Estudos Camonianos

A estrutura d'Os Lusíadas

 

Em 1571 estão prontos Os Lusíadas e Camões os oferece a D. Sebastião, dele obtendo o alvará [1] que lhe permite a impressão:

Eu el-Rei faço saber aos que este Alvará virem que eu hei por bem e me praz dar licença a Luís de Camões pera que possa fazer imprimir, nesta cidade de Lisboa, ua obra em Octava rima chamada Os Lusíadas, que contém dez cantos perfeitos, na qual por ordem poética em versos se declaram os principais feitos dos Portugueses nas partes da Índia depois que se descobrio a navegação pera eles por mandado del-Rei dom Manuel meu visavô que sancta glória haja [...] (Lus., ante fo. 1 r) [2]

 

A permissão real é, no entanto, condicionada a uma licença especial:

[...] e antes de se imprimir será vista e examinada na mesa do conselho geral do santo ofício da Inquisição, pera com sua licença se haver de imprimir, e se o dito Luís de Camões tiver acrecentados mais alguns Cantos, também se imprimirão havendo pera isso licença do santo ofício, como acima é dito. (Ib.) (Grifos nossos).

 

Por que punha D. Sebastião a possibilidade de ser o poema estendido por mais alguns cantos?  A resposta parece-nos óbvia.  Porque Camões, ao encerrá-lo, pondo-se à disposição do rei como soldado e como poeta -  "Pera servir-vos, braço às armas feito;  / Pera cantar-vos, mente às Musas dada" (X,155) -, promete-lhe que, se [o rei] "Dina empresa tomar de ser cantada" , a sua "já estimada e leda Musa" cantará seus feitos, "De sorte que Alexandro em vós se veja / Sem à dita de Aquiles ter enveja." (X, 156).

Observe-se esta passagem do alvará, que permanece quase despercebida, mas que revela a postura do Poeta-Locutor nesse diálogo mantido à distância em que, de suplicante de uma mercê - o alvará -, se transforma em doador de um prêmio - a propagação da glória do rei-alocutário, este mesmo rei que concede a graça requerida enquanto se põe como possível receptor do galardão com que lhe acena Camões.  Não é como pedinte humilde, genuflexo e cabisbaixo que este se dirige a D. Sebastião, mas como alguém que, consciente das riquezas que transporta consigo, propõe uma troca, de igual para igual:  se o rei tem poder para permitir ou impedir que se ouça a sua voz, é ele que pode calar ou entoar o canto com "ua fúria grande e sonorosa", fazendo cessar tudo que cantara a Musa antiga:  navegadores e soldados de um mais longínquo passado glorioso serão esquecidos quando se ouvir o novo aedo a celebrar as glórias portuguesas.  Maior que Vergílio e que Homero?  O "valor mais alto" será apenas o dos heróis cantados, ou se estenderá ao do canto?  Talvez não importe.  Alto bastante era para que o rei percebesse que dele dependia a permanência dos feitos já realizados e por realizar. 

Vencida a primeira barreira, o poema teria de transpor outra, porventura mais árdua:  a censura da Inquisição que desde 1536 se instalara em Portugal, com direitos irretorquíveis de proibir ou liberar a obra in totum, ou de nela fazer cortes e alterações a seu bel prazer, em nome da moral e da religião.

O fado, porém, que foi quase sempre adverso a Camões, pôs-se de seu lado, destinando a Frei Bertolameu Ferreira a censura do poema.  E esse benemérito dominicano, cuja clarividência e equilíbrio nunca serão bastante louvados, liberou o livro, com estas razões: 

Vi por mandado da santa e geral inquisição estes dez Cantos d'Os Lusíadas de Luís de Camões [...] e não achei neles cousa algua escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceo que era necessário advertir os Lectores que o Autor, pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua fi[c]ção dos Deoses dos Gentios [...].  Todavia, como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deoses na obra [...] (Ib., ante fo. 1 vo.) (Grifos nossos).

 

O bom frade não achara "cousa algua escandalosa", e, no entanto, como Miguel Ângelo, Camões ousara trazer para sua obra a nudez sem disfarces que só se aceitava na arte pagã e, mais que o mestre toscano, bastante casto, descrevera ou narrara cenas carregadas de sensualidade, como as da Ilha dos Amores ou do encontro de Vênus e Júpiter.

Era escandalosa a obra do ponto de vista ético-religioso, mas não só:  era-o também no questionamento da ideologia vigente.  E se Frei Bertolameu cortou alguma coisa ao poema, se propôs alguma alteração, se os versos dos cantos IX e X, onde se anula a realidade dos deuses mitológicos (IX, 89-92 e X,82), foram sugeridos por ele, não se pode esquecer que o censor era parte de uma estrutura intransigente e injusta, e lhe devia obediência.  Mas o fato é que o poema nos chegou em beleza, e portador de uma bissemia altamente significativa, que contribui para torná-la tão inovadora, pois não é na forma propriamente dita que a epopéia camoniana, obediente ao molde clássico, vai inovar. Seguindo as pegadas dos poemas homéricos e da epopéia vergiliana, Camões divide seus Lusíadas nas clássicas partes - Proposição, Invocação e Narração -, acrescentando-lhes uma Dedicatória (já encontrada em outros tipos de poemas) que desenvolve longamente, dela se utilizando para o louvor, não só do destinatário direto, D. Sebastião, mas de todo o povo português, também destinatário - se não especificamente da Dedicatória - de toda a epopéia.

A Narração se inicia, pela boca de um primeiro Narrador [3] e também segundo os moldes clássicos, in medias res, estando a viagem adiantada, voltando ao passado numa longa analepse em que a história de Portugal, já passada, é cronológica e quase exaustivamente apresentada por Vasco da Gama, e, menos extensa, em fragmentos, por Paulo da Gama, na descrição das bandeiras (VIII,1-42).  À história futura acenará, em rápida prolepse, a fala de Júpiter, ao profetizar as glórias que hão de vir, e em outra, bem mais longa (onde, por vezes, se abaixa o nível poético da narrativa), a ninfa da Ilha dos Amores (X, 10-73). Após esta, será a vez de ser passada a palavra a Tethys, esposa de Netuno, que começará por descrever a máquina do mundo; ao chegar à Terra, passará a mostrar as partes desta, apenas mencionando a Europa como "mais alta e clara / Que as outras em polícia e fortaleza" (X, 92), detendo-se um pouco na África (X, 93-7) e estendendo-se na descrição da Ásia (X, 137), onde se encaixa o relato da vida e morte de São Tomé e, mais brevemente, a referência ao naufrágio de Camões na foz do rio Mecom (X, 128).

Valerá, talvez, lembrar que o relato da história fica a cargo dos narradores secundários - Vasco da Gama (N2), Paulo da Gama, a Ninfa e Tethys -, estando o primeiro inserido na fala do Narrador1, na qual se encaixa, por sua vez, a de Paulo, enquanto as outras duas recebem a palavra diretamente do primeiro. A viagem, por seu lado, é descrita / narrada, em dois tempos invertidos: primeiro pelo N1 - do canal de Moçambique a Melinde - e depois pelo N2 - da praia do Restelo a Melinde -, deixando em branco o que já fora relatado, apenas referindo-se ao que se passara em Moçambique e em Mombaça, pois o rei já teria tido notícia do que lá lhes acontecera: "De cuja falsidade e má vileza / Já serás sabedor, e dos enganos / Dos povos de Mombaça pouco humanos." (X, 84)

Será também de notar que os mais belos momentos da epopéia, narra-os Vasco da Gama: a morte de Afonso Henriques, pranteada pelos ecos que lhe repetem o nome;  as batalhas travadas entre cristãos e mouros - Ourique e Salado - ou entre portugueses e castelhanos - Aljubarrota, onde se destaca a fala indignada e altiva de Nun'Álvares Pereira; o triste fim de Inês, a sua morte, chorada pelas águas do Mondego; a trágica história da desmesurada paixão do Adamastor. A ele é também transferida a narração bem humorada do único momento em que se afrouxa a tensão do leitor, capaz até de rir-se com a aventura de Fernão Veloso.  Reserva-se o N1 as descrições - belíssimas e carregadas de erotismo - da súplica de Vênus a Júpiter e das cenas de conquista e rendição na Ilha dos Amores; o cavaleiresco episódio dos Doze de Inglaterra.

Nem só de partes fixas (já citadas) e Narração se fazem Os Lusíadas.  Há neles - e da maior importância - toda uma reflexão sobre a vida, sobre a história, sobre o autor e o poema.  É essa a sua outra forma de inovar. E isso faz o Poeta nos excursos.

Na Dedicatória a D. Sebastião e no Epílogo a ele também dirigido, o Poeta mais uma vez se revela diverso:  lá, faz o louvor do rei - louvor excessivo, que vai até à divinização:  "E costumai-vos já a ser invocado." (I, 18);  cá, aconselha-o a bem governar, terminando por prometer-lhe novo canto, se houver novos feitos.  Os versos finais reaproximam, novamente, feito e canto.  Como na Proposição, patenteia-se a dependência do fato histórico em relação à arte, pois que só essa lhe dá a dimensão de eternidade.  O não compreender a importância da arte desmerece o homem, e disso o Poeta acusa o próprio Vasco da Gama: 

Que ele nem quem na estirpe seu se chama

Calíope não tem por tão amiga

Nem as filhas do Tejo que deixassem

As telas de ouro fino e que o cantassem. (V, 99)

 

 Essa crítica ao herói-síntese do poema é tanto mais grave quanto, nas estrofes anteriores, o Narrador1, cessada a voz do Gama, depois de acentuar o encanto e admiração de que ficaram tomados os melindanos, ao ouvir a história de Portugal, passa a palavra ao Poeta para que este, tomando o exemplo dos antigos, diga que

Enfim, não houve forte Capitão

Que não fosse também douto e ciente,

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,

Senão da Portuguesa tão somente.

Sem vergonha o não digo, que a razão

De algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima,

Porque quem não sabe arte, não na estima. (V, 97)

 

Como se pode ver, o Poeta questiona até mesmo os heróis que canta.

Numa narração qualquer há um ou mais narradores, uma estória [4] (ou mais de uma) que se narra e um ou mais personagens.  N'Os Lusíadas (e ainda aí se segue a tradição) há vários narradores: um narrador não nomeado, extradiegético, que introduz os outros, todos - é óbvio - personagens da estória - intradiegéticos, portanto - que é narrada pelo primeiro.  Qual é a estória d'Os Lusíadas?  A viagem de Vasco da Gama à Índia, metonímia de todas as navegações portuguesas.  É no seu decurso que Vasco da Gama irá narrar ao rei de Melinde a história pátria, ab origine até ao momento da sua fala.  E cabe aqui falar dos vários tempos da narrativa.

Há um tempo que chamaríamos central:  o tempo da viagem ou da estória, como ficou dito;  nesse tempo se inserem os discursos de Vasco e Paulo da Gama, de Júpiter,  da ninfa da Ilha dos Amores, de Tethys e outros mais breves ou menos importantes.  O que nesses discursos se narra pode pertencer a um tempo anterior ou presente - o da história vivida ou em curso - ou ainda a um tempo futuro - o da história por vir.  Todos esses tempos serão tempos do enunciado, embora contenham em si o tempo da enunciação das narrativas secundárias.  E há, possibilitando-lhes a todos a existência, o tempo da enunciação do Narrador1, posterior, como não podia deixar de sê-lo, a todos os tempos, incluído os das prolepses.  Exterior ao narrado, dele não participa em sua pessoa, mas desdobrando-se em outro que lhe é contemporâneo e que chamamos Poeta, também detentor do uso da palavra, mas da palavra que louva e verbera, que traduz ufania e vergonha, esperança e desespero, orgulho e desdém.  Emissor de seu discurso, é também personagem de uma "estória" sem continuidade, na qual se revela, por rápidos flashes, o seu ser.  Assim como Vasco da Gama, ao narrar a história portuguesa, chega ao momento da viagem e nela se insere como participante - navegador, soldado e porta-voz da uma ideologia -, o Poeta, no refletir sobre a vida, a pátria, a condição humana e a função do aedo, qualifica-se como o corifeu da tragédia, que, não participando diretamente da intriga, faz parte do elenco dos personagens;  o Poeta que - também ele!  - é navegador, soldado e portador duma ideologia que - e aqui se marca a diferença - ele celebra e contesta.

  A isso voltaremos, depois de levantar e comentar os passos da narrativa em Os Lusíadas.

Ao tentar, pela primeira vez e há muitos anos, analisar a estrutura d'Os Lusíadas [5] , vimos que a estória da viagem é extremamente simples e repetitiva:  uma sucessão de armadilhas montadas e desmontadas por inimigo(s) e amigo(s), respectivamente, com alterações circunstanciais, e repetição, quase total, dos sujeitos das ações.

Inicia-se a trama por uma situação inicial de bonança, a que se chamaria:  "Navegação com bons ventos", "no largo oceano" (I, 19).  Passado o Cabo das Tormentas - já agora da Boa Esperança -, começa a delinear-se mais nítida a conclusão da missão recebida pelos portugueses "assinalados", sobre-humanos;  era o momento de saber se poderiam realizar seu glorioso destino.  Até ali tinham chegado os outros, mas estes estão dispostos a seguir.  Que decidirão os deuses?

Essa será a 1a. seqüência, que intitulamos "Primeiro plano de proteção:  o consílio dos deuses" [6] . Planejado por Júpiter, recusado por Baco, defendido por Vênus e Marte, confirmado por Júpiter, o plano será frustrado na seqüência seguinte:  "Primeira cilada".  Sugerida ao mouro e a Baco pela inveja, planejada por Baco disfarçado em mouro, executada pelos mouros, inimigos disfarçados em amigos, a cilada será frustrada pela reação dos portugueses, que, provocando a fúria de Baco, o levam a arquitetar a "Segunda cilada", planejada e executada pelo mouro (instruído por Baco), e frustrada por Vênus. Baco, furioso, planeja o que constituirá a seqüência seguinte, "Terceira cilada": planejada pelo mouro (instruído pelo deus), inimigo disfarçado em amigo, executada pelos mouros, será frustrada por Vênus ajudada pelas Nereidas.

Um "Segundo plano de proteção" será sugerido pela súplica de Vasco da Gama a Deus, planejado por Vênus que lhe ouve a súplica, preparado por Júpiter com a mediação de Mercúrio e ameaçado de frustração pelos mouros no que será um esboço de "Quarta cilada", frustrada pelos portugueses, sem ajuda, como será a "Quinta cilada".

Um "Terceiro plano de proteção" é solicitado por Vasco da Gama ao rei de Melinde e executado por este, diante do relato de Vasco da Gama, verdadeira prova de qualificação. Indigna-se Baco e prepara a "Sexta cilada", por ele planejada, decidida por Netuno, executada por Éolo e os ventos, e frustrada por Vênus, por intermédio das Nereidas. Chegados a Calecute, os portugueses mais uma vez se qualificam através do pacto proposto por Vasco da Gama ao Samorim, das breves informações de Monçaide e do relato das bandeiras por Paulo da Gama, ao Catual. Uma "Sétima cilada" é  sugerida pela consulta do Samorim aos arúspices, planejada por Baco, disfarçado, posta em execução pelos indianos e frustrada por Vasco da Gama, aconselhado por Monçaide, influído por Deus.

Terminou a luta pendular entre o ser e o parecer [7] , a lealdade e a perfídia.  Venceram os heróis, é a hora do prêmio:  planeja-o Vênus, executa-o Cupido, com a mediação das Ninfas;  recebem-no os portugueses na Ilha dos Amores.  Restam apenas duas estrofes nas quais se resume a volta.  Repete-se a situação inicial de viagem bonançosa mas, desta vez, encerra-se a narração.  Não há mais nada a contar:  como numa narrativa maravilhosa, daquelas que Propp analisou, delas extraindo um roteiro que serviu de ponto de partida a tantos estudos sobre obras afins, Os Lusíadas narram a aventura de heróis que partem em busca de um objeto difícil de alcançar, que têm um temível oponente e dois poderosos adjuvantes (podendo cada um deles aliar-se a outros menores), e cujo percurso é feito de perigos a vencer e obstáculos a transpor, todos eles transpostos e vencidos.  Enfim, o prêmio integral merecido pelos portugueses:  navegantes, eles descobriram e dominaram novos mares, resistiram aos ventos e às procelas;  homens de carne, alimentaram-se de manjares feitos e servidos por ninfas, e as tiveram "no paço" ou "pelas sombras entre as flores" (IX, 87); cidadãos, cumpriram exemplarmente as ordens do rei e alargaram o império;  cristãos, levaram a fé às novas terras;  homens de espírito, mergulharam os ouvidos no futuro - através das palavras da ninfa - e os olhos no invisível - no prodigioso espetáculo da máquina do mundo.

Este prêmio concedido no presente se alarga na esperança de um futuro ainda maior:  o feito se perpetuará através da progênie que ali se gerou num ambiente edênico, na satisfação de loucos desejos de homens e deusas.  Não espanta que Baco, temeroso dos feitos portugueses, dissesse a Júpiter que, se o pai dos deuses os protegesse, criaria o risco de que deuses viessem a ser, e estes, humanos.

Como se pode facilmente verificar, todas as ciladas são planejadas, direta ou indiretamente, por Baco que em todas vem disfarçado, a não ser na sexta, pois que esta tem lugar entre os deuses, diante dos quais não precisa fingir.  Tanto Baco como seus aliados humanos simulam o que não são, a partir da intenção logo manifestada:  "a morte, se pudesse, neste dia / Em lugar de pilotos lhe daria" (I, 70) e do início da realização do intento:  "O recado que trazem é de amigos, / Mas debaxo o veneno vem cuberto" (I, 105).  Em face dos que simulam, daqueles cujo parecer é sempre diferente do ser, movem-se os portugueses, leais e confiantes:  "O capitão, que não caía em nada / Do enganoso ardil que o Mouro urdia" (I, 96-5-6), "O capitão que em tudo o Mouro cria" (I, 103, 5);  é isso que deles afirma Monçaide:  "é gente verdadeira, / A quem mais falsidade enoja e ofende" (VII, 72).  Em nenhum momento usam de malícia, bem como seus aliados, deuses ou humanos.  Vendo-se perdido em Calecute, o Gama usa de prudência, mandando que os feitores voltem às naus escondidos, mas nem aí simula o que não é.  Uma falha se lhe pode apontar:  a de levar consigo, "per força", alguns malabares que o Narrador1 inclui entre os "sinais" do que achara, como a pimenta ardente, a noz, o cravo, a canela...

Outro aspecto que surge nítido desse levantamento das seqüências é o de que os portugueses não venceram os obstáculos apenas porque Vênus e Júpiter os protegiam, porquanto se saem bem em quatro das sete ciladas, sem interferência divina, embora na última o Narrador1 diga que o Gama fala ao Samori "Cua alta confiança, que convinha, / [...] / Que Vênus Acidália lhe influía" (VIII, 64) e que a intervenção de Monçaide era influída por Deus. Na primeira, quarta e quinta, os portugueses salvam-se por seu valor e coragem; na última, pela habilidade do seu chefe. E não se esqueça que o auxílio de Vênus se torna necessário aos portugueses porque eles não estão apenas lutando contra os homens e a natureza, mas contra um deus poderoso e persistente, cuja fúria só pode ser contrabalançada pelo poder de seus iguais, como na epopéia clássica. Além disso, deve-se notar que os navegantes agem energicamente, inscientes de que sobre eles e sua salvação vela a deusa que os ama. Em nenhum momento parecem títeres cujos cordéis são movidos pelos deuses, mas homens de ação, nos quais os Narradores1 e 2 não apontam deslises.

Ficou dito atrás que voltaríamos a falar no Poeta.  Do que se disse, depreende-se claramente a quem chamamos assim.  Não é Luís de Camões, criador de uma obra lírica, épica e dramática, não é o homem que está na origem d'Os Lusíadas, dos sonetos ou de El-Rei Seleuco.  O Poeta [8] , bem como o Narrador1, são entes de papel:  este narra, aquele comenta.  Numa imagem de que o cinema tantas vezes lançou mão (com outros fins) vemos um deslisar de dentro do outro e agir independentemente, em concordância às vezes, às vezes em completa discordância.  Locutores ambos da narrativa, um adere, sem discrepância, ao referente, enquanto o outro se distancia para melhor enxergar e não narra, senão tece considerações mais ou menos apaixonadas.

O Narrador1 fica na sombra (só se conhecem os narradores secundários que são também personagens);  o Poeta projeta luz sobre o texto e sobre si mesmo, já que se revela como o eu que canta - "E enquanto eu estes canto" (I,15) -, o que se sabe merecedor de um prêmio por cantar o seu ninho - "não é prêmio vil ser conhecido / Por um pregão do ninho meu paterno" (I, 10) -, o que diz ao rei que foi iníquo (X,25), o que reconhece seu próprio valor -

Nem me falta na vida honesto estudo

Com longa experiência misturado

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente (X, 154) -,

o que odeia a hipocrisia - "corrompe este encantador [ouro], e ilude, / Mas não sem cor, contudo, de virtude" - (VIII, 99), o que sofre com o sofrimento do homem - "Mísera sorte, estranha condição!" (IV, 104).

Dissemos que o Narrador1 é um ente de papel:  teoricamente é verdade;  na prática, nem tanto.  Como dissociá-lo do Autor, quando é este que pede ao rei o alvará de licença para passar, com seu canto, à posteridade, essa posteridade que já completou  400 anos e na qual nos incluímos, com total admiração e um certo orgulho de falarmos, com tantos milhões, num espaço tão grande como aquele em que ele quis fazer ressoar a sua voz - "Cantando espalharei por toda parte" (I, 2) -, a mesma língua em que ele cantou, aquela que, como dirá séculos depois um grande poeta brasileiro, dirigindo-se enlevado ao seu par:

Não morrerá sem poetas nem soldados

A língua em que cantaste rudemente

As armas e os barões assinalados. [9]

É a narração, no entanto, que aqui queremos privilegiar, isto é, o modo como se processa a narrativa, e recuperar a surpresa que nos tomou ao ver que n'Os Lusíadas a estória da viagem se desenvolve, grosso modo, como uma narrativa primitiva, como um conto popular, em que há um herói em busca de algo ou de alguém, uma situação inicial, uma série de peripécias que consistem na sucessão de obstáculos a vencer, enfim, de uma aituação final. O herói tem de enfrentar um ou mais oponentes, mas conta com a proteção de um ou mais adjuvantes, devendo submeter-se a provas qualificantes, até conseguir cumprir sua missão.

Claro está que só nos referimos à narração da viagem, que tem começo, meio e fim, e é referida  detalhadamente pelos Narradores1 e 2.  É ela a narrativa principal, na qual se encaixa a história de Portugal, cujo relato qualifica os heróis, fá-los dignos da proteção de um adjuvante  decisivo - o rei de Melinde - e os capacita à conquista do prêmio final.

Neste tipo de abordagem a que acabamos de proceder corremos o risco de centrar-nos na estória, descurando-nos do discurso, quando é neste, afinal, que se contém a literariedade do texto. Nesta navegação bastante arriscada, esperamos, contudo, ter chegado a "porto e salvamento". [10]


 

OS LUSÍADAS

 

SEQÜÊNCIAS DA NARRATIVA

 

 

SITUAÇÃO INICIAL:  navegação com bons ventos (I, 19).

 

1. 1o plano de proteção (I, 20-41):

a) planejado por Júpiter e apresentado no Consílio do Olimpo (I, 20-30, v. 4);

b) recusado por Baco (I, 30, v. 5-32);

c) defendido por Vênus e Marte (I, 33-40);

d) confirmado por Júpiter (I, 41); retomada da viagem (I, 42-68)

f)  frustrado o plano por Baco na

 

2. 1a cilada (I, 69-95):

a) sugerida ao mouro pela inveja (I, 69-72)                   

b) sugerida a Baco pela inveja (I, 73-76);

b) planejada por Baco disfarçado em mouro (ser ¹ parecer) (I, 77-81);

c) executada pelos mouros, inimigos disfarçados em amigos (ser ¹ parecer) (I, 82-87)

d) frustrada pela reação dos portugueses (I, 88-93) e retomada da viagem (I, 95).

 

3. 2a cilada (I, 94-100):

a)           planejada pelo mouro, inimigo disfarçado em amigo (ser ¹ parecer) (I, 94-96);

b)   executada pelo mouro, instruído por Baco (ser ¹ parecer) (I, 97-99);

c)  frustrada por Vênus, desviando a frota com ventos contrários (I, 100);

 

4.   3a cilada (I, 101-105, v. 4 - II, 1-28, v. 4):

a)           planejada pelo mouro, instruído por Baco (ser ¹ parecer) (I, 101-104, v. 4);

b)   executada pelos mouros (ser ¹ parecer) (I, 104, v. 5 - 105, v. 4; II, 1-18, v. 4);

c)   frustrado por Vênus e as Nereidas (II, 18, v. 5-28).

 

5.  2o plano de proteção (II, 31 - VI, 5):

a)   sugerido pela súplica de Vasco da Gama à Guarda Divina (II, 31-32);

b)  planejado por Vênus, que lhe ouve a súplica (II, 33-42, v. 7)

c)  preparado por Júpiter, com a mediação de Mercúrio (II, 43, v. 8 - 65, v. 4);

d)  ameaçado de frustração pelos mouros num esboço de

 

6.  4a. cilada (II, 66): 

a)  tentada pelos mouros (II, 66, vv. 1-4);

b)  frustrada pelos portugueses, sem nenhuma ajuda (II, 66, v. 5 - 67).

            

7.  5a. cilada (II, 68-71):

a)           tentada pelos mouros (II, 68);

b)           frustrada pelos portugueses, sem ajuda (II, 69-71).

 

 

8. Chegada a Melinde.

 

9. 3o. plano de proteção (II, 79-V, 4)

a) solicitado por Vasco da Gama, pela voz de "um na prática elegante" (II,78-84); e, diante da

b) prova de qualificação dos portugueses, através do relato de Vasco da Gama ao rei de Melinde:

I - da história de Portugal:  vitórias contra os homens (III, 3 - IV, 104);

II - da viagem: enfrentamento do desconhecido, dos "milagres da natura" (V, 1-89);

c) mandado executar pelo rei, com mostras de alegria e pedido de volta das frotas (V, 4);.retomada da viagem (V, 5).

 

10. 6a cilada (VI, 6-94) (a tempestade):

a) planejada por Baco (VI, 6-34);

b) decidida por Netuno (VI, 35-70;

c) executada por Éolo e os ventos (VI, 71-84);

                   d) frustrada por Vênus e as Nereidas (VI, 81-93):

- súplica de Vasco à Divina Guarda (VI, 81-83);

- interferência de Vênus por intermédio das Nereidas (VI, 87-91);

- graças dadas a Deus por Vasco da Gama (VI,93).

 

11. Chegada a Calecute (VII, 1;  16-78;  VIII, 1-38).

a) contactos com a gente (VII,16-59);

b) nova qualificação dos portugueses, através do pacto proposto por Vasco da Gama ao Samorim (VII, 60-63), das breves informações de Monçaide (VII, 68, vv. 5-8 - VII, 72) e do relato das bandeiras por Paulo da Gama ao Catual (VIII, 1-38).

 

12. 7a cilada (VIII, 45-78):

a) sugerida pela consulta aos arúspices (VIII,45-46);

b) planejada por Baco, disfarçado em Maomé (ser ¹ parecer) (VIII, 47-50);

c) posta em execução pelos indianos (ser ¹ parecer), com tentativas de objeção de Vasco da Gama e seu pedido ao Catual, com "brados e razões" (VIII, 51-78);

d) frustrada por Vasco da Gama, aconselhado por Monçaide, influído por Deus (IX, 5-17).

 

13. Prêmio aos heróis (IX, 18-88;  X, 1-143):

a) planejado por Vênus (IX, 18-42);

b) executado por Cupido e pelas Ninfas (X,43-65);

c) recebido pelos portugueses (X, 66-143).

 

SITUAÇÃO FINAL: Regresso à Pátria (X, 144)

 

 

 

[1] Como ficou dito no Prefácio, "poderá haver parcial coincidência (sempre muito breve) entre uns poucos ensaios, principalmente nos textos sobre Os Lusíadas, nos quais, por vezes, caminhos vários se entrecruzam." É o que se verá neste ensaio, em "De censores e de censura" e ainda em "Microleituras camonianas", em que não haveria como escapar à citação e análise do parecer do rei e do alvará do frade, sem prejudicar os objetivos dos três textos, onde se retoma o mesmo alvará. Tal reincidência é motivada pela importância que atribuo aos dois paratextos, sobretudo ao segundo.

[2] As citações são feitas pela edição princeps d'Os Lusíadas; a partir daqui, apenas pelo no. do(s) canto(s) em algarismos romanos, seguidos do da(s) estrofe(s), em arábicos. Quando julgamos aconselhável, acrescentamos os números dos versos.

[3] A este Narrador chamaremos Narrador1 ( N1); a Vasco da Gama, Narrador2 (N2); a Paulo da Gama, Narrador 3 (N3).

[4] Usamos estória (diferençando-a de história, o que é impossível em francês) com o sentido de "argumento, contendo uma lógica das ações e uma 'sintaxe' dos personagens" (Barthes, R. "Introduction à l'analyse structurale des récits". In: Communications: (8). Paris: Seuil, 1966. Também usamos, como ele, discurso para significar "os tempos, os aspectos e os modos da narrativa."

 

[5] Este texto foi esboçado pelo fim dos anos 60, sob a influência dos estruturalistas então recentemente revelados por meio de traduções francesas, como Roman Jakobson e Vladimir Propp, e, sobretudo, dos que constituiram o no. 8 da revista Communications: Paris: Seuil, 1966: Roland Barthes, André Bremond, Gérard Genette, Tzvetan Todorov, A. J. Greimas.

[6] Nas páginas finais deste ensaio encontra-se a esquematização das seqüências.

[7] A análise da narrativa proposta por Todorov calcava-se, em grande parte, na semelhança ou dessemelhança entre ser e parecer.

[8] Cf. "Os excursos do Poeta n'Os Lusíadas", p. ???.

[9] BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa, vol. I, Poesia. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958, p. 11.

[10]   Note-se que os demais ensaios deste volume privilegiam todos o discurso.