre si, a fim de levantar constantes e variantes presentes em sua caracterização, tentaremos chegar a algumas conclusões sobre a visão que tem o Poeta do feito épico por excelência, representado pelo conjunto formado pelas três batalhas (O + S + A) [1] . Neste conjunto podemos ter dois subconjuntos: o das batalhas contra os mouros (O + S) e o da batalha entre cristãos (A), se o critério distintivo for fundado no aspecto religioso, ou dois outros: (O) e (S + A), se se levar em conta a liceidade das lutas. A primeira divisão dispensa justificativas; a segunda talvez não, pois em nenhum momento Camões escreve que a batalha de Ourique, em que se fundamenta a primeira dinastia - como a segunda se fundamentará em Aljubarrota -, foi menos lícita que as outras. É nos silêncios do discurso que a distinção se estabelece: no encontro do Salado, os cristãos reagem a um ataque:

Mas porém, quando as gentes Mauritanas

A possuir o Hespérico terreno

Entraram pelas terras de Castela,

Foi o soberbo Afonso a socorrê-la (III, 99, vv. 5-8),

defendendo o que é seu, contra aqueles que "À nobre terra alhea chamam sua" (III, 110, v. 8). Em Aljubarrota, os portugueses vão defender o direito de sê-lo, contra o estrangeiro invasor, movido por razões bastante duvidosas:

Por isso Lianor, que o sentimento

Do morto Conde ao mundo descobrio,

Faz contra Lusitânia vir Castela,

Dizendo ser sua filha herdeira dela (IV, 6, vv. 5-8).

Como acima, faz o Poeta ressaltar que a "Uns leva a defensão da própria terra" (IV, 30, v. 3) enquanto que os outros "a tanto desejam sendo alhea" (IV, 30, v. 8).

À batalha de Ourique, nada a justifica: "o Mouro que as terras habitava / D'além do claro Tejo deleitoso" (III, 42, vv. 3-4) nelas está, não vem tomar a terra alheia. Este adjetivo, que agora só poderia aplicar-se aos portugueses, desaparece do texto e é a sua ausência que se deve ler.

Levantadas essas variantes entre os dois subconjuntos, passemos aos elementos comuns às três batalhas nas quais se realça, em primeiro lugar, a desproporção entre o número de combatentes: em Ourique, o exército de Afonso Henriques é "em força e gente tão pequeno" (III, 42, v. 8), "Que pera um só cem Mouros haveria" (III, 43, v. 4). Não lhe parecendo bastante dizê-lo, Camões o repete logo adiante: "pera um cavaleiro houvesse cento" (III, 43, v. 8), mesmo porque o rei português é um só, enquanto "Cinco Reis Mouros são os inimigos" (III, 44, v. 1). No Salado, o inimigo, apresentado como "grande multidão", "Pera quem são pequenos campo e monte" (III, 109, vv. 3 e 4), quase ri "Do poder dos Cristãos fraco e pequeno" (III, 110, v. 2); em Aljubarrota, combaterão forças "De várias regiões e várias terras" (IV, 7, v. 8), reunidas por João de Castela contra João de Portugal que "Cos poucos de seu Reino se aparelha" (IV, 12, v. 4).

O segundo elemento é a valorização do inimigo enquanto guerreiro. Os mouros de Ourique são "exp'rimentados nos perigos" (III, 44, v. 3); seu "exército potente" (III, 46, v. 5), mesmo tomado de surpresa, "Não foge, mas espera confiado" (III, 50, v. 3); no Salado, é o seu poder "grande e horrendo" (III, 115, v. 5), "excessivo" (III, 100, v. 7), que se salienta. Os inimigos, em Aljubarrota, não são apenas muitos, mas vários: os de Leão, que "Não estimam das armas o perigo" e já com os mouros foram "nas armas excelente[s]" (IV, 8, vv. 5 e 8); os Andaluzes, valentes desde muito (IV, 9, v. 1); os Galegos, "duro bando" a quem "não tolhe o medo" (IV, 10, vv. 6 e 5); a gente biscainha, "que as injúrias / Muito mal dos estranhos compadece" (IV, 11, vv. 3-4). As ações de seus chefes, quando os vemos de perto, são descritas superlativamente: o mestre de Santiago peleja "fortissimamente" (IV, 40, v. 4), o de Calatrava "Morre também, fazendo grande estrago" (IV, 40, v. 5).

Constante ainda é a violência da batalha, retratado o seu ímpeto na aceleração rítmica dos versos produzida, em Ourique e Aljubarrota, sobretudo pela enumeração de verbos de ação - ação bélica - e outros sintagmas progressivos nela implicados. É em Ourique que a violência atinge o máximo, como se pode ver:

Ali se vêm encontros temerosos

Pera se desfazer ua alta serra,

E os animais correndo furiosos

Que Neptuno amostrou ferindo a terra,

Golpes se dão medonhos e forçosos;

Por toda a parte andava acesa a guerra;

Mas o de Luso arnês, couraça e malha

Rompe, corta, desfaz, abola e talha.

 

Cabeças pelo campo vão saltando,

Braços, pernas, sem dono e sem sentido,

E d'outros as entranhas palpitando,

Pálida a cor, o gesto amortecido. (III, 51 e 52, vv. 1-4).

o momento climático de Aljubarrota está nestes:

Derriba e encontra, e a terra em fim semea

Dos que a tanto desejam sendo alhea.

 

Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas e vários tiros voam;

Debaxo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam;

Espedaçam-se as lanças, e as freqüentes

Quedas co as duras armas tudo atroam;

Recrecem os imigos sobre a pouca

Gente do fero Nuno, que os apouca. (IV, 30, vv. 7-8 e 31)

Menos expressivamente reproduzido é o recontro no Salado, ao qual faltam os processos que apontamos nos outros; no entanto, a breve descrição do ápice da batalha é vivamente valorizada pela hipérbole que a termina:

Eis as lanças e espadas retiniam

Por cima dos arneses - bravo estrago! -

Chamam, segundo as leis que ali seguiam,

Uns Mafamede, e os outros Sanctiago.

Os feridos com grita o Ceo feriam,

Fazendo de seu sangue bruto lago,

Onde outros meios mortos se afogavam,

Quando do ferro as vidas escapavam. (III, 113)

Hipérbole semelhante se encontra nos últimos versos da estrofe 52 do canto III, cuja citação acima truncamos, para completá-la agora:

Já perde o campo o exército nefando,

Correm rios do sangue desparzido,

Com que também do campo a cor se perde

Tornado Carmesi de branco e verde. (III, 52, vv. 5-8)

Tais excessos, não os vemos em Aljubarrota, o que nos levaria a retomar os subconjuntos (O + S) e (A), considerando que se caracteriza diversamente cada um deles no que diz respeito ao sangue derramado: no segundo, há apenas menção ao sangue de alguns, com que Nuno tinge a verdura (IV, 35, vv. 5-6); no primeiro, é rio ou lago em que se banha a terra ou a gente, como um rito sacrificial de purificação, que aqui se explicaria.

Dos elementos comuns ao conjunto total passamos, quase insensivelmente, aos não comuns, através do processo hiperbólico presente em apenas um dos dois subconjuntos (O + S) e (A), entre os quais podemos estabelecer outras distinções. Em (O + S + A), logo de início o Poeta ressalta a desproporção dos combatentes; em (O + S), logo a seguir, ele afirma a confiança que em Deus depositam os cristãos: Afonso Henriques entra na luta "Em nenhua outra cousa confiado / Senão no sumo Deos que o Ceo regia" (III, 43, vv. 1-2); os dois Afonsos estão certos de "Que co braço dos seus Cristo peleja" (III, 109, v. 8) porque "mais pode a Fé que a força humana" (III, 111, v. 8) e "O poder dos Cristãos" "está ajudado da alta fortaleza / A quem o Inferno horrífico se rende" (III, 112, vv. 2-4). É do Alto que lhes vem a vitória, nem que para tal seja preciso que se realize um milagre. Os mouros também confiam no Céu: chamam por Mafamede (III, 113, v. 4) ou invocam a ajuda do Alcorão (III, 50, v. 8), mas o Deus invicto não é o seu e eles não têm de que dar graças, como Afonso Henriques, que perpetua a intervenção divina no escudo português, explicado por Camões com minúcia e concisão surpreendentes (III, 53-4). A preocupação do Poeta em valorizar, pelo confronto com batalhas púnicas ou romanas, a vitória do Salado, talvez o tenha levado a omitir a expressão do reconhecimento a Deus. Não assim em Aljubarrota, onde vemos que D. João "Com ofertas despois e romarias / As graças deu a quem lhe deu vitória" (IV, 45, vv. 3-4). Como vemos, os dois movimentos de alma para Deus - a proclamação da fé e a ação de graças - só em Ourique se acham expressados; no Salado falta o segundo, em Aljubarrota, o primeiro. Para a omissão do reconhecimento no Salado, temos a razão que nos parece plausível, acrescentando que, das três batalhas, é a menos extensa (o que a torna maior é a parte introdutória) e, a nosso ver, a menos vivamente pintada; as suas duas últimas estrofes são, realmente, uma queda. O que parece fora de dúvida é que ficaria menos bem a afirmação da confiança na proteção divina a um dos combatentes, quando ambos criam no mesmo Deus - é o caso de Aljubarrota. São suas forças humanas que estão em jogo, com elas os dois se enfrentam, o que não impede que, obtida a vitória, o rei agradeça a graça recebida.

Ainda uma vez - e não a última - retomaremos os dois subconjuntos (O + S) e (A), diferenciados pela presença no primeiro e ausência no segundo de palavras ou frases depreciativas do inimigo enquanto homem de outra religião. Como atrás notamos, em todo o conjunto se louvava o inimigo enquanto guerreiro, pondo em realce o valor dos portugueses e de seus aliados; o desdém se manifesta apenas quando este é o "infiel" (III, 45, v. 7), o "perro" (III, 48, v. 5), "o exército nefando" (III, 52, v. 5).

Se quiséssemos esquematizar as três batalhas, nelas encontraríamos: 1. preparação; 2. combate; 3. vitória dos portugueses (sós ou acompanhados). Entretanto, as proporções em que tais partes se apresentam variam de uma para outra. Na de Ourique, a preparação se restringe às cinco primeiras estrofes, embora pudéssemos estendê-la, para trás, às que narram a batalha de S. Mamede, uma espécie de pré-preparação como seria, na do Salado, a entrevista de Maria e Afonso IV (III, 102-6), e em Aljubarrota a concentração dos castelhanos (IV, 7-11) e a dos portugueses (IV, 12-25). É nesta última que o Poeta mais se alonga, mais nos aproximando do campo de batalha, a fim de que melhor vejamos e ouçamos o que lá se passa, não apenas os rumores da batalha narrados em estilo indireto, mas a própria voz dos combatentes, reproduzida em estilo direto. Se em Ourique tínhamos ouvido a voz do rei a gritar ao Cristo: "Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, / E não a mi, que creio o que podeis" (III, 45, vv. 7-8) e a voz do povo a sagrar rei seu infante: "real, real, / Por Afonso, alto Rei de Portugal" (III, 46, vv. 7-8), em Aljubarrota ouvimos uma longa fala de Nun'Álvares (IV, 15-9) aos que hesitam em lutar pelo rei novo, fala em cuja eloqüência Camões pôs todos os recursos da persuasão: primeiro, o pasmo: "Como!" repetido três vezes à entrada de frases que se vão alargando (2 versos, 6 versos, 8 versos) e terminam em interrogação, a exprimir a dúvida:

Como! Da gente ilustre Portuguesa

Há de haver quem refuse o pátrio Marte?

Como! Desta província, que princesa

Foi das gentes na guerra em toda parte,

Há de sair quem negue ter defesa,

Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte

De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sojeito?

 

Como! Não sois vós inda os descendentes

Daqueles que debaixo da bandeira

Do grande Henriques, feros e valentes,

Vencestes esta gente tão guerreira,

Quando tantas bandeiras, tantas gentes

Poseram em fugida, de maneira

Que sete ilustres Condes lhe trouxeram

Presos, afora a presa que tiveram? (IV, 15-6)

depois, o louvor do rei; por fim, a convicção de Nuno - teatralmente afirmada, até no arrancar de meia espada - de que, sozinho, será capaz de defender "A terra nunca de outrem sojugada" (IV, 19, v. 4).

A reação não tarda: a voz do chefe afasta "o temor frio importuno / Que gelados lhe tinha os corações" (IV, 21, vv. 3-4) e ei-los a gritar: "Viva o famoso Rei que nos liberta!" (IV, 21, v. 8).

Desta batalha tão miudamente descrita, sabemos até a formação: à frente vai Nuno, com sua famosa ala dos Namorados; à direita, Mem Rodrigues de Vasconcelos; à esquerda, Antão Vasques de Almada; na retaguarda, D. João.

Em Ourique, como em Aljubarrota, estão presentes as mulheres; umas, virilmente acompanhando as tropas:

Seguem guerreiras Damas seus amigos,

Imitando a fermosa e forte Dama

De quem tanto os Troianos se ajudaram,

E as que o Termodonte já gostaram (III, 44, v. 5-8);

outras, mais femininas:

Estavam pelos muros, temerosas

E de um alegre medo quasi frias,

Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,

Prometendo jejuns e romarias (IV, 26, vv. 1-4).

Na parte central, o combate propriamente dito; já assinalamos acima a movimentação, os ruídos e a violência de ambos os lados. Só em Aljubarrota, porém, é que Camões de novo nos aproxima ao ponto de vermos não só o(s) rei(s) e a massa dos combatentes, mas alguns dos que mais bravamente lutam e até os traidores mais notáveis: lançam-se os Pereiras contra Nuno, "Caso feo e cruel" (IV, 32, v. 2), e o Poeta (pela voz de Vasco da Gama, que é o narrador de toda a história de Portugal) os denuncia, não sem abrandar a acusação pelo confronto com nobres romanos que fizeram o mesmo: Sertório, Coriolano, Catilina, dizendo-lhes: "que também dos Portugueses / Alguns tredores houve alguas vezes" (IV, 33, v. 7-8). Vemos a resistência heróica de Nun'Álvares, o perigo que corre, a intervenção de D. João I - a que não falta o breve discurso, a contrapesar o de Nuno -; vemos, no mais cru da batalha, morrerem diante de nossos olhos o mestre de Santiago e o de Calatrava e os próprios Pereiras, "arrenegando o Ceo e os fados" (IV, 40, v. 8).

Acentuando, como estamos fazendo, a extensão e minúcia com que se apresenta a batalha de Aljubarrota, estamos, mesmo sem o explicitar, voltando a situá-la no subconjunto que ela constitui. Assim ainda a encararemos na parte final do relato, a que chamamos vitória. Em Ourique, só nos é dito que fica "Desbaratado e roto o Mauro Hispano" (III, 53, v. 3); no Salado, que

[...] o poder do Mouro grande e horrendo

Foi pelos fortes Reis desbaratado

Com tanta mortindade, que a memória

Nunca no mundo vio tão grão vitória (III, 115, vv. 5-8);

só dos adversários de Aljubarrota ficamos sabendo que "as costas dão" (IV, 42, v. 5); seu rei "desbaratado / Se vê e de seu propósito mudado" (IV, 42, vv. 7-8) e

O campo vai deixando ao vencedor,

Contente de lhe não deixar a vida;

Seguem-no os que ficaram, e o temor

Lhe dá não pés, mas asas à fugida (IV, 43, vv. 1-4)

e o Narrador2 ainda nos descobre o que encobrem "no profundo peito":

[...] a dor

Da morte, da fazenda despendida,

Da mágoa, da desonra e triste nojo

De ver outrem triunfar de seu despojo (IV, 43, vv. 5-8)

e mais: a execração da guerra por aqueles mesmos que a moveram e culpam "a sede dura"

Do peito cobiçoso e sitibundo

Que, por tomar o alheo, o miserando

Povo aventura às penas do profundo,

Deixando tantas mães, tantas esposas,

Sem filhos, sem maridos, desditosas. (IV, 44, vv. 4-8)

Do confronto surge a possibilidade de deduzir o grau de severidade do julgamento que o Poeta faz dos inimigos dos portugueses e a conclusão a que se chega é inesperada, uma vez que só o inimigo cristão nos é apresentado em atitude menos digna - embora justificada - a fugir, impelido pelo temor que lhe dá asas. Esta referência à rapidez com que partem, lançando o ridículo sobre os castelhanos, é sugerida a Camões pelo texto de Fernão Lopes, que visivelmente segue (Crónica de D. João I) e onde se sente que o velho cronista, tão próximo dos acontecimentos e a eles ligado como protegido do mestre de Avis, maldosamente se diverte em acentuar o desaire da fuga. Em Camões, essa depreciação dos castelhanos seria a contrapartida ao seu louvor enquanto guerreiros, estabelecendo assim o equilíbrio entre os inimigos mouros e castelhanos, apresentados em seus aspectos positivo e negativo.

Está ainda só em seu subconjunto unimembre a batalha de Aljubarrota, se nos reportarmos à figura de estilo que mais ressalta do poema - a comparação. Nos três textos que vimos analisando, encontram-se comparações que dividimos em dois tipos principais: descritivas e qualificativas, podendo estas subdividir-se, no nosso caso em especial, em: absolutas e relativas, isto é, aquelas em que a qualidade não implica em valorizar um adversário em relação ao outro, e as que marcam a diferença entre eles; estas só se encontram no subconjunto (O + S). Assim, em Ourique (III, 47-8) estabelece-se a homologia:

português = mouro

    cão      touro  

em que o primeiro membro encarece a agilidade que por fim vencerá a força, encarecida no segundo; no Salado, tem-se:

português = mouro

    Davi     Golias  (III, 111)

que reitera a anterior. Utilizando uma das propriedades das homologias e unindo as duas (pois que terão um membro comum), teremos:

português =   cão   =   Davi  ,

  mouro   touro   Golias

o que permite a leitura: o Português, com as qualidades do cão ou de Davi, opõe-se ao Mouro, que se assemelha ao touro e a Golias, ou, em conclusão: o Português vence pela ligeireza, pela sagacidade, pelo esforço, o inimigo superior em força e número. [2]

Em (A) só há comparações descritivas, também presentes em (S + O), em todo o conjunto, portanto. Em Ourique, Camões a utiliza para dar idéia da rapidez da reação moura ao inesperado ataque português:

pastores = mouro ;

  fogo     ataque

no Salado, para aproximar a entrevista de Maria e Afonso IV da de Vênus e Júpiter, tal como a narrou Vergílio - diz Camões - porque a que ele próprio narrou (II, 35-55) é marcada por intensa sensualidade.

Em Aljubarrota há quatro comparações, nas quais figura Nun'Álvares como comparado principal ou secundário. Comparado nas três primeiras a Cornélio (IV, 20-1), a Átila (IV, 24, vv. 1-4) e ao leão de Ceuta (IV, 34, vv. 3-8), são valorizadas as suas virtudes como estimulador dos comandados, açoutador de inimigos e destemeroso defensor da pátria. Na última, é D. João que se qualifica como defensor dos seus (em especial de Nuno), acorrendo-lhes como a leoa parida a seus filhotes (IV, 36, v. 5 - 38, v. 4).

Ao longo do caminho, fomos tirando conclusões parciais aqui e ali; haverá conclusões gerais a apresentar? Vejamos. N'Os Lusíadas, destacam-se as três batalhas que tentamos analisar: agrupadas todas ou em subconjuntos, elas nos revelaram tratamento igual ou desigual, dependendo do ponto de referência que utilizávamos; não querendo repetir o que ficou dito e confiada - como Machado - em que o nosso único leitor tenha boa memória e nos tenha acompanhado com atenção, resumimos o que nos parece capital: há um certo número de elementos básicos para a recriação poética de uma batalha: a desproporção entre os combatentes; a valorização do inimigo, pois, como diz ele em outro passo, "é fraqueza entre ovelhas ser lião" (I, 68, v. 8); o encarecimento da violência da batalha e, implícito nisso tudo ou explícito, o reconhecimento do valor português. Tais elementos serão comuns às partes do conjunto. O subconjunto (S + O), cristão x mouro, se caracteriza pela parcialidade do autor cristão do século XVI, acrescida de todos os preconceitos da época que narra, mas fizemos questão de ressaltar que o Poeta busca um certo equilíbrio, intensificando as acusações ao inimigo cristão, em Aljubarrota. Das três, é a do Salado - apesar do alto nível poético que atinge - a menos harmoniosa, porquanto o seu final se alonga sem razão, enfraquecendo-a, como já dissemos. Ora, historicamente, é ela também a menos significativa, a menos portuguesa de todas: embora a causa da Fé esteja presente, a pátria não está em jogo e, além disso, a vitória não é só portuguesa, senão portuguesa e castelhana. Aljubarrota é a afirmação plena de uma nova dinastia - a de Avis - de quem descende D. Sebastião, a quem o poema é dedicado; é o desbarato das forças de Castela que, à altura em que Camões escreve Os Lusíadas, recomeça a ser uma ameaça a essa mesma dinastia representada por um rei casto que recusa casar-se. A importância que atribui o Poeta a esse passo da história de seu país se reflete na extensão que lhe dá no poema e em todos os detalhes que já longamente se apontaram.

Esforçamo-nos por assinalar a importância do que o Poeta diz e também do que não diz, pois só as duas leituras possibilitam a apreensão da visão global do narrador, soldado e poeta, poeta principalmente, capaz de recriar a história pátria, na construção do grande poema épico do Renascimento.



[1] Representaremos, daqui em diante, as batalhas por suas iniciais, quando nos referirmos aos conjuntos e subconjuntos.

[2] Embora não expressa de maneira convencional, podemos também considerar como comparação qualificativa absoluta a que é feita na estrofe 116 do canto III, da qual se pode extrair não uma homologia, mas uma inequação, pois que o comparante é inferior ao comparado:

  Mário  <  portugueses e castelhanos

teutões                     mouros

ou

  Aníbal    <  portugueses e castelhanos

 romanos                  mouros

e que se poderá ler: os portugueses e castelhanos infligiram maiores perdas aos mouros que os heróis da antigüidade a seus inimigos, o que reforça o valor dos portugueses.