Estudos Camonianos

Os excursos do Poeta n'Os Lusíadas

Em moderna abordagem d'Os Lusíadas, um jovem professor de Letras [1] , com base na semântica estrutural de Greimas, distinguiu no poema quatro planos, constituído cada um por um inventário de mensagens que informam sobre o fazer ou o ser, isto é, sobre os processos ou os estados dos actantes, constituindo as mensagens dinâmicas, que informam sobre o fazer dos actantes, a efabulação do poema e as estáticas, que informam sobre o ser dos actantes, o "radotage" do poema. Na efabulação estariam o plano da viagem e o dos deuses, que se distinguiriam por apresentar: o primeiro, uma isotopia cosmológica, o segundo, uma isotopia noológica. A história e os excursos do Poeta constituiriam o "radotage", informando ambos sobre o ser dos actantes. Discutimos a inclusão da história apenas no "radotage" e discordamos de que os excursos do Poeta só informem sobre o ser dos actantes. Desta segunda discordância é que partiremos para a exposição de nosso ponto de vista sobre assunto que nos parece magno no julgamento do poema, não sem antes deixar patente o nosso respeito pelo trabalho do colega, em nada abalado pelas divergências apontadas.

Uma epopéia é basicamente uma narrativa e como tal importa o que nela se narra: a matéria épica. Se, porém, ela atinge um nível de literariedade que a torna digna de permanecer, é porque o acento foi posto na mensagem propriamente dita, segundo Roman Jakobson [2] ; duas funções da linguagem predominam, pois, na épica: a função poética e a função referencial.l

Como narrativa, seu discurso é transmitido por um ou mais narradores que na epopéia antiga eram bastante objetivos, não dando nunca importância maior à função emotiva da linguagem (centrada no destinador), que caracteriza a poesia lírica.

Esse foi o exemplo que Camões encontrou em Homero e sobretudo em Vergílio que mais de perto seguiu.

Na Odisséia e na Eneida, só não são narrativos os passos a que a tradição obrigara o autor épico: a proposição e a invocação (ou invocações); Aristóteles louvava Homero por dizer pessoalmente muito poucas coisas no poema [3] . Não assim nos poemas épicos do Renascimento, como o Orlando furioso de Ariosto [4] , em que o poeta está presente nos preâmbulos de cada canto e ainda um pouco por toda parte.

Das epopéias antigas, Camões manteve a presença de um narrador principal que introduz um segundo narrador, o herói - lá, Ulisses ou Enéias; aqui, Vasco da Gama -: ao Narrador1 toca o relato da viagem, da Ilha de Moçambique a Melinde, onde é substituído pelo Narrador2 (Vasco da Gama), que, começando por situar Portugal na Europa, narra-lhe a história (que, obviamente, inclui a viagem até Moçambique); volta o Narrador1, que a retoma, transmitindo a função a narradores eventuais: Veloso, Paulo da Gama, a falar do passado; Júpiter, a Ninfa e Tethys [5] , do futuro; do poema quase contemporâneo, manteve Camões a participação do Poeta. Daí serem mais de 8% d'Os Lusíadas constituídos por excursos - reflexões, exortações, queixas - nos quais situamos, evidentemente,  as partes iniciais do poema - Proposição, Invocação e Dedicatória - e a exortação final a D. Sebastião.  São eles explícita ou implicitamente expressos pelo Poeta (assim chamaremos ao locutor não narrador), por sua voz ou pela voz interposta de um de seus personagens. Caber-lhe-á iniciar e concluir o poema, fechar todos os dez cantos, retornar quatro vezes à invocação à(s) Musa(s) e tecer comentários de vária ordem.

No canto I, iniciado pelo Poeta, este cala-se ao fim da estrofe 18; assume o relato o Narrador1, que dá lugar ao Poeta para encerrá-lo com a dolorida reflexão sobre a insegurança da vida. O canto II tem o mesmo narrador que, ao fim, põe em cena os breves diálogos entre o rei de Melinde e o mensageiro de Vasco da Gama, e entre este e o rei, já no batel.  O acolhedor anfitrião quer saber tudo sobre os viajantes, a começar pela terra, "região / Do mundo", passando à história pátria, à viagem, à descoberta do outro, ao longo da costa africana, terminando por dizer que

[...] Não tanto desviado resplandece

De nós o claro Sol, pera julgares

Que os Melindanos têm tão rudo peito

Que não estimem muito um grande feito [6] . (II, 111),

 

o que fecharia bem a sua fala. Mas ainda serão ditas pelo rei as duas últimas estrofes do canto:

Cometeram soberbos os Gigantes,

Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;

Tentou Perito e Téseo, de ignorantes,

O Reino de Plutão, horrendo e escuro;

Se houve feitos no mundo tão possantes,

Não menos é trabalho ilustre e duro

Quanto foi cometer Inferno e Ceo,

Que outrem cometa a fúria de Nereo.

 

Queimou o sagrado templo de Diana,

Do sutil Tesifônio fabricado,

Horóstrato, por ser da gente humana

Conhecido no mundo, e nomeado:

Se também com tais obras nos engana

O desejo de um nome aventajado,

Mais razão é que queira eterna glória

Quem faz obras tão dignas de memória. (II, 112-3)

 

Embora na estrofe 110 o rei já tenha revelado possível conhecimento da mitologia grega, referindo-se ao carro do sol (que também poderia existir em outras mitologias), parece estranho que nestas duas últimas assuma um discurso ocidental erudito, em que se sucedem os Titãs, Teseu e Pirito, Plutão, Nereu, divindades adequadamente escolhidas para a sua argumentação, e até o pouco conhecido Heróstrato, destruidor do templo de Diana, construído por Tesifônio (ainda mais desconhecido). Na verdade, estas estrofes estão inseridas na fala  do rei melindano, mas o que delas emerge é, mais uma vez, a reflexão do Poeta sobre as formas de "aventajar" o nome, nelas incluindo a indigna - o desejo de permanência pela ação nefanda, a única que Heróstrato consegue realizar -, para encarecer quão justo é que os portugueses desejem "eterna glória" .

Nos cantos III, IV e V, o narrador é Vasco da Gama: antes que ele fale, porém, o Poeta, dando-se conta da dificuldade do assunto que vai ser narrado, faz a segunda invocação do poema, agora a Calíope, musa da epopéia, rainha das musas (III, 1-2). Prometendo ser breve, o Capitão toma a palavra: "Primeiro tratarei da larga terra, / Depois direi da sanguinosa guerra." (III, 5).  Bem adiante, no limiar da narração do "caso triste e dino da memória",  da "mísera e mesquinha / Que despois de ser morta foi Rainha" (III,118), o Narrador2 deixa de sê-lo, assumindo um discurso na primeira pessoa [7] , dirigido de início ao "Amor" - Amor-divindade, chamado "puro" mas também "fero" -, em seguida a Inês, amante e amada, logo depois ao "puro amor", desta vez com minúscula, irmanados todos por um mesmo "tu", como a dizer que Inês e amor/Amor são apenas um. (III, 119-22). Reassume o Narrador2 o seu relato, na estrofe 123, já agora falando de Inês como de uma terceira pessoa, mas conservando no seu discurso modalizante o mesmo grau de emoção do locutor das oitavas 119-22, que novamente emergirá na estrofe 133, interpelando o sol.

Continuando a história de Portugal, fala o Gama de D.Fernando, chegando à conclusão de que "um baxo amor os fortes enfraquece" (III, 139). Recorda então outros muitos personagens, da história ou da mitologia, também dominados pela mesma força irresistível, o que é um princípio de justificação do erro.

Duas estrofes ainda faltam para encerrar-se o canto. A narração, que passara da condenação ao esboço de perdão, assume um discurso altamente subjetivo, a revelar a compreensão da fraqueza dos amantes, vencidos pelos encantos femininos, terminando por justificar o rei  português, cuja falta só não será entendida por "quem não tem de amor experiência":

Mas quem pode livrar-se, porventura,

Dos laços que Amor arma brandamente

Entre as rosas e a neve humana pura,

O ouro e o alabastro transparente? Quem, de ua peregrina fermosura,

De um vulto de Medusa propriamente,

Que o coração converte, que tem preso,

Em pedra não, mas em desejo aceso?

 

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,

Ua suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

Desculpado por certo está Fernando

Pera quem tem de amor experiência

Mas antes, tendo livre a fantasia,

Por muito mais culpado o julgaria. [8] (III, 142-3)

Está-se, ainda uma vez, a ouvir, não a voz de Vasco da Gama, mas a do Poeta, em mais um de seus emocionados excursos. Desta vez, é de amor que fala, ele, que de amor entende: as duas oitavas constituem um alto momento da produção lírica de Camões.

No canto IV, o mesmo Narrador2, na estrofe 95, passa a palavra ao Velho do Restelo que invectiva a "vã cobiça", a  "glória de mandar", a "fama", a elas dirigindo-se duramente.  O alocutário é alargado, na estrofe 98, aos homens em geral - "geração daquele insano" -, reduzidos em seguida aos portugueses que deixam "criar às portas o inimigo". Mais três estrofes e o canto se fechará: novamente se amplia o alocutário; o Velho maldiz "o primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho"; o que arrebatou o fogo celeste (Prometeu), o que tentou ascender às alturas do céu (Ícaro), os que tentaram ultrapassar a medida, enfim, "a humana geração". Nestas oitavas temos novamente a consideração de ordem geral, a reflexão do Poeta, mesmo sob o disfarce do Velho, que vários camonistas identificam a Camões.

A fala de Vasco de Gama se estenderá até à estrofe 89 do canto V. Retoma agora a sua função o Narrador1, que nas duas oitavas seguintes faz o breve relato da atitude dos melindanos, encantados com o que ouvem, comentando-o entre si, enquanto o rei louva os reis citados e a noite cai. O canto, contudo, não terminou. Nas nove estrofes finais, ouvir-se-á  o louvor do canto, sintetizado nas palavras de Milcíades: "nada tanto o deleitava / Como a voz que seus feitos celebrava." A seguir, a crítica aos Lusitanos que, diversos dos heróis antigos, não prezam a musa; disso decorre não haver em Portugal "Virgílios nem Homeros". Nesta censura se inclui a do herói cantado - o Gama - e de sua estirpe. Está-se, ainda aqui, diante de um excurso que, desta vez, é fortemente crítico.

O canto VI se fecha com a chegada a Calecute. O capitão dá graças a Deus. A narração se interrompe para que se ouça o louvor dos que alcançam "as honras imortais e graus maiores". Num processo que será apontado por Dámaso Alonso como característico do barroco, não se chega diretamente à afirmação, mas, em enumeração longa, passando pela negação: "Não encostados sempre nos antigos / Troncos nobres de seus antecessores", "Mas com buscar, co seu forçoso braço, / As honras que ele chame próprias suas" (VI, 97), e assim por diante.

No canto VII, logo à entrada (1) , um apelo direto aos portugueses: "Ora sus, gente forte, que na guerra / Quereis levar a palma vencedora" (VII, 1), "A vós, ó geração de Luso, digo, / Que tão pequena parte sois no mundo" (Ib., 2), "Vós, portugueses, poucos quanto fortes / Que o fraco poder vosso não pesais" (Ib., 3),

Assi do ceo deitadas são as sortes

Que vós, por muito poucos que sejais,

Muito façais na santa Cristandade,

Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade. (Ib.) (Grifos nossos)

 

Encarece o Poeta o serem poucos os portugueses, o terem pouco poder, embora sejam "gente forte", tão fortes quanto poucos, e destemidos. Nas três estrofes seguintes, critica severamente os ingleses, os alemães e os franceses, a estes falando diretamente: "Pois de ti, Galo indigno, que direi?"; passa aos italianos - "Contigo, Itália, falo, já sumersa / Em vícios mil, e de ti mesma adversa." (Ib., 4-8). Resume-os todos : "Ó míseros cristãos", acusando-os de cizânia, torpezas, cobiça (Ib., 9-13), com uma só exclusão:

Não faltarão cristãos atrevimentos

Nesta pequena casa lusitana.

De África têm marítimos assentos;

É na Ásia mais que todas soberana;

Na quarta parte nova os campos ara

E, se mais mundo houvera, lá chegara. (Ib., 14)

 

Retoma-se a narração, até à estrofe 77: estão os indianos desejosos de conhecer os "Feitos dos homens que, em retrato breve, / A muda poesia ali descreve." Antes, porém,  que Paulo da Gama inicie a descrição das bandeiras, o Narrador1 adianta quem é representado na primeira: é Luso, que ele não chega a nomear, pois, ao dizer: "Um ramo na mão tinha..." o Poeta - aqui não há como duvidar de que é ele que assume o discurso, na primeira pessoa - toma a palavra:

                          [...] Mas, ó cego,

Eu, que cometo, insano e temerário,

Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,

Por caminho tão árduo, longo e vário!

Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar, com vento tão contrário,

Que, se não me ajudais, hei grande medo

Que o meu fraco batel se alague cedo. (VII, 78)

 

Ei-lo, o Poeta, inseguro diante do novo desafio: retomar a história dos grandes de Portugal. É necessária nova invocação: volta às Tágides, mas acrescenta-lhes as ninfas do Mondego, as mesmas que choraram a morte de Inês. Pessoalmente queixoso, é de si mesmo que falará. O descaso pela arte, sente-o ele na própria carne e, no entanto, só cantava e cantaria aqueles que o merecessem, incidindo a sua crítica mais forte sobre os que são levados, "Por contentar o rei, no ofício novo, / A despir e roubar o pobre povo" (VII, 85), ou aquele que "não acha que é justo e bom respeito / Que se pague o suor da servil gente" (VII, 86). E encerra o canto:

Aqueles sós direi, que aventuraram

Por seu Deus, por seu rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo e as Musas, que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento, descansado,

Por tornar ao trabalho mais folgado. (VII, 87)

 

Quem, senão o Poeta, terá sido acompanhado de Apolo e das Musas?

            Chegamos ao canto VIII. Continua o Narrador1, agora na Índia. Vasco da Gama negocia a sua liberdade "com o Regedor, corrompido e pouco nobre." (VIII, 96). É o momento propício para que o Poeta teça reflexões sobre o poder corruptor do ouro; partindo do exemplo mitológico, como sói fazer, percorre as classes sociais - homens de armas, homens da ciência, homens das leis, homens do governo e, por último, mais severamente censurados, por hipócritas, homens da religião.

         O canto IX decorre na Ilha dos Amores. Heróis e ninfas movem-se num cenário edênico, embebidos de amor, passando o dia "Nua alma, doce, incógnita alegria, / Os trabalhos tão longos compensando" (IX, 88), em puro encantamento de que o Narrador1 parece participar, pela modalização do seu discurso. É, pois, surpreendente que, quebrando o encanto, suspenda a narração para destruir a verdade ficcional, até ali indiscutível, da interferência das divindades mitológicas na viagem para a Índia, já que estas não são mais que "as deleitosas  / Honras que a vida fazem sublimada" (IX, 89), ou

[...] prêmios que reparte

Por feitos imortais e soberanos,

O mundo cos varões que esforço e arte

Divinos os fizeram, sendo humanos. (IX, 91)

 

         Chegamos à estrofe 92, onde surge, na primeira pessoa - que não se diz "eu", mas se denuncia através do "vós", com que aconselha os que estimam a fama -, o Poeta, pondo fecho ao canto, ao concluir: "Sereis entre os heróis esclarecidos / E nesta ilha de Vênus recebidos." (IX, 95)

         O canto X não foge à norma estabelecida. [9] É mesmo o canto em que mais longo se estende o excurso pelas doze oitavas finais. A primeira, dirigida à Musa, é o que se poderia chamar uma desinvocação, pois que, ao invés de chamá-la em seu auxílio, o Poeta diz-lhe: "No'mais, Musa, no'mais" (X, 145), no momento climático de desalento e desilusão. Nas seguintes, é ao rei que se dirige, concitando-o a olhar: "Olhai que sois (e vede as outras gentes) / Senhor só de vassalos excelentes." (X, 146) ; "Olhai que ledos vão, por várias vias, / [...] / Dando os corpos a fomes e vigias, [...] / A perigos incógnitos do mundo, / A naufrágios, a pexes, ao profundo!" (X, 147). Esses vassalos estão, "Por vos servir, a tudo aparelhados" (X,148). O aconselhamento prossegue com imperativos: "favorecei", repetido (X, 149 e 150); "tende em muita estima" (X, 151).

         Se, pouco antes, dissera dos portugueses que estão, "Por vos servir, a tudo aparelhados", dirá agora: "Pera servir-vos, braço às armas feito; / Pera cantar-vos, mente às Musas dada" (X, 155). Armas e engenho, põe-nos à disposição do rei, para lutar ao seu lado e para cantá-lo, se "Dina empresa tomar de ser cantada" (X, 155).

A  variedade  de  narradores não dá ao leitor uma múltipla visão dos fatos, uma visão estereoscópica, como diria Todorov [10] , porquanto o Narrador1 os utiliza como processos retóricos, disfarçando-se por trás deles: é a sua própria visão que se acentua, sem se alargar. Em relação ao amor, por exemplo, vemos uma mesma compreensão e simpatia no Narrador2, ao desculpar D. Fernando, e na Ninfa da Ilha dos Amores, achando severo o castigo que seria aplicado em Rui Dias porque "a fraca humanidade e Amor desculpa" (X, 46). Esses sentimentos são o eco do juízo que faz do amor o Narrador1: "Milhor é exp'rimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode exp'rimentá-lo" (IX, 83).

Se estamos certa de que, grosso modo, não há divergência entre as visões dos narradores, não o estamos menos de que, ao longo do poema, a visão do Poeta permanece a mesma quando se volta para os problemas humanos em geral, mas sofre profunda modificação quando enfoca a ideologia vigente. Aqui, faz-se necessário explicitar o que entendemos por ideologia vigente no Portugal em que se cria o poema: é uma ideologia mista de feudalismo e humanismo, que se completam e contradizem, aquele mais arraigado, este ainda inovador, ambos plasmando o Mesmo do autor (usamos o termo como Foucault). [11]

Um notável crítico de Camões, António José Saraiva, apresenta o Poeta "entre a ideologia feudal e a cultura humanística" [12] , sem nessa altura chamar a esta ideologia. Não temos dúvida em fazê-lo, pois que "les pensées dominantes ne sont rien de plus que l'expression idéologique des rapports matériels dominants conçus sous forme de pensées" [13] e que a ideologia é um sistema de representações, teoria que pretende trazer um saber rigoroso, no domínio político, moral, filosófico, religioso [14] . Assim, teríamos Camões submetido a três diversos pensamentos dominantes: o que condiciona a narrativa épica às regras do gênero e as duas ideologias acima citadas.

Obedecendo às regras, irá iniciar sua narrativa in medias res [15] , com a viagem - seu fio condutor - avançada, bem próxima de Melinde, onde o herói terá de narrar os antecedentes da sua aventura. E Camões, consciente de que a conquista do mar é resultante de séculos de preparação das virtudes que enrijam o homem, faz de Vasco da Gama o narrador de toda a história de Portugal e não apenas de uns breves antecedentes do feito, como acontece com os heróis de Homero e Vergílio. Isso era o que prometera na Proposição onde, em vez de um varão, encontram-se os "barões assinalados" - navegantes, primeiro, e em seguida soldados, colonizadores, reis, enfim todos que ganharam a imortalidade. É de notar-se que ele se preocupou com a veracidade da história, ao fazer dela matéria do poema, quando poderia ter seguido a Aristóteles, que escrevia: "la obra propia del poeta no es tanto narrar las cosas que realmente han sucedido, cuanto contar aquellas cosas que podrian haber sucedido, y las cosas que son posibles, según una verosimilitud o una necessidad" [16] . Tal preocupação se explica, porém, porque a verdade do que narra é uma das qualidades básicas do poema, ressaltada pelo Poeta na Dedicatória:

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas.

As verdadeiras vossas são tamanhas,

Que excedem as sonhadas, fabulosas (I, 11),

e reafirmada por Vasco da Gama ao rei de Melinde:

A verdade que eu conto, nua e pura,

Vence toda grandíloca escritura. (V, 89)

A verdade dirá respeito à história propriamente dita, mas também à viagem: naquela, são apresentadas sobretudo façanhas bélicas cujos heróis são os cavaleiros, representantes de uma sociedade feudal; nesta, a superação da própria condição humana ("mais do que prometia a força humana", I, 1) pelo homem, centro do universo, numa concepção humanística.

No nível do narrado, pois, o autor se prende às ideologias, mas o fato de repousar sobre um ideológico duplo, não uno, já cria uma certa ambigüidade que enriquece o poema. No nível do comentado - os excursos - pode-se em parte considerar [17] que o Poeta também se prende à estrutura feudal, revelando-se solidário com as responsabilidades da nobreza ou defendendo o povo, como qualquer cavaleiro o faria, e se revela humanista quando considera que o poema épico vale muito mais que os feitos militares, ou quando dá conselhos ao rei ou aos ministros. Só em parte aceitamos a posição ideológica do Poeta nos excursos que, como dissemos atrás, são algumas vezes inseridos nas narrativas secundárias ou em um discurso como o do Velho do Restelo. Muitos deles, embora basicamente ideológicos, deixam de sê-lo pela sua própria inserção na epopéia para questioná-la, o que provoca uma inversão de posições. A matéria épica era indiscutível: ali estava para ser celebrada e não contestada.

É este o momento de retomarmos o nosso ponto de partida: a relutância em aceitar que os excursos do Poeta só informassem sobre o ser dos actantes. Na verdade informam também, e largamente, sobre o ser do Poeta (não se esqueça de que o que aqui chamamos Poeta é o locutor não narrador). Vejamos como: na Proposição e Dedicatória, partes essenciais da epopéia tradicional, não há inovação, senão alongamento; nelas, como na Dedicatória que acrescentou, o Poeta é altamente laudatório e está penetrado da euforia do canto. Outras invocações, porém, se farão necessárias ao longo do poema, a cada nova dificuldade que se apresenta - Vergílio fizera assim. Depois da primeira, às Tágides pátrias:

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente (I, 4),

virá, à entrada da história narrada por Vasco da Gama, a segunda, a Calíope:

Agora tu, Calíope, me ensina

O que contou ao Rei o ilustre Gama:

Inspira imortal canto e voz divina

Neste peito mortal que tanto te ama. (III, 1).

Pela terceira vez, o Poeta pedirá ajuda, e já agora às Ninfas do Tejo e do Mondego, para que o inspirem na descrição das bandeiras, feita por Paulo da Gama ao Catual (novamente a história portuguesa). O tom, entretanto, é outro. O imperativo de ordem - "Dai-me agora um som alto e sublimado", "Agora tu, Calíope, me ensina" - desapareceu. Em lugar dele, o pedido:

Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar com vento tão contrário,

Que, se não me ajudais, hei grande medo,

Que o meu fraco batel se alague cedo. (VII, 78).

E, em vez de passar diretamente ao contexto épico - as bandeiras -, detém-se o Poeta no relato das suas desventuras, queixando-se do destino:

Olhai que há tanto tempo que cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos

A fortuna me traz peregrinando,

Novos trabalhos vendo e novos danos,

Agora o mar, agora exp'rimentando

Os perigos Mavórcios inumanos,

Qual Cánace que à morte se condena,

Nua mão sempre a espada e noutra a pena;

 

Agora com pobreza avorrecida

Por hospícios alheios degradado;

Agora da esperança já adquirida

De novo mais que nunca derribado;

Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado,

Que não menos milagre foi salvar-se

Que pera o Rei Judaico acrescentar-se. (VII, 79-80)

Não só do destino, mas da ingratidão dos homens - e homens altos o bastante para lhe poder dar o que recusaram:

E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles que eu cantando andava

Tal prémio de meus versos me tornassem.

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram

Com que em tão duro estado me deitaram. (VII, 81).

A queixa se acentua, torna-se mais agressiva:

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valerosos,

Que assi sabem prezar, com tais favores,

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,

Pera espertar engenhos curiosos,

Pera porem as cousas em memória

Que merecerem ter eterna glória. (VII, 82)

e o Poeta afirma sua posição independente de cantor do justo e do direito, acusando os hipócritas, os interesseiros, os opressores do povo.

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Anteposer seu próprio interesse,

Imigo da divina e humana lei.

Nenhum ambicioso, que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

 

[...]

 

Nem quem acha que é justo e que é dereito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Pera taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios que não passa. (VII, 84-6).

Ao iniciar-se o último canto, a Ninfa da Ilha dos Amores e Tethys vão profetizar as coisas da Índia (mais uma vez - a última! - a história de Portugal) e novamente o Poeta, diante da grandeza do assunto, pede inspiração a Calíope. A depressão que apresentara na invocação anterior parece ceder depois do longo desabafo e da confiança expressa na sua última estrofe:

Apolo e as Musas que me acompanharam

Me dobrarão a fúria concedida. (VII, 87).

Agora a tristeza é mais profunda, e o cantor quer apenas desobrigar-se da missão; o próprio engenho, que o enchia de esperança no limiar do poema, já não lhe dá confiança:

Aqui, minha Calíope, te invoco

Neste trabalho extremo, por que em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.

 

Vão os anos decendo, e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono;

A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha

Das Musas, co que quero à nação minha. (X, 8-9).

Duas vezes recorrera às Ninfas pátrias, promovidas a musas; duas vezes a Calíope, inspiradora da epopéia. Com entusiasmo e alor, primeiro; depois, com desconfiança e cansaço. E sua última palavra à Musa (não esta ou aquelas, apenas Musa) é a dizer-lhe que basta, que é o momento de calar. Diz-lhe aquele mesmo "no'mais" com que se dirigiu à canção, em "Vinde cá, meu tão certo secretário"; nesta, porque iria "falando, / Sem o sentir, mil anos"; na epopéia, porque perdeu o estímulo para cantar:

No'mais, Musa, no'mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cubiça e na rudeza

De ua austera, apagada e vil tristeza. (X, 145).

Quer calar-se o Poeta: sua voz não tem mais "um som alto e sublimado", está "enrouquecida"; a cítara que cobiçara de Homero é "lira destemperada". Pouco antes, vendo que perdia o gosto de escrever (X, 8), ainda procurava cumprir o dever que se atribuía para com a pátria; agora a vê "metida / No gosto da cubiça e na rudeza / De ua austera, apagada e vil tristeza".

Através das invocações, onde fica bem clara a enunciação pela presença dos pronomes da 1a pessoa do singular, pela tensão entre o emissor e o receptor, pelas referências do sujeito a seu enunciado [18] , pode-se traçar uma linha descendente da enunciação que, confundindo-se na origem com a do enunciado, vai-se descolando dela até ao momento do calar-se: "No'mais, Musa, no'mais". É bem verdade que, ao calar este canto, o Poeta abre a possibilidade de novo canto, se nova empresa o merecer. A nova empresa, a que o Poeta concita o jovem rei, é a guerra na África do Norte e essa sua atitude final viria confirmar-lhe a adesão a "o triunfo de um sector arruinado ou insatisfeito da nobreza" [19] .

Confrontemos rapidamente a Dedicatória e o Epílogo. Na primeira, o jovem rei é qualificado como a

[...] bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade (I, 6),

"novo temor da maura lança" (Ib.), "Maravilha fatal da nossa idade" (Ib.), "poderoso Rei" (I, 8), "Sublime Rei" (I, 15); seu

      [...] alto Império

O Sol logo em nascendo vê primeiro,

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro (I, 8),

e o Poeta diz que não se atreve a cantá-lo ("não me atrevo a tanto", I, 15). No Epílogo, a fala é quase tão extensa quanto a da Dedicatória, mas o que o rei ouve não são louvores, mas conselhos de bem governar e, por fim, o oferecimento do canto se "o vosso peito / Dina empresa tomar de ser cantada" (X, 155). Equilibrado em sua estrutura, o poema começa por uma Proposição do que vai ser cantado, porque já se realizou, e termina por uma proposição hipotética do que, se se realizar, será cantado. Como já assinalamos, Camões tem consciência de que é mais importante o poema que o feito heróico, e o fecho d'Os Lusíadas o acentua: os versos finais unem a ambos, mas a última palavra é para o valor do poema. Na repetição do processo se patenteia a dependência do fato histórico em relação à arte, pois que só essa lhe dá a dimensão de eternidade. O não compreender a importância da arte desmerece o homem e disso o Poeta acusa o próprio Vasco da Gama, no momento em que este acaba de fazer sua extensa narrativa:

[...] ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Calíope não tem por tão amiga,

Nem as filhas do Tejo que deixassem

As telas d'ouro fino e que o cantassem (V, 99).

Essa crítica ao herói-síntese do poema é tanto mais grave quanto, nas estrofes anteriores, o Narrador1, cessada a voz do Gama, depois de acentuar o encanto e admiração de que ficaram tomados os melindanos ao ouvir tais verdades, passa a palavra ao Poeta para que este, tomando (como sempre faz) o exemplo dos antigos, diga que

Enfim, não houve forte capitão

Que não fosse também douto e ciente

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,

Senão da Portuguesa tão somente.

Sem vergonha o não digo, que a razão

D'algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima,

Porque quem não sabe arte, não na estima.

 

Por isso, e não por falta de Natura,

Não há também Virgílios nem Homeros:

Nem haverá, se este costume dura,

Pios Enéias nem Aquiles feros.

Mas o pior de tudo é que a ventura

Tão ásperos os fez e tão Austeros,

Tão rudos e de ingenho tão remisso,

Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso. (V, 97-98)

Mais amplamente direcionada é a crítica feita pela voz do Velho do Restelo que se faz ouvir, num episódio de grande beleza, sobre o qual, todavia, os críticos não estão de acordo: na verdade, não é fácil aceitar, no poema épico, cujo núcleo narrativo é a viagem marítima, que, no exato momento em que ela se vai iniciar, uma voz se levante e a condene, numa extensa fala que ninguém contesta e que tem a reforçá-la, a torná-la mais válida e tocante, o duplo lamento das mães e das esposas: "Por que de mi te vás, ó filho caro, / A fazer o funéreo enterramento / Onde sejas de pexes mantimento?" (IV, 90) e

[...] Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis amor que viver possa,

Porque is aventurar ao mar iroso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como por um caminho duvidoso

Vos esquece a afeição, tão doce, nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento

Quereis que com as velas leve o vento? (IV, 91).

Mães e esposas são acompanhadas de velhos e meninos nas lágrimas com que banham a areia: sua fraqueza e o abandono em que são deixados apóiam as palavras do "velho de aspeito venerando" (IV, 94).

Para a maioria dos comentadores do poema, o Velho sintetizaria os juízos daquela parte do povo português que se opunha aos descobrimentos, e o Prof. Hernâni Cidade  acentua que a repreensão vai mais longe, a "todos os anelos de ultrapassar quaisquer vedados términos" [20] e, apontando para a contradição entre "o autor do discurso que condena a largada e o autor das oitavas que exaltam a dilatação, que a tornava necessária, da Fé e do Império" [21] , conclui que

[...] o Poeta se mostra o homem que, no fim do século, depois de todas as experiências pessoais e das registradas na História trágico-marítima, não pode ter, em face da empresa, das suas conseqüências históricas, do seu significado humano, o orgulho optimista do momento em que ela foi iniciada [22] .

Para Saraiva,

Camões inventou esta personagem para emitir certas sentenças, para firmar certa ideologia característica da sua formação humanista [....] O Velho do Restelo é o próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo à luz dos valores do humanismo europeu os acontecimentos por que se apaixona o vulgo e de que ele mesmo se faz cantor [23] .

Assim, pois, para estes dois ilustres camonistas o Velho é o próprio Camões. É também o que achamos, corroborando essa aproximação pelo confronto entre a qualificação atribuída ao Velho e a que o Poeta se atribui e aos que mais devem merecer do rei, no canto X. Além de alguma coisa do aspecto e atitude exterior do Velho do Restelo, só nos diz o narrador que "Cum saber só d'experiências feito / Tais palavras tirou do experto peito" (IV, 94); pois nos conselhos que dá a D. Sebastião no Epílogo do poema, vemos: "Os mais exp'rimentados levantai-os, / Se com a experiência têm bondade" (X, 149); logo adiante:

Tomai conselhos só d'exp'rimentados,

Que virão largos anos, largos meses,

Que posto que em cientes muito cabe,

Mais em particular o experto sabe. (X, 152).

Experiência é o que lhe não falta, inclusive a da "disciplina militar prestante" (X, 153) e, embora se diga "humilde, baxo e rudo, / De vós não conhecido nem sonhado" (X, 154), afirma, sem falsa modéstia:

Nem me falta na vida honesto estudo,

Com longa experiência misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente. (X, 154).

Em outros pontos d'Os Lusíadas encontramos o louvor da experiência como qualidade básica, capaz de pôr em xeque a própria ciência, como nos versos que encerram o episódio da tromba marinha: "Vejam agora os sábios na escritura / Que segredos são estes de Natura" (V, 22), ou nesses que acabamos de citar: "posto que em cientes muito cabe, / Mais em particular o experto sabe".

A experiência, denominador comum, revelaria o assumir o Poeta a fala do seu personagem, e nisso fica nossa concordância. Quanto aos motivos da criação do personagem, aceitamos com reservas o que diz Saraiva, ao pôr em relevo o aspecto humanístico do Poeta, "não lhe faltando sequer o desdém pelo vulgo" [24] que ele vê na depreciação da "aura popular" ou do "povo néscio". Podemos estar errada, mas não entendemos popular como do povo, se este for apenas uma classe social, mas do povo como coletividade global, onde a fama se espalha; vejamos o texto:

Ó glória de mandar! Ó vã cubiça

Desta vaidade a que chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto que se atiça

Cua aura popular que honra se chama! (IV, 95).

Procedendo como atrás, buscamos outros empregos do adjetivo no poema [25] ; só o encontramos mais duas vezes: falando de Afonso VI, de Leão e Castela, o Poeta começa por louvá-lo pela guerra aos sarracenos, também louvando os que, de toda parte, vêm lutar sob sua bandeira:

Muitos, pera na guerra esclarecer-se

Vinham a ele e à morte oferecer-se.

 

E com um amor intrínseco acendidos

Da Fé, mais que das honras populares (III, 23-4);

mais adiante, referindo-se à atuação de Nun'Álvares na batalha de Aljubarrota, mostra como reagiram todos ao calor de sua exortação:

Removem o temor frio, importuno,

Que gelados lhe tinha os corações.

[...]

 

Das gentes populares uns aprovam

A guerra com que a pátria se sostinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha;

Capacetes estofam, peitos provam;

Arma-se cada um como convinha;

Outros fazem vestidos de mil cores

Com letras e tenções de seus amores. (IV, 21-2)

Estes últimos sãos os componentes da Ala dos Namorados, jovens fidalgos que lutaram bravamente ao lado de Nun'Álvares e que Camões inclui entre uns e outros "Das gentes populares".

Outro adjetivo cuja interpretação contestamos é néscio, em que não vemos o desdém do humanista; o Velho, invectivando duramente o desejo de fama que é a perdição dos homens, diz: "Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana!" (IV, 96). Também o Adamastor, sabendo-se cruelmente ludibriado por Thetis, usa o adjetivo referido a si mesmo: "Já néscio, já da guerra desistindo" (V, 55). O povo e o gigante, igualmente néscios, igualmente enganados. Ainda é chamado néscio, por Baco, o povo humano (em VIII, 49, v. 8, sem nenhuma referência a classe), porque está sendo atraído à nova lei de Cristo, o que, no conceito do deus do vinho, significa que é facilmente ludibriável. Nos três exemplos, pois, o significado "que não sabe", "ignorante", está associado a "que está" ou "pode ser enganado".

Até aqui viemos "cometendo / O duvidoso mar num lenho leve" (I, 27), a desviar-nos - ainda que pouco - das rotas já percorridas. É tempo de fixar a nossa, esclarecendo os desvios que foram sendo assinalados, e justificando-os, se ainda o não foram.

O primeiro desvio alongou o caminho a percorrer, para mais plenamente conhecer o poema, indo além do conhecimento dos actantes (quase sempre no nível do enunciado) para o do Poeta (no nível da enunciação). As outras mudanças de direção se fizeram em relação ao pensamento de Cidade e Saraiva: do primeiro nos afastamos um quase nada, quando, em passagem que citamos a propósito do Velho do Restelo, diz que, "em face da empresa, das suas conseqüências históricas, do seu significado humano", o Poeta "não pode ter o orgulho optimista do momento em que ela foi iniciada", e isso porque encontramos muitas vezes no poema, na fala do Poeta ou na de seus narradores ou personagens, a manifestação plena desse orgulho da empresa marítima. De Saraiva nos distanciamos um pouco mais: não aceitando o desdém humanístico de Camões "pelo vulgo" (como já vimos), nem que Camões cante uma matéria "com a qual de modo algum se identifica" [26] (por motivo semelhante ao que acabamos de expor, referindo-nos a Hernâni Cidade), nem tampouco que o "reservar constantemente a sua liberdade de juízo" [27] deva-o o Poeta ao fato de ser um humanista [28] . Falta-nos justificar esta última divergência e esperamos que, fazendo-o, esclareçamos conclusivamente o ponto de vista que foi sendo apresentado ao longo de toda a exposição.

A liberdade de juízo que Camões patenteia na epopéia lhe vem, em parte, de sua qualidade de humanista, mas também, e sobretudo, da de homem inserido numa época de crise, capaz de avaliar a grandeza do esforço realizado, identificando-se com ele no que encerra de afirmativo do homem superador da própria condição, mas capaz também de enxergar-lhe o outro lado, o que irrompe dos relatos da história trágico-marítima; capaz de sentir que o grande momento de Portugal já passou, mas existiu, em toda a plenitude da empresa que utilizou o homem integral - o da ciência, da técnica e da ação. Essa liberdade de juízo, porém, poderia não ter sido conservada pelo Poeta que criava uma epopéia - narrativa de feitos positivamente apresentados, sem questionamento, destinada à exaltação de um povo. E aqui está uma das razões da grandeza do poema que, à medida que se faz, questiona não somente o contexto que utiliza, mas o próprio enunciado que consagra este contexto. A matéria épica, apesar da visão crítica do Poeta, apesar das tremendas acusações do Velho do Restelo, permanece válida mas não indiscutida: há pelo menos duas verdades possíveis.

Serão, por isso, Os Lusíadas menos epopéia que a Odisséia ou a Eneida? Nem menos, nem mais. Os Lusíadas são a epopéia de novos tempos, tempos contraditórios. Alimentado de tais contradições, o poema adquire modernidade e se afirma como a única epopéia representativa do Renascimento europeu.

[1] JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Les Editions de Minuit, 1963, p. 214.

[1] ARISTÓTELES. Poética. In: Obras. Madrid: Aguilar, 1967, p. 102.

[1] Embora o Orlando furioso (assim como o Orlando enamorado, de Boiardo)

[1] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, em casa de Antonio Gonçalves, Impressor, 1572.

[1] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugália, 1968, p. 13.

[1] SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 147.

[1] NOIRAY, André. La philosophie, 2e. éd. Paris: Centre d'études et promotion de la lecture, 1969, p. 265.

[1] HORACE. Art poétique. In: Oeuvres, texte latin, 13e. éd. Paris: Hachette, s.d., p. 599, v. 148.

DUBOIS, J. "Enoncé et énontiation". In: Langages (13), Mars, 1969. Paris: Didier/Larousse, pp. 100-110.

[1] CIDADE, Hernâni. Luís de Camões II: o épico, 2. ed. melhorada. Lisboa: Revista da Faculdade de Letras, 1953, p. 125.

Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas, feito sob a orientação de A. G. Cunha; edição do Instituto Nacional do Livro, 3 vol., Rio de Janeiro, 1966.



[1] Anazildo Vasconcelos da Silva que, em 1972, cursava o Mestrado em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde a autora ministrava a disciplina "Camões épico e lírico", em homenagem ao quarto centenário da publicação d'Os Lusíadas.

[2] JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Les Editions de Minuit, 1963, p. 214.

[3] ARISTÓTELES. Poética. In: Obras. Madrid: Aguilar, 1967, p. 102.

[4] Embora o Orlando furioso (assim como o Orlando enamorado, de Boiardo) seja mais um romance de cavalaria do que propriamente um poema épico, citamo-lo aqui porque é considerado como uma das epopéias do Renascimento.

[5] Quanto à ortografia aqui usada, cf. Prefácio: "Critérios de transcrição".

[6] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, em casa de Antonio Gonçalves, Impressor, 1572. Todas as cita- ções d'Os Lusíadas seguem a lição da edição princeps, com atualização da ortografia, segundo critérios expostos na Prefácio.

 

[7] O "eu" não está aqui explícito, mas, como diz Benveniste, implícito no "tu".

[8] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, em casa de Antonio Gonçalves, Impressor, 1572. Todas as citações d'Os Lusíadas seguem a lição da edição princeps, com atualização da ortografia, segundo critérios expostos na Prefácio.

[9] Mais adiante (p. 13 ???) referimo-nos ao dolorido excurso que vai de X, 8, v. 5 a 9.

[10] TODOROV, Tzvetan. "Les catégories du récit littéraire". In: Communications (8). Paris: Seuil, 1966, p. 142.

[11] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugália, 1968, p. 13.

[12] SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 147.

[13] Os pensamentos dominantes não são senão a expressão ideológica das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de pensamentos.

[14] NOIRAY, André. La philosophie, 2e. éd. Paris: Centre d'études et promotion de la lecture, 1969, p. 265.

[15] HORACE. Art poétique. In: Oeuvres, texte latin, 13e. éd. Paris: Hachette, s.d., p. 599, v. 148.

[16] ARISTÓTELES. Op. cit., p. 85.

[17] SARAIVA. Op. cit., p. 147 ss.

[18] DUBOIS, J. "Enoncé et énontiation". In: Langages (13), Mars, 1969. Paris: Didier/Larousse, pp. 100-110.

[19] SARAIVA. Op. cit., p. 142.

[20] CIDADE, Hernâni. Luís de Camões II: o épico, 2. ed. melhorada. Lisboa: Revista da Faculdade de Letras, 1953, p. 125.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, p. 126.

[23] SARAIVA. Op. cit., p. 125.

[24] Ibidem, p. 124.

[25] Para este tipo de pesquisa, torna-se indispensável a consulta ao Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas, feito sob a orientação de A. G. Cunha; edição do Instituto Nacional do Livro, 3 vol., Rio de Janeiro, 1966.

[26] SARAIVA. Op. cit., p. 125.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem.